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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Luz Acima–Francisco Cândico Xavier

Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.

CARO AMIGO:

Se você gostou deste livro e tem condições de comprá-lo, faça-o pois assim estarás ajudando a diversas instituições de caridade.Que Jesus o abençoe.

Muita Paz

FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER

ESPÍRITO IRMÃO X

LUZ ACIMA

Movimentam-se os gêneros da sombra, no fundo vale humano...

São os milenares polvos da guerra e do arrasamento a se reerguerem da cinza dos

séculos, ameaçando a civilização.

Invadem países e dominam povos, devoram lares e templos, escarnecem das idéias

superiores que alimentam a humanidade e separam irmãos com o gládio da morte.

Todavia, dos círculos escuros em que persevera a gritaria do mal, emerge a voz do

Pastor Divino:

“Eu, porém, vos, digo”:

Sede misericordiosa.

Amais os vossos inimigos.

Bendizei os que vos maldizem

Auxiliai os que vos odeiam.

Orai pelos que vos perseguem e caluniam.

Abençoai vossa cruz.

Ao que vos obriga a seguir mil passos, marchai com ele dois mil.

Ao que pretenda contender convosco, por roubar-vos a túnica, dai-lhe também a capa.

Perseverai no bem até ao fim.

Tende bom ânimo!”

Nos conflitos ideológicos da atualidade as forças perturbadoras do ódio e da

separatividade conclamam, enfurecidas, em todas as direções:

- Regressemos à barbárie! desçamos às trevas!...

Mas, atentos à celeste plataforma, os verdadeiros cristãos de todas as escolas e de

todos os climas, de almas unidas em torno do Mestre, repetem, contemplando os clarões

do mundo futuro:

Luz acima! Luz acima! . . .

Irmão X

Pedro Leopoldo, 14 de dezembro de 1947

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1 - ANTE O GRANDE RENOVADOR

Senhor, lembrando a Tua crucificação entre malfeitores, sacrificado em Teu ministério de

amor universal, ouvimos apelos de vários setores religiosos do mundo presente,

invocando-Te o nome para incentivar os movimentos tumultuários da renovação política

que convulsiona o Planeta...

Asseguram-Te a posição de maior revolucionário de todos os tempos. Afirmam que

abalaste os fundamentos sociais da ordem humana, que alteraste o curso da civilização,

que transformaste os povos da Terra,

Quem Te negará, Senhor, a condição de Embaixador Celeste? quem desconhecerá Teu

apostolado de redenção?

Entretanto, divulgando a mensagem da Boa-Nova, jamais insultaste o governo

estabelecido...

Amigo de todos os sofredores,e necessitados, nunca congregaste os infelizes em sinistras

aventuras de ódio ou indisciplina. Aproximavas-Te dos desamparados, curando-lhes as

enfermidades, ensinando-lhes o caminho do bem, estendendo-lhes mãos benfeitoras e

diligentes. Dirigindo-Te à massa anônima e desditosa, em nome do Eterno Pai, não

preconizaste movimentos armados de desrespeito às autoridades legalmente

constituídas. Ao invés do incitamento à revolta, recomendavas que a Lei de Moisés fosse

respeitada, que os sacerdotes dignos fossem honrados, asseverando que o Reino de

Deus não surgiria com aparências exteriores e, sim, com a elevação espiritual do homem

de qualquer raça ou nacionalidade, sinceramente interessado em aproveitar os dons

divinos.

Expondo princípios superiores ao coração popular, não disputaste lugar saliente, junto ao

romano dominador, a pretexto de patrocinar a liberdade e, sim, aconselhaste acatamento

a César com a obrigação de resgatar-se o tributo que se lhe devia.

Erguendo novas colunas no templo da fé viva, conclamando mãos limpas e corações

puros ao serviço do Céu, não desprezaste a legião dos pecadores e criminosos, que se

abeiravam de Ti, sedentos de transformação para a tarefa bendita... Não falaste a eles de

uma tribuna dourada, acentuando fronteiras de separação. Comungaste com todos no

caminho da vida, a pleno chão, abraçando leprosos e delinqüentes, avarentos e rixosos,

bonecas e mulheres desventurados. Não impunhas, no entanto, qualquer compromisso

que envolvesse a administrarão dos interesses públicos, nem traçavas, com astutas

palavras, qualquer insinuarão ao desespero. Pedias tão somente renovassem o coração

para que a Luz do Reino lhes penetrasse as profundidades do ser.

Sustentando o sublime ideal de obediência a Deus, nunca ordenaste morte ou punição

aos companheiros menos corajosos. Suportaste as fragilidades dos discípulos mais

queridos, confiando no futuro, certo de que se podiam faltar a Ti, nos instantes mais

duros, não falhariam para com o Pai, nas grandes horas, desde que não te desanimasses

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na semeadura da fraternidade e proteção, pelo esforço da palavra e do exemplo no

círculo educativo.

Se confiavas num mundo vasto, onde reinaria a solidariedade nas relações humanas,

jamais tentaste apressar diretrizes absolutas pelo império da força. Começaste sempre a

propaganda dos propósitos divinos em Ti mesmo, revelando o próprio coração, cultivando

o trabalho e a esperança, com suprema fidelidade ao Poder Mais Alto que marcou

estação adequada à semente e à germinação, à flor e ao fruto. Em momento algum

mobilizaste a violência, alegando necessidades do serviço superior e, em todo o Teu

apostolado, jamais desdenhaste o menor ensejo de amparar o próximo, edificando-o.

Para isso, abraçaste os velhos e os doentes, os deserdados e os tristes, os aleijados e as

criancinhas...

Nunca disseste, Senhor, que os discípulos deveriam dominar em Roma para serem úteis

na Judéia, nem prometeste primeiros lugares, nas Estradas da Glória, aos companheiros

diletos, ainda mesmo em se tratando de João e Tiago que Te foram carinhosos amigos.

Mas garantiste a vitória sublime a todos os homens que se fizessem devotados servos

dos semelhantes por amor ao Pai Celestial.

Invariavelmente, solicitaste socorro e proteção, desculpas e auxílios para os que Te

perseguiam, gratuitamente, irônicos e ingratos...

Tua ordem era de amor e paz para que todo espírito se converta ao Infinito Bem...

Hoje, contudo, improvisam-se guerras sanguinolentas e sobram discórdias em Teu nome.

Há companheiros que disputam situações de relevo, a fim de servirem à Tua causa, como

se o sacrifício pessoal não constituísse a Tua senha na obra redentora. Outros Te

recordam os ensinos para justificar a inconformação e a desordem.

Sim, foste, em verdade, o Grande Renovador, Transformaste os séculos e as nações,

trabalhando e perdoando, ajudando e servindo, esperando e amando sempre!...

Um dia, na praça pública, quando ficaste a sós com humilde e infortunada irmã, que se

vira fustigada pelo populacho ignorante, perguntaste -lhe, emocionadamente:

– Mulher, onde estão os perseguidores que te acusam?

Hoje, Mestre, lamentando embora o tempo que também perdi na Terra, iludido e

envenenado quanto os outros homens, lembrando-Te ainda na cruz afrontosa, sozinho

em Tua exemplificação de amar e renúncia, abnegação e martírio, ouso interrogar-Te,

com as lágrimas de meu profundo arrependimento :

– Senhor, onde estão os renovadores que Te acompanham?

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2 - MÃOS ENFERRUJADAS

Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou-nos

conhecidos a impressão de que subiria incontinenti aos Céus. Vivera arredado do mundo,

no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.

Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola

de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela e o lenço, admiravelmente dobrado,

caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às madeiras

distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso cada manhã, renovada expressão juvenil. Os

cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.

Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga.

Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes.

Detestava os padrões católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os

espiritistas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio Jesus.

As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso

fraterno, no campo da vida.

Estudava, estudava, estudava...

E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo.

Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que

assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista

disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem

sem escalas com o destino à Corte Celeste.

Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser

incomodado por eles; distribuía esmolas vultuosas, para que os problemas de caridade

não lhe visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim -

perguntavam amigos íntimos - o tipo religioso perfeito? Distante de todas as complicações

da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, seria

impossível que não conquistasse o paraíso.

Contudo, a responsabilidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa

geral.

Sucupira, desencarnado, ingressava numa esfera de ação, dentro da qual parecia não ser

percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos

campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em

serviços dignos. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado à velha cozinheira

analfabeta.

Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido.

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Conseguia andar, ver, ouvir, pensar. No entanto - desventurado Joaquim! - as mãos e os

braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente

ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de

bruços porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.

Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi

conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de

tempos em tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.

O benfeitor que desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembléia de Espíritos

penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o

prendiam nos círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar casos mais

dolorosos e urgentes.

Devotados companheiros do bem selecionavam a meia dúzia de sofredores que poderiam

ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.

Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e

circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:

- Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.

Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:

- Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.

Fez pequeno intervalo e entrou a argüir:

- Joaquim, você era casado?

- Sim.

- Zelava a residência?

- Minha mulher cuida de tudo.

- Foi pai?

- Sim.

- Cuidava dos filhos em pequeninos?

- Tínhamos suficiente número de criadas e amas.

- E quando jovens?

- Eram naturalmente entregues aos professores.

- Exerceu alguma profissão útil?

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- Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.

- Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?

- Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.

O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:

- Você adotou alguma religião?

- Sim, eu era cristão - esclareceu Sucupira.

- Ajudava os católicos?

- Não. Detestava os sacerdotes.

- Cooperava com as Igrejas reformadas?

- De modo algum. São excessivamente intolerantes.

- Acompanhava os espíritas?

- Não. Temia-lhes presença.

- Amparou doentes, em nome de Cristo?

- A terra tem numerosos enfermeiros.

- Auxiliou criancinhas abandonadas?

- Há creches por toda parte.

- Escreveu alguma página consoladora?

- Para quê? O mundo está cheio de livros e escritores.

- Utilizava o martelo ou o pincel?

- Absolutamente.

- Socorreu animais desprotegidos?

- Não.

- Agradava-lhe cultivar a terra?

- Nunca.

- Plantou árvores benfeitoras?

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- Também não.

- Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?

Sucupira fez um gesto de desdém e informou:

- Jamais pensei nisto.

O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim

do interrogatório, opinou sem delongas:

- Seu caso explica-se: você tem as mãos enferrujadas.

Ante à careta do interlocutor amargurado, esclareceu:

- É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso

terrestre.

Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.

O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.

Rogério, carioca desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz, após

escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente:

- Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.

- Fila? - interrogou o infeliz, boquiaberto.

- Sim - acrescentou o alegre ajudante -, na fila da reencarnação.

E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía, sorrindo:

- O que você precisa, Joaquim é de movimentação...

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3 - PEQUENA HISTÓRIA DO DISCÍPULO

Quando o Mestre visitou o aprendiz pela primeira vez, encontrou-o mergulhado na leitura

das informações divinas.

Viu-o absorto na procura de sabedoria e falou :

– Abençoado seja o filho do conhecimento superior!

E passou à frente, entregando-o ao cuidado de seus prepostos.

Voltando, mais tarde, a revê-la, surpreendeu-o inflamado de entusiasmo pelo

maravilhoso. Sentia-se dominado pelas claridades da revelação, propondo-se estendê-la

por todos os recantos da Terra. Queria ganhar o mundo para o Senhor Supremo.

Multiplicava promessas de sacrifício pessoal e interpretava teòricamente a salvação por

absoluto serviço da esperança contemplativa.

O Companheiro Eterno afagou-lhe a fronte sonhadora e disse:

– Louvado seja o apóstolo do ideal!

E seguiu adiante, confiando-o a dedicados mensageiros.

Regressou, em outra ocasião, a observá-lo e registRou-lhe nova mudança. Guiava-se o

aprendiz pelos propósitos combativos. Através do conhecimento e do ideal que adquirira,

presumia-se na posse da realidade universal e movia guerra, sem sangue a todos os

semelhantes que lhe não pisassem o degrau evolutivo. Gravava dísticos incendiários, a

fim de purificar os círculos da crença religiosa. Acusava, julgava e punia sem

comiseração. Alimentava a estranha volúpia de enfileirar adversários novos. Pretendia

destruir e renovar tudo. Nesse mister, desconhecia o respeito ao próximo, fazia tábua

rasa das mais comezinhas regras de educação, assumindo graves responsabilidades

para o futuro.

O Compassivo, todavia, reconhecendo-lhe a sinceridade cristalina, acariciou-lhe as mãos

inquietam e enunciou:

– Amparado seja o defensor da verdade!

E dirigiu-se a outras paragens, entregando-o à proteção de missionários fiéis.

Tornando ao círculo do seguidor, em época diferente, reparou-lhe a posição diversa.

Dera-se o discípulo à sistemática pregação dos princípios edificantes que adotara,

condicionando-os aos seus pontos de vista. Escrevia páginas veementes e fazia

discursos comovedores. Projetava nos ouvintes a vibração de sua fé. Era condutor das

massas, herói do verbo primoroso, falado e escrito.

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O Instrutor Sublime abraçou-o e declarou:

– Iluminado seja a ministro de palavra celestial!

E ganhou rumos outros, colocando-o sob a inspiração de valorosos emissários.

Escoados longos anos, retornou o Magnânimo e anotou-lhe a transformação, O aprendiz

exibia feridas na alma. A conquista do mundo não era tão fácil, refletia ele com amargura.

Embora sincero, fora defrontado pela falsidade alheia. Desejoso de praticar o bem, era

incessantemente visado pelo mal. Via-se rodeado de espinhos. Suportava calúnias e

sarcasmos. Alvejado pelo ridículo entre os que mais amava, trazia o espírito avivado de

duvidas e receios perniciosos. Era incompreendido nas melhores intenções. Se dava pão,

recebia pedradas. Se acendia luz, provocava perseguições das trevas. Lia os livros

santos, à maneira do faminto que procura alimento; sustentava seus ideais com

dificuldades sem conto; ensinava o caminho superior, de coração dilacerado e pés

sangrando...

O Sábio dos Sábios enxugou o suor copioso e falou:

– Amado seja o peregrino da experiência!

E seguiu, estrada afora, confiando-o a carinhosos benfeitores.

Retornando, tempos depois, o Salvador assinalou-lhe a situação surpreendente.

Chorando para dentro, reconhecia o discípulo que muito mais difícil que a conquista do

mundo era o domínio de si mesmo. Em minutos culminastes do aprendizado, entregarase

também a forcas inferiores, Embora de pé, sabia, de conhecimento pessoal, quão

amargo sabor impunha o lodo à boca. Cedera, bastas vezes, A,s sugestões menos digiras

que combatia. Aprendera que, se era fácil ensinar o bem aos outros, era sempre difícil e

doloroso edificá-lo na próprio íntimo. Ele que condenara a vaidade e o egoísmo, a volúpia

e o orgulho, verificava que não havia desalojado tais monstros de sua alma. Renunciava

ao com.bate com o exterior, a fim de lutar consigo muito mais. Vivia sob a pressão de

tempestade renovadora. Ciente das fraquezas e imperfeições de si mesmo, confiava,

acima de tudo, no Altíssimo, a cuja bondade infinita submetia os torturantes problemas

individuais, através da prece e da vigilância entre lágrimas.

O Divino Amigo secou-lhe o pranto e exclamou:

– Bendito seja o irmão de dor que Santifica!

E seguiu para diante, recomendando-o aos colabora,dares celestiais.

Anos decorridos, regressou o Misericordioso e admirou-lhe a situação diversa. O discípulo

renovara-se completamente. Preferia calar para que outros se fizessem ouvir. Analisava

as dificuldades alheias pelos tropeços com que fora defrontado na senda. A compreensão

em sua alma era doce e espontânea, sem qualquer tendência à superioridade que

humilha. Via irmãos em toda parte e estava disposto a auxiliá-los e socorrê-los, sem

preocupação de recompensa. Aos seus olhos, os filhos de outros lares deviam ser tão

amados quanto os filhos do teto em que nascera. Entendia os dramas dolorosos dos

vizinhos, honrava os velhos e estendia mãos protetoras às crianças e aos jovens. Lia os

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escritos sagrados, mas enxergava também a Eterna Sabedoria na abelha operosa; na

nuvem distante, no murmúrio do vento. Regozijava-se com a alegria e o bem-estar dos

amigos, tanto quanto lhes partilhava os infortúnios. Inveja e ciúme, despeito e cólera, não

lhe perturbavam o santuário interior. Não sentia necessidade de perdoar, porque amava

os semelhantes como Jesus lhe havia ensinado. Orava pelos adversários gratuitos do

caminho, convencido de que não eram maus e, sim, ignorantes e incapazes. Socorria os

ingratos, lembrando que o fruto verde não pode oferecer o sabor daquele que amadurece

a seu tempo. Chorava de júbilo, a sós, na oração de louvor, reconhecendo a extensão das

bênçãos que recebera do céu... Interpretava dores e problemas como recursos de

melhoria substancial. As lutas era,m para ele degraus de ascensão. O perversos, ao seu.

olhar, eram irmãos infelizes, necessitados de compaixão fraternal. Rua palavra jamais

condenava. Seus pés não caminhavam em vão. Seus ouvidos mantinham-se atentos ao

bem. Seus olhos enxergavam de maio alto. Suas mãos ajudavam sempre. Sintonizava

sua mente com a Esfera Superior. Seu maior desejo, agora, era conhecer o programa do

Mestre e cumpri-lo. Pregava a verdade e a ensinava a quantos procurassem ouvi-lo;

entretanto, experimentava maior prazer em ser útil. Guardava, feliz, a disposição de servir

a todos. Sabia que era imprescindível amparar o fraco para que a fragilidade não o

precipitasse no pó, e ajudar ao forte a fim de que a força mal aplicada não o envilecesse.

Conservava o conhecimento, o ideal, o entusiasmo, a combatividade em favor do bem, a

experiência benfeitora e a oração iluminativa, todavia, acima de tudo, compreendia a

necessidade de refletir a Vontade de Deus no serviço ao próximo. Suas palavras

revestiam-se de ciência celestial, a humildade não fingida era gloriosa auréola em sua

fronte, e, por onde passava, agrupavam-se em torno dele os filhos da sombra, buscando

em sua alma a luz que amam quase sempre sem entender...

O Senhor, encontrando-o em semelhante estado, estreitou-o nos braços, de coração a

coração, proclamando:

– Bem-aventurado o servo fiel que busca a Divina Vontade de Nosso Pai!

E, desde então, passou a habitar com o discípulo para sempre.

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4 - NOS LIMITES DO CÉU

No extremo limite da Terra com o Céu, aportou um peregrino envolto em nevado manto.

Irradiava pureza e brandura. A fronte denunciava-lhe a nobreza pelos raios diamantinos

que emitia em todas as direções. Extenso halo de luz assinalava-lhe a presença.

Recebido pela entidade angélica, que presidia à importante passagem, apresentou sua

aspiração máxima: ingressar definitivamente no paraíso, gozar-lhe o descanso beatífico.

O divino funcionário, embora admirado e reverente perante espírito tão puro, esboçou o

gesto de quem notava alguma falha menos visível ao olhar inexperiente e considerou:

– Meu irmão, rendo homenagem à alvura de tuas vestes, entretanto, vejamos se já

adquiriste a virtude perfeita.

Sorridente, feliz, o viajor vitorioso pôs-se à escuta.

– Conseguiste entesourar o amor sublime." perguntou o anjo, respeitoso.

– Graças a Deus! – informou o interpelado.

– Edificaste a humildade?

– Sim.

– Guardaste a esperança fiel?

– Todos os dias.

– Seguiste o bem?

– Invariavelmente.

– Cultivaste e pureza?

– Com zelo extremado.

– Exemplificaste o trabalho construtivo?

– Diariamente.

– Sustentaste e fé?

– Confiei no Divino Poder, acima de tudo.

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– Ensinaste a verdade e testemunhaste-a?

– Com todas as minhas forças.

– Conservaste a paciência?

– Sem perdê-la jamais.

– Combateste os vícios em ti mesmo, tais como a vaidade e o orgulho, o egoísmo e o

ciúme, a teimosia e a discórdia?

– Esmeradamente.

– Guerreaste os males que assolam a vida, como sejam o ódio e a perversidade, a

insensatez e a ignorância, a brutalidade e a estupidez?

– Sempre.

O anjo interrompeu-se, refletiu longos minutos, como se estivesse em face de grave

enigma, e indagou:

– Meu amigo, já trabalhaste no inferno?

– Ah! isto não! – respondeu o peregrino, escandalizado. – Como haveria de ser?

O fiscal da celeste alfândega sorriu, a seu turno, e observou:

– Falta-te semelhante realização para subir mais alto.

– Oh! que contra-senso! – aventurou o interessado – como servir entre gênios satânicos,

de olhos conturbados pela permanente malícia, de ouvidos atormentado pela gritaria, de

mãos atadas pelos impedimentos do mal soberano, de pés cambaleantes sabre o terreno

inseguro, com todas as potências da alma perturbadas pelas tentações?

– Sim – meu amigo – acentuou o preposto divino – o bem é para salvar o mal, o amor foi

criado para que amemos, a sabedoria se destina em primeiro lugar, ao ignorante. A maior

missão da virtude é eliminar o vício e amparar o viciado.

E, perante o assombro do ouvinte, rematou:

– Torne à Terra, desce ao inferno que o homem criou e serve ao Senhor Supremo,

voltando depois... Então, cogitaremos da travessia. Lembra-te de que o Sol, situado cerca

de cento e cinqüenta milhões de quilômetros além do teu mundo, larga raios luminosos e

salvadores ao mais profundo abismo planetário...

Em seguida, o controlador da Porta Celestial cerrou a passagem ligeiramente entreaberta

e o peregrino, de capa lirial, espantadiço e desapontado, sentou-se um pouco, a fim de

meditar sobre as conquistas que havia feito.

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5 - A MISSÃO

Quando Pacheco foi à reunião de intercâmbio espiritual pela primeira vez, Ricardo,

devotado benfeitor do Além, anunciou-lhe preciosa missão que teria a cumprir. Havia

renascido entre os homens para atender a elevado ministério. Cultivaria bênçãos de

Jesus, seria uma claridade viva nas sombras do mundo.

Pacheco regozijou-se. Chorou de jubilo. Viu-se, por antecipação, à frente de grandes

massas de sofredores, dispensando graças do Altíssimo. E, desde então, passou a

esperar a ordem direta do Céu, para execução do sublime mandato de que era portador.

Afeiçoado à Consoladora Doutrina dos Espíritos, revelou, em breve, adiantadas

possibilidades mediúnicas, que mobilizou, um tanto constrangido, a serviço do bem. Não

se achava muito disposto ao contato permanente com infortunados e indagadores,

sempre férteis entre os vivos e os mortos. No entanto, tentaria. Aguardava a missão

prometida, repleta dos galardões da evidência. Recebê-la-ia confiante.

Dentro de alguns meses, contudo, o rapaz denunciava imensa fadiga e, ao termo de

apenas dois anos, o soldado arriava mochila. Afastou-se do grupo que freqüentava.

Silenciou. Recolheu-se à vida pacata, onde lhe não surgiam aborrecimentos. Para que

outro mundo, além do oásis que a esposa querida e os filhos carinhosos lhe ofereciam?

para que outra ambição, além daquela de assegurar no “pé de meia” o futuro da família?

Lia notícias do movimento que o interessara antes e amava a boa palestra de gabinete.

De quando em quando, lá surgia um amigo a pedir-lhe opinião, com referência à

mediunidade e ao Espiritismo. Pacheco catequizava, solene, sobre a imortalidade da

alma. Relacionava as próprias experiências e rematava sempre:

– Os Espíritos Protetores, certa feita, chegaram a declarar que tenho grande missão a

cumprir.

– Oh! e porque se afastou assim?! – era a pergunta invariável que lhe desfechavam à

queima roupa.

Cruzava os braços e informava em tom superior:

– As idéias são respeitáveis, mas as criaturas... Imaginem que minhas faculdades eram

consultadas a propósito dos mais rasteiros problema da vida. Muitos desejavam saber por

meu intermédio em que zona comercial estariam situados os negócios mais lucrativos,

outros buscavam informações alusivas a tesouros enterrados. Inúmeras pessoas

procuravam comigo recursos para ocultar delitos graves ou tentavam converter entidades

espirituais em agentes comunas de polícia barata. Era eu assediado impiedosamente

para esconder crimes ou desvendá-los. Devia funcionar como medianeiro entre maridos e

mulheres briguentos, consertar existências fracassadas por desídia dos próprios

interessados. De outras vezes, freqüentadores de minha roda exigiam que eu desse conta

de seus parentes desencarnados. Perdi o sossego em casa e na rua. Os amigos e

familiares conspiravam amorosamente contra minha paz, a título de praticarmos a

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caridade e, nas ruas, fileira crescente de necessitados e curiosos se punha

invariavelmente à minha espera.

Pacheco interrompia-se, pigarreava, e prosseguia:

– E na associação dos próprios companheiros? a vaidade acendia fogueiras difíceis de

tolerar.

A discórdia lavrava entre todos. Ninguém pretendia servir. Todos buscavam mandar e

controlar. A obediência a Jesus e aos Bons Espíritos era mandamento para a boca. O

coração andava longe. Os diretores indispunham-se reciprocamente, por questões

mínimas, os irmãos abusavam da faculdade de analisar. Como ser útil a organizações de

semelhante jaez? Ninguém buscava a verdade cristalina.

Os ignorantes e os instruídos rogavam para que a verdade se adaptasse a eles, às suas

necessidades, aos seus casos... Diante de tudo isto...

O narrador silenciava, reticencioso, e a conversação se reajustava noutro rumo, porque,

efetivamente, a exposição de Pacheco oferecia valioso alicerce na lógica.

A vida, contudo, seguiu o tempo, renovando-se dia a dia, e o inteligente desertor jamais

esqueceu a missão que o generoso Ricardo lhe havia prometido.

As experiências nevaram-lhe os cabelos, os invernos vencidos enrugaram-lhe a face. A

morte arrebatou-lhe a companheira. O mundo pediu-lhe os filhos.

Sozinho agora, de quando em vez procurava antigos companheiros de fé e perguntava ao

fim de longa palestra:

– E a missão? Aguardei-a com tanta esperança...

Correram os dias, até que o nosso amigo foi igualmente obrigado a largar o corpo,

premido pela angina.

Desencarnado, lutou intensamente para restabelecer a visão e a audição singularmente

enfraquecidas.

Cambaleava, hesitante, até que, um dia, viu Ricardo à frente dele.

Ajoelhou-se, confrangido, e indagou, em lágrimas:

– Oh! meu benfeitor, e a missão que me prometestes?

O interpelado sorriu, triste, e exclamou :

– Pudera! fugiste no instante preciso...

– Quê?! – fez o infeliz, apalermado.

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– Sim, – tornou o amigo –, a possibilidade de auxiliar os semelhantes foi a missão que

menosprezaste.

Pacheco pranteou, referindo-se à incompreensão dos homens e às infindáveis querelas

dos companheiros.

Ricardo, porém, revidou, sereno :

– Jesus não precisaria, desenvolver o apostolado que exerceu entre nós, se a Terra já

congregasse anjos e santos. Em verdade, a maioria das criaturas humanas padece de

inqualificável cegueira do coração, diante da Revelação Divina; entretanto, como realizar

a obra do aperfeiçoamento geral, se alguém não contribuir no áspero serviço dm

iniciação? que seria, de nós, Pacheco, se o Cristo não se dispusesse a sofrer pra ensinarnos

o caminho do bem e da vida, eterna? A missão da lua é espancar as trevas, a glória

do bem, é vencer o mal com amor.

O infeliz gritou, em soluços:

– Porque teria de compreender somente agora?

Ricardo, imperturbável, informou :

– Não desesperes, Suporte as conseqüências do erro e aguarda, o porvir infinito.

Regressaras mais tarde à escola do mundo, e, quando estiveres no círculo da, carne,

novamente, nunca te eSqueças de que as missões salvadoras na Terra, quase sempre,

chegam vestidas de avental ou de macacão.

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6 - O ANJO SERVIDOR

Quando o anjo servidor, em trabalho inadiável, alcançou o pátio repousaste, onde se

aglomeravam desencarnados diversos, olhou de relance para ver se descobria alguém

que com ele cooperasse na tarefa que o deslocava do Céu.

Necessitava de companheiro recém-vindo da Terra e, aproximando-se das almas

recentemente desembarcadas no Alem, procurou, lesto, entre elas, o colaborador nas

condições exigidas.

Explicou seus objetivos em poucas palavras e dirigiu-se o cavalheiro de semblante grave,

perguntando:

- Meu irmão, quais são os seus planos?

– Estou aguardando a minha entrada no banquete divino – redargüiu o interpelado, sem

cerimônia –, fui católico, apostólico romano. Servi a diversas congregações, jamais perdi

a santa missa. Confessava-me regularmente. Recebi, centenas de vezes, a sagrada

partícula,, extasiado e feliz. Respeitei os sacerdotes e beijei, reverente, o anel dos meus

pastores. Distribuía esmolas pela conferencia a que me filiara. Honrei a memória dos

santos com dilatadas penitências.

Fixou o horizonte distanciado, persignou-se e rematou:

– Louvado seja o Senhor que me salvou pelo mistério do Santíssimo Sacramento!

Entrarei, contrito, na Corte Celeste! Aleluia! Aleluia!...

O emissário de Mais Alto aprovou-o, com um gesto silencioso, e passou adiante.

Pousando a atenção noutro recém-desencarnado, indagou:

– Amigo, que esperas por tua vez?

– E

– Eu ?! – suspirou – busco a herança de meu Deus. Vivi na religião reformada. Guardei a

fé, acima de tudo. Nunca faltei aos meus cultos.

Fiz a leitura diária da Bíblia, enquanto estive na Terra. Defendi os ideais evangélicos,

ardorosamente. Fui combatente de Cristo, condenando-lhe os inimigos. Contava com a

remuneração de meus serviços, no Juízo Final; no entanto, reconheço hoje que a minha

gloria pode ser apressada. Habitarei a direita de meu Senhor para sempre.

O anjo fez sinal de aprovação e passou a um terceiro.

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– Que aguardas, irmão? – interrogou ele.

Radiante, o novo interlocutor observou:

– Fui espiritista. Preparo-me gostosamente para a jornada em demanda dos mundos,

felizes.

Doutrinei os espíritos das trevas. Pratiquei a caridade em todos os setores. Fui simples e

paciente.

Em tempo algum estive ausente das minhas sessões. Cultivei a pregação sistemática dos

princípios que abracei, em nome de Deus. Confiei-me invariavelmente aos Bons Espíritos.

Agora, como é natural, entrarei na posse dos meus bens eternos.

O missionário angélico aprovou-o igualmente e auscultou o seguinte:

– Que projeto traçaste, amigo? – inquiriu atencioso.

– Eu? eu? – gaguejou o companheiro a quem se dirigira, – para exprimir-me com

verdade, nem eu mesmo compreendo minha presença entre os justos e piedosos. Fui

trazido a este recinto constrangidamente.

E, em pranto mal contido, acrescentou, desaponto:

– Fui ateu, por infelicidade minha. Não admitia a sobrevivência da alma. Não sei,

francamente, se cheguei a praticar algum bem no mundo. Apenas busquei sempre a

execução dos meus deveres de humanidade, atendendo às diretrizes da reta consciência.

Procurei levantar os fracos e os abatidos e proporcionar ensejos de aprendizado e serviço

a ignorantes e ociosos como se o fizesse a mim mesmo, sem nenhum propósito de ser

recompensado na paisagem que me surpreende. Tantos sofredores, porém, encontrei no

caminho terrestre e tanto trabalho vi no Planeta aguardando braços fortes e generosos

que, sabendo hoje da existência de uma Justiça Misericordiosa e Infalível no Céu, muito

me envergonho da descrença que adotei na Terra, embora procurasse lutar para ser um

homem digno, e, se me fosse concedido formar algum projeto, devo assegurar que meu

único desejo é regressar à Terra e cooperar mais ativamente na felicidade dos nossos

semelhantes.

Com surpresa, o anjo abraçou-o e convidou-o a segui-lo, esclarecendo:

– Sim, vamos. Todos os que permanecem neste este átrio de repouso merecem a bênção

divina. O católico, o reformista, o espiritista e o incrédulo, suscetíveis de serem erguidos

até aqui, foram, homens de elevada expressão na, melhoria do mundo. Todavia, para

servir imediatamente mo meu lado, prefiro o irmão que não tenha o pensamento

prisioneiro do salário celestial. Preciso de um cooperador liberado das complicações de

pagamento. A conta prévia costuma dificultar o trabalho.

E, sem mais delonga, desceu em companhia do ex-materialista a fim de atender a serviço

urgente na Terra.

20

7 - NO REINO DA TERRA

Em meio de nossas conversações referentes às grandes personalidades do mundo, o

ancião generoso tomou a palavra e contou, pausadamente:

– Dizem que após as vitórias de Constantino, quando os cristãos se sentiram mais

tranqüilos, em virtude dos cálculos políticos do imperador, o Diabo, certo dia, tomou as

aparências do Mestre e, com maneiras sacrílegas, aproximou-se da multidão reverente e

boquiaberta.

Um dos principais do povo, assumindo ares de liderança, acercou-se de Satanás e

perguntou:

– Senhor, como saberemos quais são os maiores no Reino da Terra?

De olhar coruscante, embora a máscara apostólica em que se dissimulava, o Rei das

Trevas parecia esperar a interrogação. Lançou um gesto

largo à guisa de bênção e falou untuoso:

– Em verdade vos digo que os maiores no Reino da Carne serão aqueles que souberem

usar a mentira com as mais belas cores.

Conquistarão a glória dos cimos quantos conseguirem o grande prêmio das atitudes

escorregadias e despertadoras.

Respirarão os ares da montanha terrestre todos os que defenderem zelosamente as suas

próprias algibeiras, atentos aos códigos dos convencionalismos exteriores.

Viverão nos pináculos os que desempenharem a função de “sal” dos grandes negócios,

fáceis e lucrativos; os que amontoarem camisas, olvidando a nudez dos semelhantes; os

que monopolizarem o azeite e a farinha, esquecendo a fome da vizinhança.

Crescerão sempre os que fugirem das associações pobres e humildes; os que cuidarem

exclusivamente da túnica irrepreensível e bem talhada; os que falarem mais alto nas

assembléias.

Subirão em destaque os que exercerem a tirania, fazendo valer caprichos pessoais acima

do direito dos outros; os que nunca passaram pela dependência e se apegam à liberdade

de tudo fazerem sem consultar a ninguém; os maus e os perversos, que apresentarem

suas obras com a decência do mundo.

Escalarão eminências prodigiosas quantos avançarem sem escrúpulos de qualquer

natureza, de modo a se mostrarem no topo da escada dos interesses imediatos; os que,

despreocupados da reconciliação sincera com os adversários, tornam ao convívio deles,

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em nova fantasia, para vinganças oportunas; os que em absoluta compostura humana

atenderem à prática do mal, ostentando o título de benfeitores.

Ganharão alturas inexprimíveis na Terra os que melhor anularem os seus irmãos; os que,

em lugar do “amai-vos uns aos outros”, exercitarem o “devorai-vos como puderdes”; os

que, ao invés do “orai e vigiai”, aceitarem como lema o “defendei-vos de qualquer modo

sem reparar os meios”.

Revelar-se-ão nas galerias da evidência aqueles que caluniarem como quem elogia, que

perseguirem como quem ajuda, que destruírem o bem como quem combate o mal.

Valorizar-se-ão incessantemente nos mercados da apreciação comum os que

assassinarem o tempo, menosprezarem o trabalho digno e ridicularizarem o estudo sério

e edificante.

Levantar-se-ão como gigantes os cultivadores do sarcasmo, os expoentes da ironia e os

representantes mais finos da crítica.

Viverão assinalados em relevo os clientes da extravagância, os fregueses dos direitos

sem obrigações e os promotores das longas e venenosas palestras que compliquem a

vida alheia.

Atingirão invejáveis cumes os que melhor confundirem a quem os ouça, os afoitos em

possuir e os inteligentes na preservação das vantagens transitórias que lhes são próprias.

Em verdade vos foi dito que enquanto não vos fizerdes simples como as crianças, não

estareis aptos à maioridade no Reino dos Céus! Agora,

porém, vos digo que enquanto não vos fizerdes maduros, na habilidade humana, de modo

algum possuireis o Reino da Terra!

Calou-se o velhinho bom, sob a estupefação que nos tornara de assalto.

Em seguida a longo silêncio, deitou para trás as madeixas de cabelos brancos a lhe

caírem esparsas na testa rugosa, levantou-se, firme, arrimado ao bordão e exclamou para

nós outros, antes de prosseguir o seu caminho:

– Dizem igualmente que até hoje, muitos séculos decorridos sobre os ensinamentos de

Jesus, raríssimas pessoas aparecem pleiteando posição no Reinado Celestial, mas

milhões de criaturas disputam ferozmente, todos os dias, os melhores recursos de

alcançarem a maioridade terrestre, segundo as definições de Satanás...

22

8 - ROTEIRO

A requisição de palpites do plano invisível é tão velha quanto o mundo.

O primeiro templo consagrado à fé religiosa na Terra terá sido, certamente, um tribunal de

súplicas, em que o homem primitivo buscava a manifestarão dos deuses.

E, em todos os tempos, o grito de socorro abafou o hino de hosanas.

O espírito encarnado no Planeta desempenha, acima de tudo, o papel de Édipo, rolando

na tela das circunstâncias tecida por ele mesmo. O filho de Laio, contudo, decifrou os

enigmas que lhe eram propostos pela Esfinge, nos arredores de Tebas, enquanto que o

homem comum se apavora e cai, ante os problemas da Morte, ao redor do sepulcro.

Todavia, não evocamos a imagem para urdir considerações literárias em torno do tema

antigo. Lembramos aqui o afã dos amigas terrestres, procurando-nos o concurso fraternal

a fim de resolverem as questões que lhes dizem respeito. Os “vivos” pedem orientação

aos “mortos” com estranho fervor, como se os esgares do transe final do corpo nos

houvessem promovido a magos infalíveis. Organizações caridosas e personalidades

mediúnicas são diariamente atormentadas, no Espiritismo, de mil modos, por milhares de

solicitações dessa natureza. Com facilidade, renovaríamos no mundo os deliciosos

oráculos gregos, cheios de fantasia pagã, se a luz do Cristo não nos presidisse agora aos

impulsos, porque, sem dúvida, a massa de reclamações e de pedincharia endereçadas à

nossa esfera é de espantar.

Simpatizantes da causa doutrinária querem pareceres do Além, acerca das mudanças do

câmbio, de querelas judiciais ou surpresas do subsolo...

No entanto, não é para esses trêfegos consulentes de médiuns invigilantes que

alinhavamos as presentes observações.

Reportamo-nos aos companheiros sinceros que pedem um roteiro de espiritualidade para

os serviços da vida.

Permanecem cansados e desiludidos, afirmam alguns. Inquietos e torturados, declaram

outros. Pretendem de nós, por vezes, longos comunicados repletos de itens informativos.

Exigem particularidades. Desejam que nos pronunciemos sobre a conduta que lhes

compete na sociedade e no lar. Muitos nos situam ingenuamente entre os juízes de toga

flamejante e aguardam de nossas mãos libelos fulminatórios, como se não estivéssemos

igualmente em luta por extinguir os próprios defeitos e sanar as próprias imperfeições.

É para esses que recordamos as normas esposadas atualmente por nós. A única diretriz

respeitável que poderíamos indicar aos companheiros de reta intenção é o retorno à

estrada do Cristo. À exceção dos espíritos missionários que consumiram a existência na

renúncia santificante, o que estamos fazendo além do túmulo, em boa linguagem, é o

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trabalho de lavanderia. Temos a roupa suja e é impossível prosseguir sem vestes limpas,

através de caminhos iluminados e claros.

A receita lógica, portanto, para a comunidade doa irmãos encarnados, é o reajustamento

no bem legítimo. Os interessados na aquisição de conhecimento e santidade encetem o

esforço no próprio círculo. Quem se candidate à elevação, principie por elevar-se quem

pretenda o convívio das entidades superiores, comece por emergir do vale fundo em que

se concentram os motivos mais baixos da vida e subam para o monte da iluminação...

Não esperem que os desencarnados lhes venham assinalar deficiências. Também nós,

convalescentes da alma, experimentamos a sede de cura definitiva.

Certa feita, enunciou Oscar Wilde que a arte de dar conselhos consiste em indicarmos

para os outros aquilo de que mais carecemos. Não incidiríamos, depois da morte, pelo

menos nós, os pecadores confessos, em erro semelhante.

Busquemos todos o Conselheiro Divino.

Conjuguemos com Ele os verbos orar e vigiar, perdoar e amar, ajudar e servir. Iniciemos a

tarefa pelos irmãos incompreensivos mais próximos.

A época da revelação espiritual, por entre laboratórios e gabinetes de pesquisa, deve ter

passado para os estudiosos leais, que procuram a luz. A atualidade pede recolhimento no

próprio ser. A mente necessita centralizar-se, a fim de sentir a claridade sublime do Alto,

na intimidade da consciência.

Ai dos que não dominarem o corcel da imaginação na corrida que a civilização moderna

improvisou para a morte!...

Se os aprendizes do mundo permanecem, efetivamente, à espera de orientação, por

parte daqueles que os precederam na grande jornada, ouçam nosso apelo: Recorramos a

Jesus, não só no título de Salvador Glorioso da Humanidade, mas também na condição

de Mestre para a nossa experiência individual. Quantos estiverem entediados da exibição

de “compridas túnicas” da extravagância, entre os fariseus de todos os tempos, voltem

conosco à simplicidade original. Lavemos o pensamento nas fontes cristalinas da

Verdade. Façamo-nos crianças e, buscando o Eterno Amigo, supliquemos a Ele com

sinceridade infantil:

– Senhor, ouvimos-Te a palavra, quando chamavas os pequeninos. Ensina-nos a

caminhar, a servir e a viver!...

E estejamos convictos de que o Guia dos Século; nos tomará as mãos frágeis, sereno e

acolhedor, para conduzir-nos “através dos vales da sombra e da morte”, onde, em

companhia d’Ele, “não temeremos mal algum”.

24

9 - APONTAMENTOS DO ANCIÃO

Em face dos aborrecimentos que lhe fustigavam o espírito, ante a opinião pública a

desvairar-se em torno de sua memória, humilde “jornalista morto” ouviu sereno ancião,

que lhe falou com sabedoria:

– Quando Jesus transformou a água em vinho, nas bodas de Caná, os maledicentes

cochicharam, em derredor:

– Que é isto? um messias, incentivando a embriaguez?

Mais tarde, em se reunindo aos pescadores da Galiléia, a turba anotou, inconsciente:

– É um vagabundo em busca de pessoas tão desclassificadas quanto ele mesmo. Porque

não procura os principais?

Logo às primeiras pregações, a chusma dos ignorantes, ao invés de reconhecer os

benefícios da Palavra Divina, comentou, irreverente:

– É insubmisso. Vive sem horários, sem disciplinas de serviço.

À vista da multiplicação dos pães e dos peixes, a massa não se comoveu quanto seria de

esperar, Muita gente perguntou, franzindo sobrancelhas:

– Como? um orientador sustentando ociosos?

Limpando as feridas de alguns lázaros que o buscavam, afirmou-se, em surdina:

– Vale-se da insensatez dos tolos para impressionar!

E quando o viram curar um paralítico, no sábado, consideraram os inimigos gratuitos:

Agride publicamente a Lei.

Por aceitar a consideração afetuosa de Maria de Magdala, murmuraram os maledicentes:

– É desordeiro comum. Não consegue nem mesmo afivelar a máscara ao próprio rosto,

dando-se à companhia de vil criatura, portadora de sete demônios.

Ao valer-se da contribuição de nobres senhoras, qual Joana de Cusa, no desdobramento

do apostolado, soavam exclamações como estas:

– É um explorador de mulheres piedosas!

Vive do dinheiro dos ricos, embora passe por virtuoso!

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– Porque se demorasse alguns minutos, junto de publicanos pecadores, a fim de ensinarlhes

a ciência de renovação íntima, acusavam-no, sem compaixão:

– É um gozador da vida como os outros!

Se buscava paisagens silenciosas para o reconforto na oração, gritava-se com

desrespeito:

– Este é um salvador solitário, orgulhoso demais para ombrear com o povo.

Como se aproximasse da samaritana, com o propósito de socorrer-lhe a alma, indagou-se

com malícia:

– Que faz ele em companhia de mulher que já pertenceu a vários maridos?

Atendendo às súplicas de um centurião cheio de fé, a leviandade intrigou:

É um adulador de romanos desbriados.

Visitando Zaqueu, escutou apontamentos irônicos:

– É um pregador do Céu que se garante com os poderosos senhores da Terra...

Abraçando o cego de Jericó, registrou a inquirição que se fazia ao redor de seus passos:

– Que motivos o prendem a tanta gente imunda?

Penetrando Jerusalém no dia, festivo, e impossibilitado de impedir o regozijo de quantos

confiavam em seu ministério, afrontou sentenças sarcásticas:

– Fora com o revolucionário! Morte ao falso profeta!...

Censurando o baixo comercialismo do grande Templo de Salomão, dele disseram

abertamente:

– É criminoso perseguidor de Moisés.

Levantando Lázaro no sepulcro, gritavam não, longe:

– É Satanás em pessoa!...

Reunindo os companheiros na última ceia, para as despedidas, e lavando-lhes os pés,

observaram nas vizinhanças do cenáculo:

– É pobre demente.

Ao se deixar prender sem resistência, objetou a multidão :

– É covarde! comprometeu a muitos e foge sem reação!

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Recebendo o madeiro, berraram-lhe aos ouvidos:

– Desertor! pagarás teus crimes!

No martírio supremo, era apostrofado sem comiseração:

– Feiticeiro! de onde virão teus defensores?

Torturado, em plena agonia, ouviu de bocas inúmeras:

– Salva a ti mesmo e desce da cruz!

E antes que o cadáver viesse para os braços maternos, trêmulos de angústia, muita gente

regressou do Gólgota, murmurando:

– Teve o fim que merecia, entre ladrões.

O velhinho fez intervalo expressivo e ajuntou:

– Como sabe, isto aconteceu com Jesus-Cristo, o Divino Governador Espiritual do

Planeta.

Sorriu, afável, e rematou:

– Endividados como somos, que devemos aguardar, por nossa vez, das multidões da

Terra?

Foi, então, que vi o pobre escritor desencarnado exibir uma careta de alegria, que se

degenerou em cristalina e saborosa gargalhada...

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10 - UM HOMEM DO MUNDO

Que Sidônio Gonçalves era homem inteligente não havia negar. Cuidava de todos os

interesses da vida terrena com invulgar mestria. Sua capacidade inventiva, na zona do

ganho financeiro, era invejável. De longe, cercava negócios lucrativos. Identificava os

fatores de ordem econômica, usando tão grande tirocínio que as suas contas eram

sempre as de multiplicar.

E dava prazer vê-lo, nas conversações evangélicas, junto aos colegas de trabalho

espiritista. Revelava surpreendente espontaneidade nos conceitos felizes. Não chegava a

comprometer-se na tribuna. Mas fazia profissão de fé na palestra brilhante e macia.

Os amigos espirituais, observando-lhe a acuidade intelectual, tudo faziam por chamá-lo

ao desbravamento de caminhos para a esfera mais alta, mobilizando recursos indiretos.

Sidônio era homem admirável no jogo das aquisições transitórias. Que não faria se

aplicasse a mente às propriedades eternas do espírito?

Em razão disso, congregaram-se parentes próximos e remotos, no "outro mundo”, a fim

de lhe soerguerem o padrão íntimo.

Crivaram-no de mensagens consoladoras e elevadas. Fizeram-lhe nas mãos, por

intermédio de valiosos amigos, centenas de livros notáveis e avisos santificantes. Devia

ser bom e útil, valendo-se da vida terrena para iluminar-se.

Sidônio, porém, fosse nos salões ou nas ruas, esquivava-se, gentilmente, ao serviço,

comentando:

– Quem sou, meus amigos? Sou um homem do mundo, atolado em negócios materiais.

Não estou preparado em face da sementeira divina.

Os benfeitores do Além, contudo, não repousavam. Gonçalves era chamado ao Reino do

Senhor, através de mil modos. Da linha de conhecimento a que chegara, entretanto,

descia sempre, incapaz do impulso de elevação.

Se era convidado a visitar doentes, sua resposta era clara:

– Quem sou eu? nada tenho para dar. Além disso, sinto-me inabilitado para socorrer

enfermos. Tenho os nervos em pandarecos.

Quando algum companheiro, inspirado pelos Espíritos benevolentes, vinha rogar-lhe o

concurso na direção de algum centro de caridade, replicava, de pronto :

– Eu? que pensam de mim? sou indigno de tal responsabilidade. Minha presença

complicaria as questões, ao invés de resolvê-las.

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De outras vezes, irmãos de luta, nas mesma circunstâncias, solicitavam-lhe o empréstimo

do nome para o serviço de beneficência cristã, mas Sidônio respondia, implacável:

– Nada disto! quem sou eu? não tenho valor algum e a opinião pública jamais me

perdoaria.

Substituam-me, porque, de fato, não sirvo...

Continuava freqüentando as reuniões evangélicas e prosseguiam os apóstolos da

espiritualidade acenando-lhe ao coração.

Sugeriram-lhe, certo dia, o desenvolvimento mediúnico, em benefício dos infortunados. O

escolhido, no entanto, repeliu com firmeza:

– Que péssima lembrança! – exclamou melindrado – tenho de viver muitos séculos, antes

de tal cometimento. Sou um homem do mundo, inibido de partilhar de ministério como

esse...

As entidades amigas tentaram, então, situar-lhe o concurso num lactário. Quando

algumas senhoras, orientadas por trabalhadores desencarnados, lhe trouxeram o plano,

Gonçalves explodiu:

– Eu? tratar de órfãos abandonados? que idéia infeliz! Procurem outra pessoa...

E esfregando as mãos, espantadiço, acentuava o estribilho:

– Sou um homem do mundo...

Os círculos superiores buscaram, então, localizar-lhe o serviço num asilo de velhos, para

que a sua mente, através da assistência fraternal, conseguisse algum acesso a regiões

de pensamentos mais nobres. Sidônio necessitava acender a própria luz.

As possibilidades que detinha estavam prestes a extinguir. A existência curta na Terra já

lhe impunha o entardecer. O interessado na bênção, contudo, recusou-a. Registrando o

apelo que se lhe dirigia à cooperação, anunciou sem tergiversar:

– Absolutamente! não aceito a incumbência!

E redizia:

– Quem sou eu?...

Por fim, os Missionários de Cima recordaram-lhe a oportunidade de amparar alguns

loucos, relegados ao hospício. O colaborador retardatário poderia fazer muito ainda.

Ajudaria companheiros devotados ao bem e salvaria vários doentes. Todavia, em face do

novo convite, esperneou, negou e fugiu.

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Veio, porém, a hora da partida e Gonçalves, realmente, experimentou o coração vazio e

angustiado. Nada mais fizera que algemar-se aos interesses efêmeros e, sem o veiculo

de carne, não sabia como utilizar a enormidade do tempo, além-túmulo.

Via-se aflito, sem equilíbrio e sem luz.

Depois de longas e difíceis peregrinações pelas vias da incompreensão e do sofrimento,

foi recebido por dedicado mensageiro celeste, que lhe atendeu as rogativas, tocadas de

pranto.

Sidônio ajoelhou-se.

A frente do sublime missionário e envolvido em seu magnetismo inundado de amor, os

olhos se lhe abriam... Era o retorno à claridade bendita.

Mãos estendidas e trêmulas, interpelou o emissário, que não se mostrava disposto a ouvilo,

por muito tempo, em virtude das obrigações que o reclamavam a outros lugares:

– Mensageiro do Céu – implorou comovedoramente –, valei-me por quem sois! Sempre

guardei muita fé na Providência Divina, procurei as reuniões edificantes em que os

Espíritos Bons nos ajudavam, fui um crente e deixei o corpo grosseiro, esperando a

admissão nas Esferas Felizes.

Ante o embaixador silencioso, repetia, inquieto:

– Não me conheceis, porventura? será possível seja eu agora desfavorecido pelos

protetores aos quais recorri?

O preposto de Jesus, estampando indisfarçável tristeza na fisionomia calma, falou:

– Conheço-o bem. Todas as vezes que lhe enviávamos um apelo de serviço, sua mente

dava-se pressa em perguntar pela própria identidade.

– Sim, sim... – gaguejou Sidônio, extremamente desapontado – mas refere-se -

efetivamente a mim? Sabeis, acaso, meu nome?

– Como não? – esclareceu a entidade angélica – você é um homem do mundo... quando

modificar a sua direção, transferindo sua alma de residência, procure-nos... Estaremos

prontos a atender...

Desviou-se o emissário seguindo outra rota e, tornando à sombra, Gonçalves, de coração

apresso, passou a recordar...

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11 - ESCLARECIMENTO

Você pergunta, meu amigo, pelas razões que nos levam a escrever tanto.

Não deveríamos procurar a Corte Celestial para repouso? Teríamos tamanha saudasse

da tarefa humana, a ponto de reabsorver-lhe, voluntariamente, as angústias? A seu ver, o

sepulcro seria o caminho ideal para o esquecimento absoluto.

Até aí, sua indagação se perde no domínio das comum, quanto aos motivos que o

compelem a trabalhar pela garantia da própria felicidade.

Seu inquérito, contudo, vai mais além. Deseja saber porque nos dedicamos ao assunto

religioso.

– “Todos os espíritos desencarnados – alega espantadiço – se empenham na difusão dos

princípios de fé e caridade. Emparelham-se com os pregadores insistentes do alto dos

púlpitos. Não possuiremos suficiente número de ministros e padres no mundo?”

Equivoca-se em semelhante generalização. Nem todos os desencarnados se consagram,

ainda, a serviço tão nobre. Milhões deles permanecem imantados à Crosta do Mundo,

impedindo o progresso mental das criaturas que lhes são afins. Preferem a discórdia e a

malícia, como autênticos demônios soltos, e, quando podem, chegam a destilar venenos

cruéis, através de escritores invigilantes. Mantêm a ignorância de muita gente, a respeito

da eternidade, para melhor se acomodarem às reclamações da inferioridade em que se

comprazem.

No entanto, não é para comentar as perturbações da nossa esfera de ação que lhe

escrevo esta carta.

Refere-se você à religião, como se a fé representasse bolorento asilo para espíritos

inválidos. Certamente envolvido na onda turbilhonaria que agita o oceano de nossa

civilização decadente, também você penhorou o raciocínio nas ilusões do homem

econômico. Crê possível a regeneração do mundo, de fora para dentro, e dar-se-ia,

talvez, de bom grado, a qualquer renovador sedento de sangue que prometesse um

mundo reformado por decretos que se vão caducando, de cinco em cinco anos.

Dentro de tal clima, não pode compreender o serviço religioso.

Admite que um pomar se mantenha e produza sem a sementeira? Persistiria a vida

humana sem o altar da maternidade?

O castelo teórico e o campo da experimentação pratica, em que se assentam os

princípios filosóficos e científicos da Terra, não se sustentariam sem a fonte oculta e

invisível da mística religiosa.

Somente o ser privado de razão consegue movimentar-se sem raízes na espiritualidade

superior.

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Os grandes escritores, supostamente materialistas, que você menciona com indisfarçável

prazer, não foram senão atletas do pensamento em conflito com as imposições do

sacerdócio organizado. Não hostilizavam Deus, objeto sagrado de seus estudos e

cogitações. Combatiam os processos infelizes, muita vez usados pelos homens de má fé,

para situarem o Eterno e Supremo Senhor na ordem política. No fundo, identificavam a

luz divina, na própria lâmpada de intelectualidade que lhes aclarava a mente.

A religião é chama sublime, congênita na criatura. Todas as noções de direito no mundo

nasceram à sua claridade e todas as secretarias de justiça, nos mais diversos países do

Globo, devem a ela, sua procedência.

Quando o primeiro selvagem compreendeu que lhe competia respeitar a taba do irmão, tal

entendimento ter-lhe-ia surgido, à face da gloriosa visão do céu, recolhendo, através da

contemplação do Sol e das estrelas, da sombra e da tempestade, a primitiva idéia de

Deus.

Subtrair o pensamento religioso da experiência humana seria o mesmo que desidratar o

corpo da Terra. Sem a água divina da espiritualidade, qualquer construção planetária se

destina a irremediável secura.

Conseguiria você viver exclusivamente no deserto?

O homem poderá rir com Voltaire, estudar com Darwin, filosofar com Spinoza, conquistar

com Napoleão, teorizar com Einstein, ou mesmo fazer teologia com São Tomás;

entretanto, para viver a existência digna, há que alimentar-se intimamente de princípios

santificantes, tanto, quanto entretém o corpo à custa de pão. Quem não dispõe do divino

combustível para uso próprio, recorre inconscientemente às reservas alheias, porquanto,

não existe idealismo superior que não tenha nascido da atividade espiritual e, sem ele, o

conceito de civilização redunda em grossa mentira.

Não sorria, pois, usando o sarcasmo, perante aqueles que consagram o tempo ao

ministério religioso.

Com os cientistas modernos, vocês poderão entrevistar o átomo, fotografar a célula e

positivar a curvatura do espaço... Há muita gente na América que já pensa em pedir às

autoridades administrativas da política dominante a reserva de terrenos na Lua,

considerando o desenvolvimento dos veículos a jato...

Poderão cogitar de tudo isto, mas não deslocarão a idéia religiosa em um milímetro,

sequer, de rota. A fé representa claridade de um sol que ilumina o espírito humano, por

dentro, e, sem essa claridade no caminho, o Planeta poderia perder, em definitivo, a

esperança num futuro melhor.

Quanto ao fato de demorar-me, por algum tempo, na atualidade, entre admiráveis amigos

que cogitam de servir, depois da morte, ao Cristianismo renascente, creia que isto ocorre

por gentileza deles e não por merecimento de minha parte. Não sou nenhum Livingstone

em Áfricas do “outro mundo”. Quem define o meu caso, com paciência, é o nosso velho

sábio Shakespeare. Disse ele, certa vez, que “quando Deus nos vê endurecidos no mal,

cerra-nos os olhos para a imundície e nos obscurece o juízo, de modo que chegamos a

32

adorar os nossos desvarios e a zombar de nós mesmos, caminhando, cheios de cegueira

e de orgulho, para a perdição”. Segundo depreende, sou um enfermo à procura de

melhoras.

Embora desencarnado, não posso saber se você guarda saúde integral. Creio, porém,

que, se algum dia atingir a infelicidade a que cheguei, não deixará de fazer conforme

estou fazendo.

33

12 - O ANJO CONSERTADOR

Quando o crente enfermo conseguiu encontrar, após longas súplicas, o Anjo Consertador,

prosternou-se, reverente, e falou, banhado em lágrimas:

– Benfeitor Celeste, socorre-me, por piedade! Trago o estigma do fracasso. Sou

profundamente infeliz!... Contra mim permanecem associadas todas as forças do mal.

Nas menores particularidades do caminho sou perseguido sem remissão... Meus

negócios falham, meus interesses sofrem prejuízos infindáveis, minha saúde perece...

Vivo coberto de preocupações e sofrimentos. Embalde, busco o auxílio da prece, porque,

depois de freqüentar templos diversos e tentar devoções diferentes, me vejo tão aflito

quanto antes. Restaura-me o destino! Is o benemérito consertador das vidas frustradas.

Atende-me! sinto-me desfalecer...

Deteve-se o emissário angélico e auscultou delicadamente o desventurado. Mirou-o,

compadecido, e considerou :

– Realmente, o seu desequilíbrio comove.

Fixou nele o olhar muito límpido e iniciou carinhoso interrogatório:

– Meu amigo, você tem fé?

– Sim – respondeu o sofredor –, minha confiança em Jesus é ilimitada.

– E deseja, restabelecer sua paz, aplainar seu caminho?

– Suspiro por semelhantes realizações.

O instrutor fez pequena pausa e acrescentou:

– Você sabe que o homem é uma peça viva, dono de uma consciência própria, senhor de

uma razão pessoal e herdeiro de Deus...

– Sim, reconheço.

– Pois bem – ajuntou o ministro da espiritualidade –, o serviço restaurador que me

compete há que basear-se na aceitação do homem. Não podemos assaltar o coração,

quando e criatura, se refugia na cidadela da vaidade e do orgulho. Assim, se você nos

aguarda a intercessão, responde lealmente às minhas perguntas.

O enfermo, envolvido na luz irradiante do embaixador celestial, reconheceu que seria

inútil mentir.

– Você vive em família e exerce uma profissão regular?

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– Sim...

– Compreende seus deveres de amor, gentileza e assistência, para com os domésticos e

suas obrigações de respeito, solicitude e atenção para com os superiores e subalternos?

Vivendo em comunidade, na luta diária, sabe livrar seu fígado e seu coração das nefastos

projeções vibratórias do ódio e da revolta? Exercitar, regularmente, suas noções de

fraternidade? Combate a intemperança mental pela contenção dos impulsos inferiores?

Procura dar a cada pessoa que o cerca o que lhe pertence? Serve sem reclamações e

evita o clima escuro da maledicência? Põe o espírito de serviço acima de suas

preocupações individuais? Preserva, em suma, a própria paz?

– Oh! tudo isto é demasiadamente difícil...

– Concordo – observou o anjo –, e elevação demanda esforço, mas o meu irmão não

espira à claridade do alto?

– Ora – aventou o doente, um tanto desencantado –, como agir, dentro de tais normas,

em ambiente refratário aos nossos ideais? Não tolero

exigências, nem aceito cooperação incompleta. E se me vejo rodeado de pessoas sem

mérito, segunda meu modo de ver, como tributar-lhes consideração respeitosa? não

compreendo a justiça inoperante.

Além disto, no círculo doméstico, sou infenso aos desaforos de quantos me acompanham

na vida.

Dou-me, com muito mais harmonia, com estranhos. Meus parentes fazem questão de

hostilidade permanente e não cedo um centímetro em meus pum de vista. Se preferem a

guerra aberta, que fazer senão aceitá-la?

O mensageiro esboçou um sorriso discreto e continuou :

– Se sua posição no lar e no trabalho é tão perigosa, vejamos seu campo social. Busca

entrosar-se com os seus semelhantes? dedica-se a algum serviço de benemerência?

Recebe os sofredores com bondade e esquece facilmente o ataque dos maus? Consegue

imunizar seu cérebro e seus nervos contra a influência das forças tenebrosas? Vive com

moderação pare afastar a indesejável vinheta da inveja, exemplificando a correção para

que os tentáculos da calúnia não lhe atinjam a mente? Age, em tudo, com prudência,

justiça e solidariedade fraternal, afim de que o despeito e a inconformação não lhe

ameacem a sementeira do bem? Consagra simpatia aos infortunados, ajuda os que erram

e procura descobrir o verdadeiro necessitado, contrariando, por vezes, suas próprias

inclinações? Sabe ser o médico de si mesmo, auxiliando os aflitos do caminho, para que

as emissões benéficas do agradecimento o amparem e curem? Respeita os outros, de

modo a ser respeitado pelo maior número de pessoas?

O implorante passou do desapontamento à revolta e objetou:

– Afinal, estou muito distante de tal perfeição. Impossível ser anjo, entre espíritos

satânicos.

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Se eu me mostrar simpático com os infortunados, talvez me devorem... Em geral, os

sofredores são mais preguiçosos que propriamente infelizes. Não sei aturar gente má e

acredito que a justiça não existe senão para essa espécie de criaturas. Se me não

defender contra os vizinhos, acabarão por esmagar-me.

Fitou no interlocutor divino os olhos enfadados e rematou:

– Justamente por viver enfermo e desalentado é que venho rogar-lhe auxílio...

– Mas, explique-se. Que pretende, então?

– Não és, anjo sublime, o administrador da restauração? Quero o reajustamento da vida,

um milagre do socorro celestial.

– Oh! sim – suspirou o emissário –, você também está esperando uma violência de

Deus...

E, desvencilhando-se do sofredor, despediu-se, calmo. Devia atender a outros setores de

assistência. Massas angustiadas aguardavam-no mais além...

– Oh! abandonas-me, desamparas-me? – gritou o pediste singular, sob forte irritação – o

próprio Céu me detestará?

O mensageiro angélico, entretanto, esclareceu, sereno:

– Você ainda não foi desconsertado a ponto de merecer conserto. Antes de mossa

intervenção em sua estrada, e sofrimento terá grandes que fazeres ao pé de seu roteiro...

E, acenando para ele com a destra fraterna, concluiu:

– Noutro século, encontrar-nos-emos outra vez...

36

13 - COMO TRATAR MÉDIUNS

Você pergunta a mim, Espírito desencarnado, qual a maneira adequada de tratar os

médiuns. Alega que muitos passaram por seu clima individual, sem que pudesse

compreendê-los. Começam a tarefa, entusiásticos, e, lestos, abandonam a sementeira.

Alguns sustentam o serviço por algum tempo; outros, contudo, não vão além de alguns

meses. Muitos se afastam, discretos, recuando deliberadamente, ao passo que outros

tantos resvalam, monte abaixo, atraídos por fantasias tentadoras.

Afirmando seu amor à doutrina que nos irmana agora, você indaga com franqueza: como

tratar essa gente, para que o Espiritismo não sofra hiatos nas demonstrações da

sobrevivência?

Não tenho pretensões a ensaísta de boas maneiras. Malcriado quanto tenho sido, faleceme

recurso para escrever códigos de civilidade, mesmo no "outro mundo".

Creio, todavia, que o médium deve receber tratamento análogo ao que proporcionamos a

qualquer ser humano normal.

Trata-se de personalidade encarnada, com obrigações de render culto diário à refeição,

ao banho e ao sono comum. Deve atender à vida em família, trabalhar e repousar,

respeitar e ser respeitado. Não guardará o talento mediúnico, à maneira de enxada de

luxo que a ferrugem carcome sempre, mas evitará a movimentação intempestiva de suas

faculdades, tanto quanto o ferreiro preserva a bigorna. Cooperará, com satisfação, no

esclarecimento dos problemas da vida, junto aos estudiosos sinceros; todavia, não

entregará seus recursos psíquicos à curiosidade malsã dos investigadores sem

consciência, detentores de leviandade incurável, a pretexto de colaborar com os cientistas

do clube dançante, que vazam comentários acadêmicos, entre um sorriso de mulher bela

e uma dose de aguardente rotulada de uísque.

Esta é uma definição sintética que me cumpre fornecer, de passagem; entretanto, já que

você se refere ao amor que assegura consagrar ao Espiritismo edificante, conviria sondar

a própria consciência.

Realmente, são inúmeros os companheiros que se precipitam da tarefa mediúnica ao

resvaladouro do desencanto e do sofrimento, como andorinhas de vôo alto, atiradas,

semimortas, do firmamento ao bojo escuro do abismo. Vemos, no entanto, que se os

pássaros, algumas vezes, descem ao círculo tenebroso, sob o fascínio de perigosa ilusão,

na maioria dos casos caem mutilados sob golpes de caçadores inconscientes.

Doloroso é dizer; contudo, quase todos os médiuns são anulados pelos próprios amigos,

sem maior consideração...

O plano superior traça o programa de trabalho, benéfico e renovador. O funcionário da

instrumentalidade concorda com os seus itens e dispõe-se a executá-lo, mas,

escancarada a porta do serviço, a chusma de ociosos adensa-se-lhe em torno.

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Esqueçamos a fileira compacta dos investigadores e curiosos que transformam em cobaia

o primeiro doente psíquico que lhe cai sob as unhas. As reclamações insaciáveis dos

próprios irmãos de ideal são mais venenosas. Identificando-as, somos forçados a

reconhecer que os espiritistas modernos têm muito de aprender acerca do equilíbrio

próprio, antes que o primeiro médium com tarefa definida possa cumprir integralmente

sua missão.

O intermediário entre os dois planos move-se com extrema dificuldade para entregar às

criaturas terrestres a mensagem de que é portador. Se os adversários gratuitos recebemno

a pedradas de ironia, os afeiçoados principiam por erigir-lhe pedestal envolto em

grossas nuvens de incenso pernicioso. O servidor inicia o ministério, quase sempre às

tontas, embriagado pelo aroma ardiloso do elogio desregrado. Dentro em pouco tempo,

não sabe como situar-se. Os adeptos e simpatizantes da causa se incumbem de

convertê-lo em permanente motivo de espetáculo. Quando o exibicionismo não se prende

à tentação de convencer os vizinhos, fundamenta-se em supostas razões de caridade.

Intensifica-se a luta entre a esfera superior, que deseja beneficiar o caminho coletivo com

a projeção da nova luz sobre a noite dos homens, e a arena terrestre, onde os homens

cuidam de manter, com desespero, os seus interesses imediatos na carne. O responsável

direto, pela ação mediúnica raramente segue marcha regular. Se permanece no serviço

do ganha-pão digno, os companheiros se encarregam de perturbá-lo, chamando-o

insistentemente para fora do reduto respeitável em que procura ganhar a vida com a

nobreza e honestidade.

Se mostra alguma instabilidade na realização, improvisam-se tribunais acusadores, ao

redor dele; mas se revela perseverança no bem, surge, com mais ímpeto, o assédio de

elementos arrasadores, ansiosos por derrubá-lo. Se permanece no posto, é obrigado a

respirar solidão quase absoluta, de vez que as exigências do serviço se multiplicam, por

parte dos companheiros de fé, enquanto seus domésticos e afins, em regra geral, dele se

afastam, cautelosamente, por não haverem nascido com a vocação da renúncia. Passa a

viver, compulsoriamente, as existências alheias, inibido de caminhar na própria rota. É

compelido a ingerir, com o almoço, fluidos de desesperação e inquietude de pessoas

revoltadas e intemperantes que o buscam, ostentando o título de sofredores. Debalde

namora o banheiro com saudade de água salutar na pele suarenta, porque os legítimos e

falsos necessitados da própria confraria lhe absorvem as horas, reclamando atenção

individual. Trabalha no setor cotidiano de ação, sob preocupações e expectativas

infindáveis da guerra nervosa. É quando consegue a estação de pouso noturno, alcança o

leito de corpo esfalfado e a resistência em frangalhos.

Se o vanguardeiro não retrocede, fustigado pelos demônios da imprudência e da

insensatez e se não se faz presa de entidades maliciosas que o conduzem ao palco da

"triste figura", cabe-lhe o destino da válvula gasta prematuramente.

Liga-se o aparelho radiofônico, entretanto, a mensagem chega rouquenha ou não pode

enunciar-se. A máquina delicada estala e chia inultimente. A eletricidade e a revelação

sonora continuam existindo, mas o aparelho complicou-se, não pela lei do uso e, sim,

pelos golpes do abuso.

Compreende, acaso, o que estou comentando?

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A força espiritual e a contribuição renovadora dos missionários da sabedoria vibrarão

junto de vocês, todavia, como se exprimirem convenientemente se os interessados

perseguem os aparelhos registradores e os inutilizam, através da exaustão e do

vampirismo, portadores da enfermidade e da morte?

Como somos forçados a reconhecer, meu caro, é tão difícil encontrar médiuns aptos a

lidarem com os espiritistas do primeiro século de codificação kardeciana, como é raro

encontrar espiritistas que saibam lidar com eles...

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14 - A ORIENTAÇÃO CRISTÃ

Na sessão de conforto educativo, o consulente percebeu que o benemérito orientador

espiritual se incorporara à médium em transe, e, logo que o abnegado mentor terminou a

preleção sobre tema evangélico, pediu licença para rogar-lhe conselhos.

– Pois não, meu filho! – exclamou o espírito amigo, generosamente – estou aqui para

ouvi-lo; abra seu coração...

O cavalheiro, que principiou tímido, inclinou-se para o benfeitor, exibindo gesto filial, e

começou:

– Meu santo protetor, estou exausto! Sinto-me tão necessitado de orientação como o

sedento precisa de um gole d’água. Perdi os bens que me eram mais caros!... Trago a

saúde arruinada e, embalde, perambulo através de clínicas custosas. O fígado não

funciona normalmente, os rins ameaçam-me a cada hora, o coração, como louco, bate

desregulado... De organismo semimorto, minha família relegou-me ao abandono. Minha

parentela desapareceu. Tenho irmãos consangüíneos que poderiam, decerto, ampararme;

contudo, fogem de mim, qual se eu fora criminoso impenitente. Semelhante situação

era, entretanto, suportável. Acontece, porém, que minha esposa fugiu de mim, após

dezesseis anos de convivência, deixando-me irremediavelmente desconsolado...

Ai! meu benfeitor – acentuou, lacrimoso –, como atender a problema tão aflitivo? Sou um

fantasma errando, em vão, em busca de paz. O lar vazio é meu tormento infernal de cada

minuto. Meu azar não parou aí. Antipatizando-se comigo, meu chefe de trabalho

expulsou-me sem caridade, faz duas semanas. Chamou-me, áspero, despejou sobre ruim

um montão de palavras agressivas e cerrou-me as portas da casa que servi por mais de

sete anos consecutivos... Sou o mais infeliz dos homens... Já intentei contra a vida. No

entanto, parece que ainda nisso me persegue a má sorte, porque todas as minhas

tentativas falharam... Todas as oportunidades de melhoria são vedadas a mim... Que fiz,

meu santo benfeitor, para merecer tantas desgraças? Estarei, porventura, esquecendo de

Deus?...

Forte crise de soluços embargou-lhe a voz. O instrutor desencarnado afagou-lhe os

cabelos prematuramente encanecidos e considerou:

– Tenha paciência, filho! não há efeito sem causa.

O pedinte cobrou novo ânimo e implorou:

– Inspira-me, devotado protetor! orienta-me. Não me abandones!...

– Que deseja que eu faça? – indagou o mensageiro espiritual.

– Traça-me roteiro certo... meu destino é um novelo embaraçado... Aconselha-me, em

nome de Jesus!

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– Do Mestre que desceu das Alturas, a fim de nos servir e salvar?

– Sim – gemeu o interpelado.

– Então, meu filho, volte ao princípio e retifique a própria senda. O Pai concedeu a você

uma saúde harmoniosa. No entanto, porque asfixiou os rins com os “drinques” irritantes?

Em que se baseou para consumir largas forças em noitadas de prazer sem significação?

Ainda é tempo de reconstruir. Esqueça os venenos diários que lhe desgastam as

energias, lentamente, através de um copinho aparentemente sem importância, e imprima

ritmo regular à sua experiência de homem na Terra.

Procure, outrossim, as boas graças da família, assinando um armistício de boa vontade.

Você alude ao abandono dos parentes, mas não se refere ao escárnio que votou a todos

eles, quando a sua posição melhorou no banco em que trabalhava. Esqueceu facilmente

os deveres de solidariedade fraternal e chega ao ponto de acusar os outros! Regresse,

qual filho pródigo, e revele sincera humildade diante de todos. Peça desculpas para as

suas faltas; seja carinhoso e bom... Quanto à esposa, que dizer? você olvidou a tirania

doméstica de que seu coração voluntarioso abusou vastamente? A mulher, sentinela de

seu lar e mãe de seus filhos, não é um animal que deva ser tratado a dinheiro e

palavrões. Decorridos mais de três lustros de sacrifício incessante, a pobrezinha não

resistiu e afastou-se... Procure-a, nutrindo verdadeiro arrependimento pelos seus erros

voluntários e involuntários! Penitencie-se. Peça perdão pelo passado de sombras e

guarde suas lágrimas a fim de selar junto dela seus novos compromissos de redenção.

Quanto ao seu campo de serviço, se você deseja orientar-se em Jesus, torne ao seu

chefe e rogue-lhe desculpe o seu procedimento impensado. Busque agir na pauta dos

homens corretos, sem trair as obrigações de gentileza e reconhecimento para com quem

se fez credor de seu respeito, carinho e gratidão.

O consulente sofredor enxugou o pranto, talvez ferido no amor próprio, e, depois da

palavra do orientador encerrando a reunião em sentida prece, dispersou-se o grupo,

notando eu, porém, que o cavalheiro, declaradamente tão infeliz, não pronunciou nem

mais uma frase...

Jamais me esqueci da orientação nobre e bela, doce e franca, que lhe foi ministrada pelo

sábio da espiritualidade superior, mas não sei se foi aproveitada. Voltando, entretanto, ao

templo de oração em que vi cair semelhante bênção, debalde procurei o irmão desditoso,

que ali não voltou, nunca mais...

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15 - O CANDIDATO APRESSADO

Quando Tiago, filho de Zebedeu, seguia o Mestre, a pequena distância, junto às margens

do Jordão, eis que se aproxima jovem e piedoso senhor de terras, interessado em aderir

ao Reino do Céu.

Resoluto, avançou para o apóstolo e indagou:

– Em verdade, o Messias é portador de uma Boa-Nova?

O seguidor do Nazareno, mostrando imensa alegria no olhar cândido e lúcido, informou,

feliz:

– Sim, é o mensageiro da Vida Eterna. Teremos, com Ele, o mundo renovado: nem

opressores, nem vítimas, e, sim, irmãos, filhos do mesmo Pai...

– A que lema ele obedece? – inquiriu o rapaz, dono de extensa propriedade.

– O amor a Deus, acima de tudo, e ao próximo como a nós mesmos – respondeu Tiago,

sem titubear.

– E a norma de trabalho?

– Bondade para com todos os seres, inclusive os próprios inimigos.

– O programa?

– Cooperação com o Pai Supremo, sob todos os aspectos, em favor do mundo

regenerado.

– O objetivo?

– Felicidade para todas as criaturas.

– Que diretrizes estatui para os momentos difíceis?

– Perdão extenso e sincero, esquecimento do mal, auxílio mútuo, fraternidade legítima,

oração pelos adversários e perseguidores, serviço desinteressado e ação altruística sem

recompensa, com absoluta perseverança no bem, até ao fim da luta.

– Espera vencer sem exército e sem armas?

– O Mestre confia no concurso dos homens de boa vontade, na salvação da Terra.

– E, mesmo assim, admite a vitória final?

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– Sem dúvida. Nossa batalha é a da luz contra a sombra; dispensa a competição

sangrenta.

– Que pede o condutor do movimento, além das qualidades nobres mais comuns?

– Extrema fidelidade a Deus, num coração valoroso e fraterno, disposto a servir na Terra

em nome do Céu.

O moço rico exibiu estranho fulgor nos olhos móveis e perguntou, após ligeira pausa:

– Acredita possível meu ingresso no círculo do Profeta?

– Como não? – exclamou Tiago, doce e ingênuo.

E o rapaz passou a monologar, evidenciando sublime idealismo :

– Desde muitos anos, sonho com a renovação. Nossos costumes sofrem decadência. As

vozes da Lei parecem mortas nos escritos sagrados. Fenece o povo escolhido, como a

erva improdutiva que a Natureza amaldiçoa. O romano orgulhoso domina em toda parte.

O mundo é uma fornalha ardente, em que os legionários consomem os escravos.

Enquanto isto, Israel dorme, imprevidente, olvidando a missão que Jeová lhe confiou...

Tiago assinalava-lhe os argumentos, deslumbrado. Nunca vira entusiasmo tão vibrante

em homem tão jovem.

– O Messias nazareno – prosseguiu o rapaz, em tom beatífico – é o embaixador da

verdade, E’ indispensável segui-lo na santificação. O Templo de Jerusalém é a casa

bendita de nossa fé; entretanto, o luxo desbordante do culto externo, regado a sangue de

touros e cabritos, obriga-nos a pensar em castigo próximo. Cerremos fileiras com o

Restaurador. Nossos antepassados aguardavam-no.

Aproximemo-nos dele, a fim de executar-lhe os planos celestiais.

Demorando agora o olhar na radiante fisionomia do filho de Zebedeu, acrescentou :

– Não posso viver noutro clima... Procurarei o Messias e trabalharei na edificação da nova

Terra!...

Desvencilhou-se do cabaz de uvas amadurecidas que sustinha na mão direita e gritou:

– Não perderei mais tempo!...

Afastou-se, lépido, sem que o discípulo do Cristo lhe pudesse acompanhar as passadas

largas.

Marcos, o evangelista, descreve-nos o episódio, no capítulo dez, encontrando-se a

narrativa nos versículos dezessete a vinte e dois.

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Pôs-se o rapaz a caminho e chegou, correndo, ao lado de Jesus. Arfava, cansado.

Pretendia imediata admissão no Remo do Céu e, ajoelhando-se, exclamou para o Cristo.

– Bom Mestre, que farei para herdar a Vida Eterna?

O Divino Amigo contemplou-o, sem surpresa, e interrogou:

– Porque me chamas bom? ninguém é bom senão um, que é Deus.

Diante da insistência do candidato, indagou o Senhor quanto aos propósitos que o

moviam, esclarecendo o rapaz que, desde a meninice, guardara os mandamentos da Lei.

Jamais adulterara, nunca matara, nunca furtara e honrava pai e mãe em todos os dias da

vida.

Terminando o ligeiro relatório, o jovem inquiriu, aflito:

– Posso incorporar-me, Senhor, ao Reino de Deus?

O Mestre, porém, sorriu, e explicou:

– Uma coisa, te falta. Vai, dispõe de tudo o que te prende aos interesses de vida, material,

dando o que te pertence aos necessitados e aos pobres. Terás, assim, um, tesouro no

céu. Feito isto, vem e segue-me.

Foi, então, que o admirável idealista exibiu intraduzível mudança. Num momento,

esqueceu o domínio romano, a impenitência dos israelitas, o sonho de redenção do

Templo, a Boa-Nova e o mundo renovado. Extrema palidez cobriu-lhe o rosto, e ele, que

chegara correndo, retirou-se, em definitivo, passo a passo, muito triste...

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16 - A PERDA IRREPARÁVEL

A frente dos candidatos à nova experiência na carne, o instrutor espiritual esclarecia,

paternalmente :

– Não percam a tranqüilidade em momento algum, na reconstrução do destino. Em plena

atividade terrestre, é imprescindível valorizar a corrigenda. O erro não pode constituir

motivo para o desânimo absoluto. O desengano vale por advertência da vida e, com a

certeza do Infinito Bem, que neutraliza todo mal, após aproveitar-lhe a cooperação em

forma de sofrimento, o espírito pode alcançar culminâncias sublimes. O Pai somente

concede a retificação aos filhos que já se apropriaram do entendimento. Usem, pois, a

compreensão legítima, em face de qualquer provação mais difícil. A queda

verdadeiramente perigosa é aquela era que nos comprazemos, entorpecidos e

estacionários. Reerguer-se, por recuperar a estrada perdida, será sempre anão meritória

da alma, que o Tesouro Celeste premiará com o descortino de oportunidades

santificantes. A serenidade deve presidir aos mínimos impulsos de vocês na tarefa

próxima. Seria as fontes da ponderação individual, o rio da paz jamais fertilizará os

continentes da obra combativa. É indispensável, por isso, recordar o caráter precário de

toda posse na ordem material. O tempo, que é fixador da glória dos valores eternos, é

corrosivo de todas as organizações passageiras, na Terra e noutros mundos. Todas as

formas, com base na substância variável, perecerão no que se refere à máscara

transitória, dentro dos jogos da expressão.

Conservando-se atentos aos imperativos de marcha pacífica, não se esqueçam,

sobretudo, de que todo o equipamento de recursos humanos é substituível. Todos os

quadros que vocês integrarão se destinam ao processo educativo da alma. Em breve,

estarão soterrados nos séculos, como todos os espetáculos de que participamos nas

paisagens que se foram...

A lei de substituição funciona diariamente para nós todos.

Cada testemunho incompleto, cada lição imperfeita, serão repetidos tantas vezes quantas

forem necessárias.

A própria Natureza, na Crosta do Mundo, instruí-los-á diferentemente ao vaivém das

situações e das coisas.

Primavera e inverno renovam-se para a comunidade dos seres terrestres, nos diversos

reinos, há milhares de anos. As influências lunares se rearticulam, de semana a semana,

difundindo o magnetismo diferente da luz polarizada. Nos círculos planetários, infância,

juventude e velhice dos corpos funcionam igualmente para todos.

Qual ocorre na zona das formas temporárias, prepondera a substituição na ordem

espiritual.

Quem não dispõe de parentes consangüíneos, com boa vontade encontrará família maior

nos laços humanos, Se vocês não puderem suportar o clima de uma bigorna, encontrarão

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acesso à carpintaria e, em qualquer casa de ação edificante, desde que se inspirem no

ideal de servir, serão aquinhoados com as possibilidades de realizar intensivamente, na

sementeira e na seara do bem.

Nas artes e nas ciências, receberão todos vocês a benção de aprender e reaprender, de

experimentar e recapitular incessantemente.

Nas circunstâncias, aparentemente mais duras, ninguém entregue o espírito ao

desespero. Tal qual a alvorada que faz a luz resplandecer além das trevas, a

oportunidade de reajustamento, reabilitação e ascensão brilhará sempre sobre os

abismos nos quais nos precipitemos, desavisados e incautos... Guardem a paz

inalterável, porquanto, ao longo do problema esclarecido e do caminho trilhado pelos

seres mortais, tudo será reformado e substituído...

O orientador mostrou diferente brilho nos olhos e acrescentou:

– Há, porém, no decurso de nossas atividades uma perda irreparável. Com exceção dos

valores prevalecentes na jornada evolutiva, é esse prejuízo a medida que define a

distância entre o bom e o mau, entre o rico e o pobre, entre o ignorante e o sábio, entre o

demônio e o santo. Semelhante lacuna é impreenchível. Deus dispôs a Lei de tal modo

que nem mesmo a justiça d’Ele consegue remediá-la, em benefício dos homens ou dos

anjos. Ante a expectação dos ouvintes, o instrutor esclareceu:

– Trata-se da perda do dia de serviço útil, que representa ônus definitivo, por distanciarnos

de todos os companheiros que se eximem a essa falha.

E enquanto os aprendizes se entreolhavam, admirados, o mentor paternal concluiu:

– Ajudando-nos na preservação da paz, Jesus: recomendou-nos: “contemplai os lírios do

campo!”

Entretanto, para que não zombemos do profundo valor das horas, foi Ele mesmo quem

nos advertiu:

“Caminhai enquanto tendes luz!”

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17 - REMÉDIO CONTRA TENTAÇÕES

Instado por um cristão novo de Jerusalém, que se fazia portador de preciosos títulos

sociais, desejoso de ouvi-lo quanto a remédio eficaz contra as tentações, Simão Pedro, já

velhinho, explicou sem rebuços:

– Certo homem de Gaza, que amava profundamente o Senhor e lhe observava,

cauteloso, os mandamentos, após cumprir todos os deveres para com a família direta,

viu-se, na meia-idade, plenamente liberto das obrigações mais imediatas e, porque suas

aspirações mais altas fossem as de integração definitiva com o Altíssimo Pai, consagrouse

à contemplação dos mistérios divinos. Recolheu-se à oração e à meditarão exclusivas.

Extasiava-se diante das árvores e das fontes, perante o lar e o céu, louvando o Criador

em cânticos interiores de reconhecimento. Tão maravilhosamente fiel se tornara ao Poder

Celestial, que as Forças Divinas permitiram ao Espírito das Trevas aproximar-se dele,

qual aconteceu, um dia, a Job, na segurança de sua casa em Hus.

O Rei do Mal acercou-se do crente perfeito e passou a batalhar com ele, tentando

enegrecer-lhe o coração.

Após longos dias de conflito acerbo, o aspirante ao paraíso implorou ao Eterno, em

soluços, lhe fornecesse recurso com que esquivar-se à tentação. Suplicou auxílio com

fervor tão intenso, que o Misericordioso, através de um emissário, aconselhou-o a cultivar

a terra.

O piedoso devoto atendeu à ordem, rigorosamente.

Adquiriu extensos lotes de chão, preparou sementeiras e adubou-as; protegeu grelos

tenros, dividiu as águas com inteligência; tomou a colaborarão de regular exército de

servidores e, vindo o Perverso Dominador, tão ocupada lhe encontrou a mente que foi

obrigado a adiar a realização dos escuros propósitos.

O aliado de Deus agiu com tanto brilho que, em breve, a propriedade rural de que se

fizera fiador converteu-se em abençoado centro de riqueza geral, a produzir,

mecanicamente, para a fartura de todos.

Atendida a designação que procedia do Alto, o mordomo voltou a repousar e o Malvado

se lhe abeirou dos passos, novamente.

Outro combate silencioso e o devoto suplicou a intervenção do Altíssimo.

Manifestando-se, por intermédio de devotado mensageiro, recomendou-lhe o Pai

Bondoso fiar a lã dos rebanhos de ovinos que lhe povoavam as pastagens, e o

beneficiado do conselho celeste observou fielmente a determinação.

47

Movimentou pessoal, selecionou carneiros, adquiriu teares e agulhas, fez-se credor de

larga indústria do fio e, chegando o Maligno, notou-o tão ocupado que, sem guarida para

provocações, se refugiou a distância, aguardando oportunidade.

O esforço do missionário, em poucos anos, imprimiu grande prosperidade ao serviço

fabril, dispensado-o de maiores preocupações.

Reparando-o livre, regressou o Gênio Satânico rearticulou-se a guerra íntima.

O aprendiz da fé recorreu à prece e outra vez implorou medidas providenciais ao Doador

das Bênçãos.

O Poderoso, exprimindo-se por um anjo, induziu-o a moer grãos de trigo para benefício

comum.

Voltou o favorecido ao trabalho e construiu, utilizando o concurso de muita gente, valiosos

moinhos, suando, à frente de todos, na fabricação de farinhas alvas. Tornando o Dragão

das Sombras e percebendo-lhe tão grande preocupação na atividade salvadora, retirou-se

de novo, constrangido, espreitando ocasião mais oportuna.

Com o êxito amplo do servo leal, novo descanso abriu-se para ele e Satanás retornou,

furioso, à batalha pela posse de sua vida.

O piedoso discípulo da salvação refugiou-se na confiança em Deus e o Todo

Amantíssimo, por outro enviado, aconselhou-o a erguer um pomar, em benefício dos

servidores que lhe seguiam a experiência.

Retornou o crente ao serviço ativo e tão entregue se achava às responsabilidades novas

que o Perseguidor se viu na contingência de retroceder, na expectativa de ensejo

adequado.

A fidelidade conferiu ao trabalhador operoso novas bênçãos de merecida prosperidade e

o apaziguamento lhe felicitou o caminho.

Quando se fixava o crente, despreocupado e feliz, na beatitude, a fim de melhor

agradecer as dádivas divinas, eis que ressurge o Maldito, convocando-o a retomar o

duelo oculto.

O devoto, entretanto, compreendendo, por fim, as lições do Senhor, não se internou em

novas rogativas. Envolveu-se no serviço útil ao mundo e aos semelhantes, até ao fim de

seus dias, quando partiu da Terra ostentando a coroa da eternidade.

O ouvinte sorriu, algo apreensivo, e o velho Pedro, calejado no sofrimento e no sacrifício,

terminou, muito calmo:

– O único remédio seguro que conheço contra as tentações é o mergulho do pensamento

e das mãos no trabalho que nos dignifique a vida para o Senhor.

E deu por finda a fraternal entrevista.

48

18 - O DEVOTO INCOMPREENSIVEL

Ante o céu claro-escuro do crepúsculo, o devoto extasiado rogava ao Altíssimo:

– Senhor, abri-me os celeiros da prosperidade espiritual! Preciso crescer mentalmente,

para servir-vos. Sinto, Pai, que minhas forças jazem adormecidas... Que fazer por elevarme?

Disponho de elementos materiais suficientes com que prover às exigências da vida.

No entanto, no fundo, reconheço-me desalentado e abatido... Quero vibrar em vosso

infinito amor, dedicar-me à procura infatigável de vossos dons de sabedoria; contudo,

intimamente, demoro-me na indecisão do viajante que se vê desamparado sob a neblina

espessa... Ó Magnânimo Pai, não me deixeis dormitar à margem do caminho... Não sou

ignorante das coisas sagradas. Sei que é imprescindível trabalhar na iluminação de nós

mesmos para que o mundo seja finalmente redimido... Estou informado de que a vossa

vontade impera sobre a nossa, mas aprendi, desde muito tempo, que a nossa

colaboração individual é indispensável na execução dos programas salvadores. Todavia,

como avançar se me faltam recursos ao espírito? Ajudai-me na superação de mim

mesmo; auxiliai-me a rasgar a venda que me impede a contemplação de vossa gloriosa

luz, impressa em todos os quadros da vida. Não me desampareis. Sou vosso. Pertençovos.

Dilatai-me o entendimento, dai-me ocasião de revelar o aproveitamento das bênçãos

que já me concedeste, facilitai-me a demonstração das dádivas com que me

aquinhoastes. Aguardo-vos a manifestação paternal, descerrai para mim as fontes da

graça, ao cansado genitor que, de há muito, lutava e a fim de que minha compreensão,o

se expanda e cresça. Sejam executados os vossos desígnios!...

Recordando a saudação do anjo, na formosa narrativa do Evangelho de Lucas, repetiu o

pensamento de Maria:

– Cumpra-se no escravo a vontade do Senhor!...

Depois da prece, levou o lenço aos olhos e enxugou as lágrimas que a contrição lhe

trouxera.

A noite começava a enfileirar constelações no campo celeste.

Retomou, então, o caminho do lar, reconfortado. Orara com fervor e aguardava a bênção

divina para o próprio engrandecimento.

Antes, porém, de transpor o jardim doméstico, eis que a esposa, aflita, vem ao encontro

dele.

Um dos filhos, molestado por estranha cólica e atendido pelo médico, submeter-se-ia a

delicada intervenção cirúrgica, em breves horas.

Atordoado, como se alguém lhe houvesse desfechado tremendo golpe no crânio, não

voltara ainda a si, quando um servidor de confiança, palidíssimo, se lhe gostou à frente,

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notificando que o maior depósito de algodão de sua propriedade fora inexplicavelmente

incendiado. Não puderam situar a procedência do fogo que lavrara, implacável, enquanto

encontrou combustível.

O devoto fez força para não cair. O sangue concentrava-se-lhe no cérebro, aos

borbotões. Estava muito distante do próprio domínio. A mente vagueante parecia incapaz

de exercer qualquer direção construtiva sobre o pequeno mundo fisiológico...

Contudo, não movera os pés. Nesse comenos chega, suarenta, velha tia, excessivamente

nervosa, comunicando-lhe que o pai agonizava em cidade próxima...

O devoto esqueceu que a Bondade Divina podia curar-lhe o filho, conferir-lhe novo

algodoal mais rico e mais extenso e proporcionar merecido repouso ao cansado genitor

que, de há muito, lutava e padecia na Terra. Num minuto aquele homem se transformou.

Ele que rogara aos céus recursos para iluminar-se, para dilatar-se mentalmente, para

crescer em conhecimento e virtude e engrandecer-se para a vida imperecível, ao invés de

receber os testes divinos, com fortaleza e serenidade, a fim de melhor e mais plenamente

aproveitar a oportunidade de elevação, gritou, acabrunhado :

– Onde está Deus que me não ouve as orações Sou um desventurado, o mais infeliz dos

homens!...

E caiu no leito vencido, quando a luta apenas começava, fugindo às possibilidades de

crescimento espiritual para cair nos sedativos dum médico.

Registrando-lhe a experiência, de perto, na condição de amigo desencarnado, reconheci

que quase todos os crentes, ao suplicarem a Proteção do Céu, não pretendem, no fundo,

respirar o clima superior da verdade e da luz... O que pleiteiam, sem dúvida é a posição

de orquídeas na estufa celeste

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19 - O ORÁCULO DIFERENTE

—Meu feiticeiro do Velabro — informava Túlia Prisca à mulher de Cusa, em Cafarnaum—

é prodigioso. Imagina que venho à Judéia a conselho dele, interessado em minha

felicidade. É oráculo dos melhores! Trouxemo-lo da Acaia, na derradeira viagem que meu

tio, o procurador Amiano, por lá realizou em missão administrativa. Lê os presságios e

sabe, antecipadamente, quem vencerá em qualquer dos jogos no circo. Descobre

criminosos e indica, com absoluta precisão, o local a que se acolhem objetos perdidos.

Joana, que a ouvia, atenciosa, mostrava singular estranheza na expressão fisionômica.

Após ligeira pausa, continuou a patrícia, piscando os olhos:

—Druso, meu marido, apaixonou-se por Mécia, a esposa de Flácus. O crime

estrangulava-me o coração. Tentei abrir as veias e morrer, mas Tissafernes, o meu mago,

resolveu o problema. Aconselhou-me a viagem de recreio e assegurou-me que outros

homens simpatizariam comigo, como vem acontecendo. Deixei os filhinhos com as velhas

escravas e a galera solucionou o resto. Tenho gozado bastante e, quando voltar, se

Mécia insistir na intromissão, o encantador fabricar-me-á decisivo ungüento. Ficará mais

feia que as bruxas do Esquilino.

Logo intervalo caiu sobre a conversação. Contudo, a ilustre forasteira prosseguiu:

—Joana, talvez não me conheças suficientemente Devo confessar-te, porém, que gosto

de consultar os feiticeiros de qualquer condição. Ouvi falar de um deles, que se torna

famoso nesta província. Sei que lhe freqüentas a roda.

Não poderás conduzir-me ao mago nazareno ?

A interpelada fez o possível por esquivar-se. Não lhe cabia perturbar o Mestre com visitas

levianas e inúteis. No entanto, a insistência venceu a relutância. E, em breves minutos,

Jesus recebia-as na modesta residência de Pedro.

No olhar dEle pairava a melancolia sublime de quase sempre. A jovem matrona intimidouse.

Aquele homem não se nivelava aos vulgares ledores de sorte. De sua fronte partiam

forças incompreensíveis que lhe impunham respeito. E não soube tratá-lo senso por

"Senhor", copiando a reverente atitude da amiga. Não conseguia dissimular o próprio

assombro. O Nazareno parecia ignorar-lhe a elevada posição hierárquica. Não se

biografava. Não comentava os êxitos que lhe assinalavam a passagem junto do povo.

Encarava-a, de frente, sem falsa superioridade e sem servilismo. E como o trabalhador

seguro de si, atento ao quadro das próprias obrigações, esperou que a visitante

declinasse os motivos que a traziam.

Constrangida pelo inesperado, indagou com desapontamento:

—Senhor, conheceis o mago Tissafernes, que nos serve a casa ?

Jesus entreabriu os lábios, num sorriso amoroso" e respondeu:

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—Existem adivinhos em toda parte...

Confundida pela observação inteligente, Túlia receou novo mergulho no silêncio e

acrescentou:

—Venho até aqui, buscando-vos o concurso...

—Que deseja de mim?—perguntou o Mestre, sem afetação.

—Meu marido desviou-se do meu devotamento. Tenho sofrido amarguras que os servos

mais desprezíveis não conhecem. Que dizeis a isto, Senhor ?

—Que a dor bem compreendida é uma luz para o coração. . .

—Oh! mesmo quando somos ofendidos?

—Sim.

—Não deveremos revidar?

—Nunca.

—E a justiça?

—A justiça é uma árvore estéril se não pode produzir frutos de amor para a vida eterna.

—Desejais dizer que, se meu esposo desvaira, cumpre-me pagar por ele?

—Não tanto. A felicidade é impraticável onde não haja esquecimento das culpas.

—Insinuais que devo perdoar a meu esposo?

—Tantas vezes, quantas forem necessárias.

Túlia, irritada, descontrolou-se e observou:

—Druso é um devasso. Tem sido implacável algoz. Compete-me respeitá-lo e amá-lo,

mesmo assim ?

—Por que não? — tornou o Mestre —quem não sabe renunciar aos próprios desejos,

dificilmente receberá o dom divino da alegria imperecível.

—Cabe-me, então, voltar, reassumir a governança doméstica e retomar a

responsabilidade da educação de meus filhos, como o animal que se deixa atrelar ao

carro insuportável ?

—No sacrifício reside a verdadeira glória—disse Jesus, imperturbável.

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—Oh!—reclamou a patrícia desencantada—Tissafernes, o mago de minha confiança,

aconselhou-me o recreio, a alegria. . . Não posso duvidar dele. ~ um oráculo completo.

Tem respostas infalíveis; vê os nossos deuses e ouve-os sempre...

Fixando o Senhor, espantadiça, objetou:

—Admitis, porventura, esteja ele errado?

O Mestre sorriu e respondeu:

—A voz de nossa consciência não pode concordar invariavelmente com a opinião dos

melhores amigos. O dever é mais imperioso que os presságios de qualquer adivinho.

—E não tendes novidades para mim? venho de tão longe e não me agradais? que

mensagem recolherei na visita ?

—Rogo ao Pai—disse Jesus, muito sereno—que a ilumine e abençoe.

Nesse instante, Joana apresentou as despedidas.

E lá fora, conturbada talvez pela imensa claridade do céu casada aos reflexos

diamantinos do lago, a nobre romana falou, desapontada

—É. . . Decididamente, este oráculo não é o mesmo. . .

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20 - EM RESPOSTA

Insurge-se você, meu amigo, contra as informações do plano espiritual, relacionando as

formas de que nos utilizamos. Espanta-se ao saber que temos domicílio próprio, com todo

o equipamento indispensável à vida organizada de quem prossegue evolvendo e

aprendendo sempre.

Assegura que materializamos excessivamente as imagens e que nossas páginas não

passarão talvez de alucinações da mente mediúnica.

Não estranho sua atitude. Também eu pensaria o mesmo aí na Terra.

Imagine que eu, homem versado na experiência de ganhar e perder, via no mundo o

terrível esforço do aluno de primeiras letras, gemendo na articulação do alfabeto, de modo

a penetrar, passo a passo, na oficina da ciência; identificava os tremendos conflitos

impostos a qualquer profissional digno, interessado em especializar-se, e, no entanto,

quando se tratava da morte do corpo, acreditava piamente que a alma do defunto voaria a

pleno céu, à procura do Trono de Deus. Bastaria o passaporte de alguma religião

respeitável e, a meu parecer, o “morto” entraria nos gozos do paraíso. Sabia que os

tribunais humanos ministram a justiça com atenuantes e agravantes, segundo as

circunstâncias prevalecentes no doloroso drama dos réus e não ignorava que a escala da

educação é muito maior que as cinco linhas da pauta musical. Todavia, nunca me passou

pela idéia que o nosso aprimoramento continuaria intensivo nestas paragens. Admitia que

os “mortos” seriam anjos ou demônios absolutos, exceção dos que fossem detidos no

purgatório pela polícia divina, na situação dos soldados que se demoram na “terra de

ninguém”, porque, para os crentes em geral, o purgatório, entre este mundo e o outro, é

uma espécie de Território do Cerre, entre alemães e franceses dos últimos séculos.

Como reconhece, sua concepção de hoje pertenceu-me igualmente, enquanto aí estive.

Nunca pude compreender , a experiência corporal na Terra como transitório fenômeno de

exteriorização do espírito imperecível; no meu modo de entender, o espírito era projeção

do corpo.

Voce já viu engano maior?

No entanto, era um equívoco que minha vaidade acalentava zelosamente.

Não desconhecia que sábios ilustres me haviam precedido na estrada do conhecimento,

que a sandália dos heróis e dos santos havia mergulhado na poeira planetária muito antes

de meus pés doentes; contudo, jamais aceitei outros pontos de vista que não fossem os

meus.

O túmulo, porém, impôs-me a arte do reajustamento.

Contínuo aprendendo com a ingenuidade do grupo escolar. E rendo graças a Deus pela

concepção do ensejo imprescindível.

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Não se julgue nas vizinhanças do paraíso e nem nos queira mal por darmos notícias de

cidades e instituições, templos e hospitais, árvores e fontes, além do sepulcro...

Quando nossos olhos imóveis recebem o tradicional emplasto de cinzas, verificamos que

o céu está mais alto e o horizonte mais longínquo.

Você não aplaudiria o nudismo e acredita que os desencarnados, para serem

verdadeiros, não deviam usar vestimenta alguma; estima a bênção do santuário

doméstico, na doce e amorosa comunhão dos laços afetivos e admite que, para

cultivarmos a realidade universal, cabe-nos a obrigação de adotar regime separatista,

vagabundeando de esfera em esfera, sem objetivo e sem lar. Agrada-lhe a ordem o

grêmio doutrinário a que dedica atenção, mas exige que, em nos comunicando com os

“vivos”, estejamos na condição dos bandos de vespas e passarinhos.

Não acredite que a sepultura o exonere da responsabilidade individual de prosseguir

aprendendo com o bem. Deus é amor; entretanto, a harmonia é a base de suas

manifestações, e um pai, a fim de ser amoroso, não deixará de ser justo.

Você sabe que o peixe, para elevar-se das profundezas abismais a que se adaptou,

necessita modificar a bexiga natatória. E que fazer com milhões de mentes humanas,

estacionadas em processos inferiores da inteligência, incapazes de respirar além da

atmosfera densa do vale, se não lhes forem proporcionadas aqui condições de vida

análogas ou profundamente análogas as da Crosta Terrestre?

Não suponha que a morte lhe venha pregar asas nos ombros.

Se, pelo metro evolutivo, ainda não possuímos perfeita estatura humana, como aguardar

promoção compulsória ao reino angelical?

Assinalando-lhe os protestos, lembro-me de pequena fábula que o velho La Fontaine não

escreveu.

Dizem que uma borboleta brilhante, interessada em preparar a lagarta, diante do futuro,

pousou na comunidade em que nascera, com grande escândalo para todo o ninho.

– Em verdade – disse ela – sou membro da família de vocês, guardo fisiologia semelhante

e apesar de ir longe, através dos ares, vendo cidades e rios, seres e plantas que vocês

não conhecem, continuo sendo um lepidóptero aperfeiçoado... Em breve, vocês serão tal

qual sou e, por minha vez, não me distanciarei excessivamente de nossa furna, a fim de

cuidar dos interesses de nossos descendentes...

Contudo, não pôde prosseguir. As larvas, de ventre colado ao solo, debandaram sob forte

susto.

Todas recusaram a mensagem e negaram a mensageira. Isto, no entanto, não impediu o

trabalho da Natureza.

A borboleta, em breve, deitava ovos. Dos ovos, nasciam lagartas. As lagartas dormiram

em casulos. E dos casulos surgiam borboletas...

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21 - TENTANDO EXPLICAR

Entre os que protestam contra o nosso correio informativo, alega você impossibilidade de

crer em nossos trabalhos salvacionistas, com utilização de apetrechos que parecem

copiar o material terrestre.

Aqui, referimo-nos a redes luminosas; acolá, descrevemos sistemas defensivos.

Realmente, vocês que ainda permanecem chumbados ao chão do Planeta, não devem

ser constrangidos a aceitar o que não vêem.

Um botânico europeu dá noticias ao colega americano da existência de plantas

desconhecidas na região equatorial. O interessado, se deseja certificar-se pessoalmente,

concorda com os sacrifícios da viagem e observa para si mesmo. Em nosso caso, não

regateamos o noticiário e a viagem para a analise requerida é possível; no entanto, quem

se dispõe a pagar o preço, constituído de esforço e aperfeiçoamento na renúncia?

Quase sempre, vocês chegam aqui, como aconteceu a nós mesmos, brutalmente

projetados pela morte, à maneira do foguete que os sábios pretendem atirar à face da

Lua.

Com referência ao assunto, assevera você que a força mental dos espíritos

desencarnados dispensaria semelhantes recursos e, por fundamentar a assertiva, declara

que os seus doentes psíquicos, obsidiados por entidades perversas, cedem perfeitamente

às suas emissões magnéticas, no uso da oração.

Não duvido de suas possibilidades regeneradoras e curativas.

Habituou-se, porém, você, aos cálculos da multiplicação ‘?

Admite, porventura, que a força suscetível de ser colhida na queda de um regato seja

idêntica ao potencial da cachoeira?

Transfira essa imagem para as energias associadas do mal e faça a conta.

Provavelmente, lembrará que nos compete canalizar os recursos do bem com intensidade

maior e mais vigorosamente. Creio que acabaremos agindo assim, mas, por enquanto, da

minha parte, sou obrigado a confessar que, depois de muitos séculos, somente agora me

sinto impulsionado para o bem legítimo.

A seu parecer, o milagroso “fiat” do Gênesis estaria em nossas mãos, logo após as

peripécias do transe finai do versículo físico.

A potência mental de alta voltagem, no entanto, não é obra improvisada.

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Refere-se aos serviços de magnetismo curador em sua casa de saúde, como se tudo

representasse simples realização da vontade pessoal. O trabalho para você é um jogo

mecânico entre seus desígnios e suas energias.

Efetivamente, seu concurso é precioso.

Que seria das grandes cidades, habituadas às vantagens do serviço elétrico, se a tomada

humilde se negasse à ligação com a urina?

Quando administra os benefícios espirituais aos necessitados, você não pode ver a

multidão invisível, agrupada em torno de sua prestimosa colaboração: nem os

desencarnados em desequilíbrio que lhe aproveitam o concurso fraterno, nem os

benfeitores generosos que se utilizam de suas mãos, de seu pensamento e de sua boa

vontade. Em razão disso, a prece e o devotamento aos semelhantes constituirão seus

pontos de apoio invariáveis, de vez que seus olhos mortais não podem identificar toda a

extensão do quadro, sem grave dano para o seu equilíbrio na tabela de lutas sentares da

reencarnação. Aceite ou não a verdade, você não pode agir sozinho. Ainda que dispense

a cooperação das entidades amigas, sempre que sua consciência honesta estiver no

socorro ao próximo, permanecerão elas em sua companhia. Quando não seja por você,

será pelos necessitados.

Além disso, parece-me que você ainda não estudou, pacientemente, o problema alusivo

aos lugares de cura. Diz-nos o dicionário que o hospital é um estabelecimento de cuidado

aos enfermos.

Entretanto, existem centros dessa natureza que são favoráveis e desfavoráveis.

Desdobra-se-lhe a contribuição numa casa de amor evangélico, ideada no plano superior

e vagarosamente materializada na Terra. Trabalhadores encarnados e orientadores

desencarnados nela encontram, por isto, ampla esfera de vibrações adequadas, com

base segura na simpatia e na confiança. Pessoalmente, porém, estive, nos últimos

tempos, em vários hospitais desfavoráveis. Refiro-me a alguns “campos de concentração”

da guerra européia. Essas instituições agrupavam enfermos de todos os matizes.

Milhares de vítimas, flageladas e atormentadas, e centenas de carrascos, de mistura com

incalculável número de espíritos desligados do envoltório terreno, em doloroso

desequilíbrio. Creia que a nossa colaborarão mental – e aqui me reporto a companheiros

infinitamente superiores ao modesto servidor que lhe escreve estas linhas – era

reduzidíssima, em relação às emanações do ódio que ali imperava monstruosamente. O

campo estava repleto de obsidiados, mas... a zona era desfavorável.

Naturalmente, você interrogará:

– Porquê? por que motivo não se impõe o superior sobre o inferior?

Respondendo, apenas direi que passou pelo mundo Alguém, cuja força mental,

renovadora e divina, levantava paralíticos e restituía a visão aos cegos. Impunha respeito

aos seres das trevas com a sua simples presença e chegou a devolver o tônus vital a

corpos cadaverizados. Trouxe A Terra a maior mensagem do Céu e, um dia, em se vendo

cercado pelos semelhantes, obcecados de inveja e ciúme, incompreensão e egoísmo,

orgulho e ódio, ingratidão e indisciplina, injustiça e maldade, recolheu as energias

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sublimes e infinitas para dentro de si próprio, e entregou-se à cruz do sacrifício sem

defender-se.

Se você me perguntar o motivo, francamente, não saberia responder.

Admito que o Embaixador Excelso, assim procedendo, fixou a lição da necessidade do

Reino de Deus no Coração Humano.

Cada homem, filho ao Criador e herdeiro da Eternidade, há de crescer por ai,

aprimorando-se e elevando-se, usando a vontade e a inteligência. Cada criatura deverá a

si própria o céu ou o inferno em que se encontra.

Recordo-me que o Divino Crucificado ensinou, certa feita:

– O Reino Celeste está dentro de vós!

Quem não desejar descobri-lo em si mesmo, alcançará a posição do enfermo que se

nega a todos os processos de cura. Para um doente dessa espécie, médicos e remédios

não têm razão de ser.

Quanto ao nosso material socorrista e às nossas milícias, às nossas turmas de vigilância

e organizações que honram a hierarquia e a ordem, o trabalho e a evolução, nos quadros

do mérito e da justiça., tudo isso é do nosso regimento doméstico.

Até que vocês se reúnam a nós, pelo golpe inevitável da morte, acreditarão em nossos

informes se quiserem, mesmo porque, de acordo com a velha filosofia popular, quem dá o

que pode, a mais não é obrigado.

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22 - ALEGAÇÃO JUSTA

O grande orientador espiritual, de palestra com alguns amigos, enunciava expressivas

considerações.

– Como vocês todos sabem – alegou, justiceiro –, os companheiros encarnados, desde

tempos imemoriais, vêm à nossa esfera, à procura de modelos para as atividades na

Crosta do Mundo. A massa preguiçosa, exclusivamente interessada no câmbio das

emoções físicas, jamais se moveu nesse sentido, porque recebe sem discutir as medidas

que lhe são impostas. Todavia, os homens ativos e inteligentes, sempre que podem,

largam envoltórios pesados e reclamam-nos a colaboração. Estudam-nos os serviços,

quanto lhes é possível e examinam-nos os institutos evolutivos. Aliás, possuímos

instruções especiais para facilitar-lhes semelhante acesso, tanto quanto somos

autorizados a subir, mais além, buscando a inspiração de nossos Maiores.

Revelando infinita benevolência no olhar, fez longa pausa e prosseguiu :

– Ministros da fé, administradores de bens públicos, cientistas e artistas, condutores do

pensamento e da cultura da Humanidade encarnada, sequiosos de renovação em

benefício dos contemporâneos, toda vez que se mostram à altura dos títulos de que são

detentores, apressam-se em granjear-nos o concurso espiritual. Nem sempre sabem o

que desejam e somos compelidos a agir com eles à moda dos professores de primeiras

letras nos jardins da infância. Suportamos-lhes os impulsos intempestivos, sem dar-lhes

tabefes, e determinamos horas adequadas para as lições. Logo que se afastam do corpo,

em desligamento provisório pela influência do sono, congregamos os mais aptos ao

progresso intelectual, no serviço de preparação desejável. Usualmente descobrem

inúmeras dificuldades para compreender-nos, apontando contínuos obstáculos a fim de

manobrarem convenientemente com a memória. Muitos recebem colaboração nossa

durante vinte, trinta, cinqüenta anos, e acabam surpreendidos pela morte, sem cumprirem

um só item das compridas promessas que nos hipotecam. Alguns, contudo, bem

intencionados e persistentes, atravessam óbices, ultrapassam fronteiras, quebram

cadeias e nos fixam os ensinamentos, convertendo-se em vanguardeiros do tempo em

que se fazem visíveis na Crosta Planetária. Tornam-se, via de regra, combatidos pelos

irmãos ociosos, porque os indolentes hostilizam os servidores leais, em todas as épocas.

Muitos desses amigos perseverantes acabam martirizados, conforme aconteceu ao

próprio Cristo, Nosso Senhor; todavia, chega a ocasião em que as idéias deles se fazem

louvadas e aproveitadas, Para companheiros dessa qualidade, nossas portas vivem

abertas. Estudam conosco, desde o problema do alimento ao da mais alta distribuição de

.justiça. Carreiam daqui para a Terra todas as migalhas de luz que podem arquivar no

campo mental, medianamente evolvido, como ocorre às abelhas operosas que

transportam para a colméia a quantidade de essências, segundo a capacidade que lhes é

própria, É assim que, observando-nos os códigos de direito, por lá fizeram leis de acordo

com as suas inclinações pessoais, instituições casas que vão progredindo gradativamente

na direção da Justiça Universal. Esses bandeirantes do idealismo superior, em moldes

idênticos, erguermos templos religiosos, aprimoraram a ciência, iluminaram a filosofia,

instalaram a indústria e aperfeiçoaram o comércio. De quando em quando, as massas

recordam a animalidade primitiva, regridem nos impulsos, abrem-se aos gênios satânicos

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da destruição e atiram-se umas contra as outras, através de embates sanguinolentos;

mas, dominadas pelos homens superiores que nos visitam, acabam sempre por ensarilhar

as armas, reconstruindo as cidades, recompondo a economia e reajustando raciocínios,

atraídas novamente para os nossos círculos de ação. Entrementes, os vanguardeiros do

progresso se reúnem por intermédio de acordos e conferências, para novos juramentos a

Deus, exaltando os mais elevados símbolos da dignidade humana e buscando-nos,

incessantemente, os serviços. Raros perguntam de onde lhes vêm os valores da intuição

e a maioria costuma classificar de fantasia a nossa colaboração.

O elucidador fixou significativa expressão fisionômica e aduziu:

– Colocavam-nos, antigamente, na galeria dos deuses, e éramos conhecidos por Musas.

A verdade é que, desde os primórdios da vida planetária, trabalham na cópia geral dos

nossos modelos. Jamais conseguem imitar-nos convenientemente. Admiram-nos as

torres luminosas e constroem edifícios escuros a que chamam arranha-céus. Observamnos

os caminhos floridos e brilhantes e traçam duro leito de pedras no chão, a fim de

cuidarem da fraternidade. Contemplam-nos as utilidades graciosas e leves e improvisam

máquinas pesadas, a exsudarem combustível malcheiroso e a lhes ameaçarem a vida

corporal a cada momento. Semelhante situação, porém, é justificável. O escultor poderá

guardar maravilhosa ideação, mas, para exteriorizá-la, dependerá do material acessível

às suas mãos e convenhamos que a condensação de fluidos na Crosta da Terra se

caracteriza por aflitiva dureza.

O orientador parou, movimentou a cabeça expressivamente e concluiu:

– Até aqui, tudo lógico, tudo razoável...

Acontece, porém, que nos últimos tempos alguns de nossos companheiros deram noticias

de nossas organizações aos homens encarnados. E sabem o que se verificou? Há grande

barulho, em torno de nossos correios. Os próprios copistas de nosso esforço respiram

imensa revolta. Dizem que não temos personalidade, que os “mortos” são plagiadores dos

“vivos”, que nossas cidades, leis, instituições e equipamentos, que toda a nossa

multimilenária estrutura de ordem e trabalho não passa de reflexo da cultura deles. Se

pudessem, moveriam ação judicial contra nós, junto aos gabinetes da engenharia divina...

Não julgam tudo isso espantoso e incompreensível?

Ninguém respondeu; mas, porque o nobre instrutor sorrisse francamente, a nossa

gargalhada geral se espalhou, envolvente e cristalina.

60

23 - CARTA DESPRETENSIOSA

Meu caro. Recebi seus apontamentos.

Sei que me não aceitará a resposta com o desejável entendimento. Se ainda me guarda

na lembrança, não me tolera a sobrevivência.

Ler-me-á as palavras, longe daquele acolhimento afetivo da época em que me afundava

num escafandro igual ao seu, sob o denso mar do oxigênio terrestre.

Receber-me-á o esforço de agora com extremo espírito crítico. Buscará saber, antes de

mais nada, se empreguei os verbos acertadamente e se pontuei a missiva com a

elegância necessária.

Provavelmente dirá que meus recursos empobreceram, que minha argumentação não

convence.

Vamos, contudo, às suas ponderações.

Afirma você que os espíritas desencarnados, pelo noticiário que fornecem ao mundo, se

movimentam num plano absolutamente irreal. A seu ver, moramos em casas ilusórias,

cuidamos de instituições que não existem, colhemos flores e frutos de mentira e

pairamos, como sombras, num campo de fantasia. E acrescenta que, para ajuizar de

nossa situação, toma por base o mundo em que pisa. Na apreciarão que lhe orienta os

conceitos, a esfera em que você ainda respira é a mais sólida de toda a estruturação

universal. Coisa alguma sofre modificação ao redor de seus passos, segundo a posição

especialíssima em que se coloca.

Se me demorasse por aí, talvez experimentasse amnésia idêntica. Basta dizer-lhe que

enquanto carreguei o fardo benéfico da carne era eu perfeito desmemoriado em relação

aos meus próprios defeitos. E, quanto às minhas necessidades essenciais, nunca atentei

para o tempo que corria, célere, em torno de mim.

Quando os amigos me atiraram terra e cal ao corpo inerme, foi que meditei na

transitoriedade das situações e das coisas. Reportei-me então à infância distanciada e

revi nossa aldeia do Norte, perseguida pela areia invasora. Casario e arvoredo

converteram-se, pouco a pouco, num montão de ruínas. Companheiros de jogas infantis

desapareceram. Alguns haviam partido à procura de cidades fascinantes, outros jaziam

submersos na neblina da sepultura. Reajustou-se-me a memória, gradativamente, e

tornei, pelos olhos da imaginação, à casa que me viu nascer. A morte brandira, ali, sua

foice enorme,, a torto e a direito. A doença lavrara por lá, copiando o fogo em pastagem

alcantilada. Transformações não tinham conta. O padeiro falecera de uma noite para o

dia, vencido por um insulto cerebral. A lavadeira que residia em frente de nós, mulher

robusta e desassombrada, repentinamente passou a usar muletas, em razão da perna

quebrada. Nossos vizinhos, de tempos a tempos, trajavam rigoroso luto, homenageando

parentes mortos; e até o padre mais velho, que despendia semanas, transmitindo-nos o

61

catecismo, certa manhã se deixou transportar para o cemitério, quando menos

esperávamos.

Tudo se modificava, de hora a hora, até que nos separamos a fim de rever-nos, mais

tarde, na Capital da República.

Você fazia o possível por ocultar os males do estômago e eu dissimulava habilmente as

perturbações do sistema endócrino.

Seu rosto não era o mesmo. Rugas surpreendentes marcavam-no todo. Seus cabelos,

que conhece finos, sedosos e abundantes, estavam ralos e encanecidos. Seus olhos

fitavam-me com firmeza, todavia, injetados de sangue. As mãos bem cuidadas não

mostravam a despreocupação do princípio; entretanto, revelavam-se pesadas e grossas,

exibindo veias salientes.

Certo, você notou profunda mudança em mim, mas a gentileza lhe asfixiou as

observações pessimistas que procurei calar igualmente por minha vez.

E as moças que cortejáramos noutra época, enlevados na paisagem do berço? Algumas

delas, no Rio, embalde tentavam recursos contra a jornada implacável da Natureza. Eram

quase irreconhecíveis. Odontólogos exímios não lhes restauravam a boca que

namoramos, embevecidos, nos primeiros arroubos da juventude. Surgiam na avenida,

assim como nós ambos, procurando farmácias para, o reumatismo iniciante.

A morte, meu caro, teve o condão de acordar-me as reminiscências. E considerando a

amizade que sempre nos ligou, no cenário humano, rememoro, saudoso, sua própria

felicidade longínqua... Não ignoro que você perdeu os pais, a esposa inesquecível e o

filho mais novo que lhe era particularmente querido pelas afinidades sentimentais. Em dez

anos, você mudou de residência quinze vezes, procurando alívio para o coração

angustiado, irremediavelmente enfermo...

Seus olhos permanecem fixos no pretérito e, identificado com a sua dor de peregrino,

cheio de ouro e vazio de paz, lembro-me, saudosamente, até mesmo de seu belo

papagaio que nos divertia, faz quase trinta anos, gritando os nomes de políticos influentes

da hora...

Desejaria confortá-lo, revivê-lo, mas... você, apesar de batido pelam desilusões e

renovações incessantes, está convencido de que vive no plano mais sólido e inamovível

do Universo e acredita que eu seja um vagabundo invisível a contar anedotas destinadas

à ingenuidade humana.

Você, homem de carne e osso, declara-se imutável e assevera que não passo de sombra

a voltar do país da morte.

Como poderá um fantasma consolar um homem seguro de ai, a ponto de julgar-se

intangível?

Decididamente, você tem toda a razão.

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24 - NA ESFERA DOS BICHOS

Dizem que os macacos contemplavam grande cidade, nela depositando os sonhos para o

futuro...

Viviam cansados – clamavam alguns – e queriam repouso. As fêmeas da espécie

declaravam-se exaustas. Desde milênios, criavam os filhinhos, amamentavam-nos,

sofriam horrores, cobriam-se de humilhações e pleiteavam repouso.

Quem lhes ouvisse as queixas, acompanharia o coro de lágrimas. Os símios mais velhos

choravam de meter pena. Afirmavam, sem rebuços, que os conflitos na floresta eram

francamente angustiosos e terríveis.

Sem dúvida, a turma despreocupada dos bichos dormia quase o dia inteiro, saboreava os

produtos da terra e, quando não via presa fácil, desfrutava a lavoura dos homens com

toda a sem-cerimônia.

Se o tédio ameaçava, corriam todos para o arvoredo forte e improvisavam verdadeiro

parque de diversões, na ramaria bordada de flores. Comiam o que não plantavam, valiamse

dos imensos recursos do solo, mas, assim que terminavam as brincadeiras, vinha o

rosário de lamentações.

– Não suportamos esta vida! – reclamavam os antigos.

– Renovemos tudo! – desafiavam os novos.

Acabavam as reclamações, observando detidamente a cidade enorme que lhes

centralizava as esperanças.

Tornando à gruta selvagem, impunham-se comentários alusivos à modificação. A

transferência para a Casa do bípede humano era a única medida razoável. Os seres

racionais tinham a noite magnificamente iluminada por lâmpadas coloridas, Trajavam

roupas brilhantes. Dispunham de residências acolhedoras. Bebiam água gelada, na

canícula, e chocolate reconfortante, no inverno. Possuíam palácios de governo, colégios,

clubes, imprensa, parques e maquinaria. Gozavam as delícias da inteligência.

Respiravam, pois, num céu legítimo.

Urgia, assim, a mudança imediata.

Diante da exigência geral, reuniram-se os chimpanzés mais prudentes e mandaram um

macaco velho para fazer os apontamentos locais.

O símio inteligente aproximou-se dos homens e deixou-se prender manhosamente num

circo.

Partilhou a experiência dos filhos da razão, durante cinco anos consecutivos. Devorou

centenas de bananas, andou por vilas e aldeolas enfeitado de guizos, fez pilhérias

notáveis e, certo dia, regressou...

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Grande congresso dos companheiros, a fim de ouvi-lo.

As fêmeas da tribo, sustentando os filhinhos, e os monos encanecidos enfileiravam-se à

frente de todos.

O emissário apresentou o seu relatório em guinchos solenes. Quase impossível traduzirlhe

a exposição em linguagem humana, todavia, o mensageiro explicou-se, mais ou

menos assim, depois das saudações fraternais:

– Vocês pensam que estou voltando de um paraíso e todas aguardam o instante de

penetração no reino humano, como se fossem alcançar plena isenção de serviço e

responsabilidade. No entanto, laboram em grave erro. Demorei-me cinco anos entre as

criaturas que nos são superiores na organização, na conduta e na forma. Realmente, as

leis a que se submetem, no continuísmo da espécie e na própria manutenção, não

diferem dos princípios que somos constrangidos a obedecer. Criam os filhos com

dificuldades análogas as nossas e lutam igualmente com as tempestades e doenças.

Quem lhes vê, contudo, o domicílio luxuoso julga-os falsamente, supondo encontrar entre

eles o repouso e a alegria sem fim. Os homens, sem dúvida, são superiores a nós e agem

num plano muito mais alto. Entretanto, ai deles se pararem de trabalhar! A natureza que

no cerca lhes invadirá as cidades, destruindo-lhes o encanto e as benfeitorias. Possuem

castelos e universidades, carruagens e granjas. No entanto, para alimentarem os valores

educativos que os distanciam de nós, são obrigados a respeitar horríveis disciplinas. Não

fazem o que desejam, qual nos ocorre na furna. São submetidos a códigos e decretos,

com os quais devem consagrar os próprios brios. A guerra entre eles, a bem dizeis, é um

estado natural. Os piores entregam-se a monstros perigosos, conhecidos pelos nomes de

egoísmo e vaidade, ambição e discórdia, e começam a praticar violências calculadas,

para dominarem as situações... Em razão disso, os melhores são compelidos a viver

armados até às unhas, de modo a se defenderem, preservando as instituições de que se

ufanam. A residência deles, indiscutivelmente, é maravilhosa, mas são tantos os

problemas inquietantes a torturá-los de perto que, de quando em quando, eles mesmos

improvisam chuvas de bombas com que inutilizam as próprias obras, a fim de

recapitularem as lições que andam aprendendo com os poderes mais altos da vida. Para

manterem o brilho da esfera em que habitam, padecem aflições dia e noite. De fato, são

detentores de prodigiosa inteligência e parece-me que subirão muito mais na montanha

do progresso que não podemos, por enquanto, compreender. Em compensação,

trabalham tanto, sofrem tão largamente e são obrigados a tamanhas disciplinas que eu,

meus irmãos, voltei resignado à minha sorte... Quero a minha gruta barrenta, prefiro

nossos costumes e necessidades... o céu dos homens não serve para mim... não

suporto... sou um macaco...

Os membros do conclave, porém, cobriram-no de zombaria e pedradas. Ninguém

acreditou no mensageiro. Para a bicharia, a cidade dos homens era um ninho celestial,

sem deveres e sem lutas, sem dificuldades e sem percalços e, por isso mesmo, a

macacada continuou exigindo acesso à esfera humana, com o único objetivo de gozar e

repousar.

Escutei a lenda curiosa, estudando-lhe o símbolo.

Não pintará esta história a mesma situação corrente entre os “vivos” e os “mortos” da

atualidade?

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25 - ESPÍRITOS DOENTES

– Aonde chegaremos, “seu” Daniel! – exclamava Porfírio, excelente companheiro de lides

espirituais – tenho visto muita teoria na Doutrina, muita briga por isso e por aquilo, mas

essa idéia de “espíritos doentes” não vai... Como engolir a novidade? Pertencem as

moléstias ao corpo, articulam-se na fauna microscópica e devem acabar naturalmente

com a extinção dos ossos. Espírito é espírito. Não temos aqui afirmação perfeitamente

ortodoxa? Se as enfermidades são transferíveis, então...

– Mas, Porfírio, venha cá! – acentuava o interlocutor, complacente – raciocinemos sobre o

assunto. Quem nos despertou para essas realidades não nos disse que a coisa é assim,

sem mais nem menos. Nem todas as doenças nos acompanharão e grande número

delas, indubitavelmente, não passará do sepulcro. É inegável, porém, o desequilíbrio da

mente e, em semelhante desarmonia, as enfermidades da alma se fazem claramente

compreensíveis. Você não pode admitir que um homem, encarcerado na suposição de

absoluto domínio, que viva de cometer violências com o próximo, provocando emissões

magnéticas destrutivas ou perturbadoras, venha a achar-se em rigorosa sanidade

espiritual, depois da morte, só porque deliberou aceitar o poder da oração “in extremis”. A

prece constituir-lhe-á remédio salutar, a empregar-se no início da cura. No entanto, não

pode remover, de momento para outro, os espinheiros que tal homem criou para si

próprio. Não acredita que o imprevidente e o perverso, desligados do corpo denso,

conservarão, por muito tempo, o fruto amargoso da própria sementeira?

O interpelado não se deu por vencido.

– Não – obtemperou, contrafeito –, não posso concordar. Corpo e alma, a meu ver, são

essencialmente distintos. A matéria é pó e tudo o que se relaciona com o pó se destina ao

chão do Planeta. É impossível crer em “espíritos doentes” no outro mundo. A morte é

força niveladora. No túmulo, deixaremos todos os motivos de perturbações materiais.

Demoramo-nos por aqui., simplesmente em provas expiatórias e a sepultura nos abrirá

caminho para os mundos felizes. de outro modo...

Diante das reticências significativas, o amigo renovou as considerações:

– Não lhe apraz, contudo, interpretar nossas lutas, na superfície da Terra, como

ensinamentos edificantes? Não se sente, acaso, numa escola de grandes proporções,

onde o aprendiz responde por si, perante orientadores e benfeitores? Assim que a morte

seja um “levantar de bandeira”, assim como nas corridas de cavalos, constrangendo cada

espírito a buscar, apressadamente, a melhor parte?

Porfírio, rebelde, acrescentou:

– Se você interpõe a argumentação para justificar a teoria de entidades enfermas,

engana-se.

Espíritos não podem adoecer. Não podemos fomentar a ilusão de hospitais na “outra

vida”.

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Antes que a palestra se tornasse mais acalorada, D. Amélia, a esposa do teimoso

doutrinador, veio chamar para a reunião no ambiente doméstico.

A mesa estava posta. Médiuns e demais companheiros em meditação.

Decorridos alguns minutos, iniciaram-se os trabalhos sob a direção de Porfírio.

Orações sentidas e comentários reconfortantes.

O material de espiritualidade superior era ali autêntico, preciso. Tudo condimentado em

cristalina sinceridade familiar.

Ao término da sessão, eis que ao incorpora um espírito perturbado, sofredor. Grita, e

chora. Declara-se em trevas e assevera ouvir com imensa dificuldade. Acusa dores

terríveis na mão direita. Relaciona lembranças fragmentárias. Tem a memória tardia de

um hemiplégico. Foi juiz em comarca remota. Confessa haver prostituído o tribunal. Diz

haver despertado fora do corpo físico, torturado por antigas vítimas. Está angustiado.

Quer viver, entre os homens outra vez, a fim de reparar as falhas cometidas.

O diretor da reunião doutrina, amoroso, mas laboriosamente.

Depois de longo entendimento, em que o devotado orientador encarnado despende todos

os recursos socorristas ao seu alcance o infortunado revela melhora e abandona o

recinto, prometendo aproveitar-se dos conselhos recebidos.

Encerram-se os serviços da noite, entre ações de graças.

O condutor da sessão enxuga a fronte suarenta.

Quando a sala se esvaziou, após o adeus reconfortante dos amigos que e afastaram

jubilosos pelo agradável dever cumprido, Daniel se aproximou do companheiro e falou

bem humorado:

– Então, Porfírio? acredita que estivemos socorrendo um espírito desencarnado robusto e

sadio? O infeliz acusa desequilíbrio mental evidente, revela distúrbios e dores

perfeitamente localizados. Um médico hábil, entre nós poderia lavrar completo

diagnóstico.

Porfírio silenciou, pensativo.

- Para mim – prosseguiu Daniel -, o comunicante está seriamente enfermo e você

funcionou na condição de clinico providencial. Imagine que ele mostrou os sintomas de

um reumático, a fadiga que procede de perturbações circulatórias, a memória falha de um

paralítico, as visões de um louco, sem nos reportarmos aos intrincados problemas

psicológicos de que é portador, que dariam para tentar a curiosidade de muitos Freuds.

Não acha que tenho razão?

Foi então que Porfírio, desapontado, balanceou a cabeça e retrucou vencido:

– Sou doutrinador de espíritos sofredores há mais de vinte anos, mas, francamente, ainda

não havia pensado nisto.

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26 - A PROTEÇÃO DE SANTO ANTÔNIO

Conta-nos venerando amigo que Antônio de Pádua, no luminoso domicílio do plano

superior, onde trabalha na extensão da glória Divina, continuamente recebia preces de

pequena família dos montes italianos.

Todos os dias era instado a prestar socorros e enlevava-se com as incessantes

manifestações de tamanha fé.

O admirável taumaturgo, por vezes, nas poucas horas de lazer, recreava-se

anotando o registro dos petitórios, procedentes daquele reduzido núcleo familiar.

Sorria, encantado, relacionando-lhes as solicitações. O grupinho devoto suplicavalhe

a concessão das melhores coisas.

Lembrava-lhe o nome, a propósito de tudo. Nas enxaquecas dos donos da casa.

Nos sonhos das filhas casadoiras. Nos desatinos do rapaz. Nos sapatos das crianças.

O santo achava curiosa a repetição das rogativas.

Variavam de trimestre a trimestre, repetindo-se, porém, cronologicamente.

Assim é que determinava aos colaboradores o fornecimento de recursos sempre

iguais, de conformidade com as estações. Dinheiro e utilidades, socorro e medicação,

alegria e reconforto.

Reproduziam-se os votos, na atividade rotineira, quando Santo Antônio reparando,

mais detidamente, as notas de que dispunha, verificou, surpreso, que aquele punhado de

crentes confiantes não apresentara, ainda, nem um só pedido de trabalho. O protetor

generoso meditou, apreensivo, e como a devoção continuasse, fresca e ingênua por parte

dos beneficiários, deliberou visitá-los pessoalmente.

Expediu aviso prévio e desceu, no dia marcado, para verificações diretas. Desejava

inteirar-se de quanto ocorria.

De posse da notificação, celestino, inteligente cooperador espiritual dele, veio

esperá-lo, não longe da residência humilde dos camponeses.

O iluminado solicitou notícias e o companheiro de boas obras respondeu,

respeitoso.

Em breve, sabereis tudo.

Com efeito, daí a momentos penetravam em pequeno recinto rural, uma casa

antiga, um jardim abandonado, um quintal escarpado entregue ao mato inútil e um telheiro

a ruir, fingindo estábulo, onde uma vaca remoia a última refeição.

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Entraram.

Na sala, em trajes domingueiros de regresso da missa, um casal de velhos ouvia a

conversação dos filhos, um jovem robusto, duas moças casadoiras e duas crianças.

Santo Antônio abençoou o quadro doméstico, observando que a sua efígie era guardada

carinhosamente por todos.

As impressões verbais eram intercaladas de louvores ao seu nome.

De instante a instante, assinalava-se o estribilho:

Graças a Santo Antônio!

Voltando-se para o cooperador atento, o prestigioso amigo celeste pediu

esclarecimentos quanto aos serviços do grupo.

Foi informado, então, de que nenhum dos membros daquela comunidade possuía

trabalho certo, convenientemente remunerado. Celestino, aliás, terminou sem

circunlóquios:

O pessoal gira em torno de uma vaca, que torno participante de vossas bênçãos.

Como? Indagou o santo, admirado.

O pai, que se diz doente, angaria capim, de modo a alimentá-la.

As Jovens ordenham-na duas vezes por dia. O rapaz conduz o leite à vila para

vender.

Bolinha, a vaca protetora, sai do quintal somente cinco dias por ano, quando

passeia junto a rebanho próximo, é obrigada a fornecer seis a oito litros de leite, em

média diária, e um bezerro anualmente.

A dona da casa envolve-a em atmosfera de doce agasalho e os meninos escovamna

cuidadosamente.

Apesar disso, porém, vive abatida, entre as cercas do escarpado curral.

Sabendo nós quanto amor consagrais a esta granja, repartimos com a humilde

vaquinha as dádivas incessantes que vossa generosidade nos envia.

Desse modo, garantimos-lhe a saúde e o bem-estar, porquanto, se a produção dela

cair, que sucederá aos vossos despreocupados devotos?

Bolinha é tudo o que lhes garante o pão e a vestimenta de hoje e de amanhã.

Antônio dirigiu-se ao estábulo, pensativo...

Acariciou o animal heróico e voltou ao interior.

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Na palestra intima, animada, ouvia-se, de momento a momento:

—Louvado seja Santo Antônio!

—Viva Santo Antônio!

—Santo Antônio rogará por nós!

De permeio, sobravam queixas do mundo.

O advogado celestial, algo triste, convidou o companheiro a retirar-se e acrescentou:

Auxiliemos positivamente esta família tão infeliz.

Antônio acercou-se da vaca, levantou-a, e sem que bolinha percebesse guiou-a

para alto, de onde se contemplava enorme precipício. Do cimo, o santo ajudou-a a

projetar-se rampa abaixo.

Em breves segundos a vaca não mais pertencia ao rol dos animais vivos na Terra.

Ante o colaborador assombrado, explicou-se o taumaturgo:

Muitas vezes, para bem amparar, é imprescindível retirar as escoras.

E voltou para o Céu.

Do dia seguinte em diante, as orações estavam modificadas.

Os camponeses fizeram solicitação geral de serviço e, com o trabalho digno e

construtivo de cada um, a prosperidade legítima lhes renovou o lar, carreando-lhes paz,

confiança e júbilos sem-fim...

Quantos Benfeitores Espirituais são diariamente compelidos a imitar, no mundo dos

homens encarnados, a proteção de Santo Antônio?

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27 - TUDO RELATIVO

Quando o espírito comunicante, cheio de boa vontade, se referiu ao domicílio na vida

extra-física, Rafael, um irmão que se caracterizava pelos primores da inteligência,

objetou, mordaz:

– Casas no Além? que contra-senso!...

O mensageiro, não obstante desapontado, registrou impressões da vida social no “outro

mundo”.

Então, o mesmo cavalheiro ironizou sem pestanejar:

– Ora esta! sociólogos além-túmulo? era o que nos faltava.

O emissário não desanimou. Aludiu aos jardins que lhe cercavam a residência.

– Que é isso? – indagou o investigador que apreciava os sarcasmos sem fim – serão os

jardins suspensos de Semíramis? qual! Tudo mera ilusão!... Depois de nossas roseiras

espinhosas e de nossos adubos desagradáveis, não há canteiros de fluidos.

A entidade perseverante reportou-se aos institutos de ensino que freqüentava. No

entanto, o mau obreiro deu-se pressa em considerar:

– Se os “mortos” estiverem sujeitos à luta estudantil, estamos francamente perdidos.

O comunicaste não desistiu. Passou a dizer da expectativa sublime que alimentava,

aguardando a esposa querida, alem do sepulcro. O companheiro irreverente, entretanto,

fiz-se ouvir na mesma inflexão de zombaria:

– Deliciosa mentira! onde já se viu casamento na esfera das almas?

O portador da mensagem não desfaleceu. Comentou os problemas do corpo sutil que lhe

servia, agora, à consciência. Enumerou as facilidades e os obstáculos que o defrontavam,

mas o fraternal inquisidor observou, céptico:

– Espírito não tem corpo Simples fantasia. Presenciamos fenômenos de puras

impressões alucinatórias.

O prestimoso estafeta das boas novas, que vinha do reino espiritual, despediu-se

finalmente.

Ante os colegas curiosos e inquietos o renitente analista esclarecia enfaticamente:

– Mais objetividade! Nada de ilusões! Sou um homem que sabe julgar.

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Após o incidente, afastou-se do grupo de trabalhadores do bem. Afirmava-se

demasiadamente realista para aceitar, sem maior exame, as descrições dos

desencarnados. Situava a concepção doutrinária num campo de absoluta transcendência.

Devotados amigos, basta vezes, rogaram-lhe a volta aos estudos. Parentes interpunham

recursos afetivos, a fim de que retomasse o salutar esforço da crença religiosa. Todavia,

foi Rafael impermeável a todas s ponderações. Ouvia os apelos, esboçava gesto brejeiro

e arremedava, um texto evangélico:

_ Dêem à matéria o que é da matéria e ao espírito o que do espírito. Fora disso, não

compreendo a atitude de vocês.

E rematava orgulhoso de si:

Não se esqueçam que sou um homem que sabe julgar.

Veio, porém, o minuto em que foi arrebatado da vida carnal. Desalentado, aflito,

estabelecia a própria identidade. Afinal – monologava para dentro – a mudança não fora

tão grande. Mentalmente sentia-se o mesmo homem. E, no íntimo, não conseguia

eliminar o desejo louco de regressar aos negócios, atividades e afetos que o imantavam

ao campo humano. Meditava na justiça divina e buscava tranqüilizar-se. Não se lembrava

de haver praticado o mal com o propósito deliberado de ferir alguém não cometera crime

algum. No fundo dalma, contudo, mantinha certa inquietude. Concluíra que prejudicara a

si mesmo. Não dera à observação da verdade, tanto quanto devia. Não seria razoável o

retorno a zona terrestre, para intensificar indagações? Quem sabe? Talvez pudesse

prover-se de melhores recursos, em benefício a paz interna.

A aproximação de iluminado mensageiro espiritual sustou-lhe a marcha dos

pensamentos. Contemplou-o, esperançoso, e pediu, com respeito:

– Benfeitor divino, acudi-me!... Dizei-me onde está, a minha propriedade terrestre?

O interpelado respondeu com benevolência:

– Propriedade sua? que enorme equivoco!...

– E meu corpo físico? – interrogou Rafael, choroso.

_ Seu veículo de carne, agora, meu amigo, é simples fantasia.

– Meus bens?

O emissário sorriu e ajuntou:

- Se seu tesouro não está guardado no espírito imperecível, suas vantagens do outro

tempo não passavam de ilusão...

– Minhas apólices, meus títulos? Registravam-me o nome!...

– Para impressão de alguns anos – esclareceu o preposto da realidade divina.

71

– Meus filhos?

– Eram de Deus, primeiramente, antes de serem encaminhados a paternidade provisória.

– Minha mulher? onde esta ela? Sempre me obedeceu cegamente. Dar-se-á, o caso de

haver-me abandonado também?

- Sua companheira associava-se com renúncia e bondade ao seu destino, mas nunca foi

uma escrava de seus caprichos. Conserva um título de filiação celeste, tanto quanto você

mesmo.

– Meu gabinete na cidade, meu sítio no campo, meus documentos, meus interesses...

– Sim, tudo para você, presentemente, é serviço feito, resíduo do passado, que persiste

em deter na mente enfermiça, antes de verificar o proveito das lições que viveu no

mundo...

Oh! que horror! – gritou Rafael, apavorado – como entender tudo isto? quem estará sob o

domínio de simples impressões? os que partem da Terra ou os que por lá se demoram?

os que “morrem” ou os que “vivem”?

O benfeitor sorriu, de novo, e concluiu :

– Consulte a própria consciência. Como sempre, você é um homem que sabe julgar...

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28 - O HOMEM E O BOI

Um anjo de longínquo sistema, interessado em conhecer os variados aspectos e

graus da razão na inteligência Universal, pousou num campo terrestre e, surpreso ante a

paisagem, aí encontrou um homem e um boi. Admirou as flores silvestres, fixou os

horizontes coloridos de sol e rejubilou-se com a passagem do vento brando, rendendo

graças ao Supremo Senhor. Como não dispunha, todavia, de mais larga parcela de

tempo, passou à observação direta dos seres que povoavam o solo, aferindo o progresso

do entendimento no orbe que visitava.

Examinou as pupilas do homem e descobriu a inquietação da maldade.

Sondou os olhos do boi e encontrou calma e paz.

Usando o critério que lhe era particular, conclui de si para consigo que o boi era

superior ao homem. Consolidou a impressão quando, para experimentar, pediu

mentalmente aos dois trabalhassem em silêncio. O animal respondeu com perfeição,

movimentando-se, humilde, mas o companheiro bípede gritou, espetacularmente,

proferindo nomes feios que fariam corar uma pedra.

Um tanto alarmado, o anjo recomendou paciência.

O educado bisneto da selva continuou trabalhando, imperturbável e tolerante.

Todavia, o irrequieto descendente de Adão estalou um chicote, ferindo as ancas do

colaborador de quatro patas.

Acabrunhado agora, diante da cena triste, o sublime embaixador pediu atitudes de

sacrifício.

O servo bovino obedeceu, sem qualquer relutância, revelando indiscutível interesse

em ser útil, distraído das próprias chagas.

O administrador humano, contudo, redobrou a crueldade, recorrendo ao ferrão para

dilacerar-lhe, ainda mais, a carne sanguinolenta...

Sensibilizadíssimo, o fiscal celeste anotou o que supôs conveniente aos fins que o

traziam e afastou-se, preocupado.

Não atravessara grande distância e encontrou uma vaca em laço forte, com outro

homem a ordenhá-la.

Sob impressão indefinível, emitiu apelos à renúncia.

A mãe bovina atendeu com resignação heróica, prosseguindo firme na posição de

quem sabia sacrificar-se, mas o ordenhador, antes que o emissário de cima os

analisasse, de perto, porque certa mosca lhe fustigava o nariz, esbofeteou o úbere da

vaca, desabafando-se. O funcionário dos altos céus, compadecido, acariciou a vítima que

73

se movimentou alguns centímetros, agradavelmente sensibilizada. O tratador, porém,

berrou desvairado, caluniando-a...

Queres escoucear-me, não é? Gritou, diabólico.

Ergueu-se lesto, deu alguns passos, sacou de bengala rústica e esbordoou-lhe os

chifres.

Emocionado, o anjo vivificou as energias da vaca, aplicando o seu magnetismo

divino, rogou para ela as bênçãos do Altíssimo, empregou forças de coação no agressor,

conferindo-lhe salutar dor de cabeça, efetuou os registros que desejava e retirou-se.

Prestes a desferir vôo, firmamento a fora, encontrou um gênio sublime da hierarquia

terrena.

Cumprimentaram-se, fraternos, e o fiscal divino comentou a beleza da paisagem.

Não ocultou, porém, a surpresa de que se possuía.

Relacionou os objetivos que o obrigaram a parar alguns minutos na Terra e rematou

para o irmão na pureza e na virtude:

Estou satisfeito com a elevação sentimental das criaturas superiores do Planeta.

Cultivam a generosidade, renunciam no momento oportuno, trabalham sem lamentações

e, sobretudo, auxiliam, com invulgar serenidade, os inferiores.

O anjo da ordem terrestre silenciou, espantado por ouvir tão rasgado elogio aos

homens. O outro, no entanto, prosseguiu:

Tive ocasião de presenciar comovedores testemunhos. Pesa-me confessá-lo,

porém: não posso concordar com a posição dos seres mais nobres da terra, que se

movimentam ainda sobre quatro pés, quando certo animal feroz, que os acompanha,

agressivo, já detém a leveza do bípede. Naturalmente, sabe o Altíssimo o motivo pelo

qual individualidades tão distintas aqui se encontra, unidas para a evolução em comum...

Tenho, contudo, o propósito de apresentar um relatório minucioso às autoridades divinas,

a fim de modificarmos o quadro reinante.

Assinalando-lhe os conceitos, o companheiro solicitou explicações mais claras. O

anjo estrangeiro convidou-o a verificações diretas.

O protetor da Terra, desapontado, esclareceu, por sua vez, ser diversa a situação: o

bípede é na crosta Planetária o Rei da inteligência, guardando consigo a láurea da

compreensão, sendo o boi simples candidato ao raciocínio, absolutamente entregue ao

livre-arbítrio do controlador do solo. Acentuou que, não obstante operoso e humilde, o

cooperador bovino gastava a existência servindo para o bem, e acabava dando os

costados no matadouro, para que os homens lhe comessem as vísceras...

O forasteiro dos céus mais altos, sem dissimular o assombro, considerou:

Então, o problema é muito pior...

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Pensou, pensou e aduziu:

Jamais encontrei um planeta onde a razão estivesse tão degradada.

Despediu-se do colega, preparou o afastamento definitivo sem mais delonga e

concluiu:

Apresentarei relatório diferente.

Mas ainda não se sabe se o anjo foi pedir medidas ao Trono Eterno para que os

bois levantem as patas dianteiras, de modo a copiarem o passo de um herói humano, ou

foi rogar providências aos Poderes Celestiais a fim de que os homens desçam as mãos e

andem de quatro, à maneira dos bois...

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29 - O ESPÍRITO QUE FALTAVA

Quando Dona Arlinda chegou ao grupo espiritista, desejosa de curar-se das perturbações

que a assediavam, foi atendida pelo orientador Dagoberto, dedicado protetor espiritual

dos necessitados.

– Quero sarar – dizia a iniciante – e servir à Doutrina. A mediunidade é um ministério

celestial. Se Deus me achar digna, aqui estarei para trabalhar com afinco e devotamento.

Reparando-lhe as boas disposições, o diretor da casa facilitou-lhe o acesso aos fluidos

renovadores.

– Preciso de espíritos que me curem! – reclamava a obsidiada, lamuriando-se – e, tão

logo me refaça, seguirei a verdade e servi-la-ei até ao fim de meus dias...

O benfeitor deu-se pressa em angariar a colaboração de clínicos competentes da

espiritualidade, que a ajudassem na recuperação do equilíbrio.

Em breve, Dona Arlinda estava robustecida, feliz. Perdera as fobias inquietantes. Estava

curada, enfim.

Prosseguia freqüentando as pequenas assembléias doutrinárias, mas mudara a

conversa...

– Se Amaro, meu marido, obtivesse um emprego, sentir-me-ia mais disposta ao trabalho

mediúnico. Mas assim...

E terminava, suspirando:

– Se os espíritos caridosos nos amparassem...

Dagoberto interveio, solicitando a cooperação de al um benfeitores que, indiretamente,

agindo sem alarde, através dos fios invisíveis da inspiração, lhe situaram o esposo em

serviço digno, convenientemente remunerado.

Dona Arlinda, agora, era menos pontual às sessões iluminativas; fazia-se, contudo,

portadora de novas alegações.

– Como contribuir na lavoura da mediunidade? Meus dois filhos, Fernando e Rodolfo,

cercam-me de preocupações infindáveis... Sabemos que as atividades dessa natureza

exigem paz... Com as angústias que trago na cabeça, a calma é impossível. Se os

espíritos me ajudassem a encaminhá-los...

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Voltou o protetor a socorrê-la, trazendo-lhe à casa o decisivo concurso de sábios

educadores desencarnados que modificaram as tendências dos rapazes, melhorandolhes

os impulsos e conduzindo-os a louváveis institutos de ensino.

Solucionado o problema, Dona Arlinda encontrou nova necessidade:

– Graças a Deus – afirmava –, tenho sido muito feliz em minhas súplicas. Mas, como

iniciar a colaboração nos círculos da mediunidade? Enquanto não nos mudarmos de

residência, qualquer tentativa seria improfícua. Imaginem que sou diariamente hostilizada

pelos vizinhos. Necessito, antes de tudo, afastar-me do ambiente. Enquanto isto não se

der...

E rematava:

– Se os espíritos me auxiliassem a favor da mudança...

Dagoberto, prestativo, correu a cooperar. Não dispunha de corretores no “outro mundo”,

mas conhecia amigos que sabiam amparar sem prejuízo de ninguém.

Em poucas semanas, a senhora permutava o domicílio acanhado por residência arejada e

espaçosa.

Beneficiada de tantos modos diferentes, teve dificuldade de alinhar pretextos de ordem

material e falou, supostamente preocupada, aos companheiros do grupo:

Estou pronta para a tarefa mediúnica...

Entretanto, como encetá-la? Aguardo a influência dos irmãos invisíveis, em nossa mesa

de orações, tempo enorme!... Qual nada! Não registro a menor vibração diferente, em

torno de mim! estou mesmo sem rumo...

E concluía, reticenciosa:

– Se os espíritos me desenvolvessem...

O benfeitor de sempre movimentou as possibilidades imediatas e trouxe companheiros

esclarecidos que passaram a colaborar no esforço de iniciação da candidata.

Dona Arlinda foi crivada de apelos e advertências. Os amigos do Além falaram-lhe da

caridade, da educação, do serviço ao próximo. Conduziram doentes ao seu coração,

proporcionando-lhe valiosas oportunidades de praticar a ciência de elevação.

Necessitados sem número, tangidos por forcas imponderáveis, sitiaram-lhe a porta.

Era convidada às manifestações do bem, através de todos os clarins da vida espiritual.

A futura missionária, porém, negou-se redondamente. Queria o ministério mediúnico, mas

não suportava a visão de doenças, experimentava receios indefiníveis ante as pessoas

perturbadas, não dissimulava o desequilíbrio nervoso que a acabrunhava, em qualquer

ação de socorro às entidades sofredoras. Temia complicações, não desejava ser julgada

pela opinião pública.

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Reproduzia queixas e fugas, duas vezes por semana, ante os colegas espantados,

quando Dagoberto, o prestimoso amigo espiritual, certa noite se comunicou no grupo,

satisfeito e bem humorado, como de costume. Finda a preleção, na qual distribuiu

precioso encorajamento, Dona Arlinda interpelou-o, suplicando :

– Meu protetor, ajude-me! Preciso progredir!

Poderei contar com a sua ajuda para meu desenvolvimento?

O interpelado respondeu, enigmático:

– Sim?... A mediunidade, antes de ser um fenômeno, é trabalho dos semelhantes!...

Dona Arlinda pretendia promessas mais claras e aduziu :

– Os protetores me auxiliarão?

Dagoberto sorriu e ajustou:

– Eu, agora, minha irmã, só conheço um espírito que pode socorrê-la. Um, apenas. Sem

ele, sua felicidade nunca virá,.

– Oh! qual? – interrogou a senhora, dominada pela volúpia de implorar proteção diferente

– farei preces, inclui-lo-ei em minhas súplicas diárias!...

Com surpresa geral, Dagoberto informou :

– É o espírito da boa vontade. Para encontrá-lo, não precisa, dirigir-se ao “outro mundo”.

Ele está no seu mundo mesmo.

Pesado silêncio caiu sobre todos e a sessão foi encerrada, sem outras consultas.

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30 - VELHO APÓLOGO

Observou o Supremo Pai que o Homem, filho de seu amor e herdeiro de sua sabedoria,

tateava angustiado nas trevas da ignorância, errando no vale escuro da Morte...

Recomendou então ao Tempo a condição do peregrino das sombras à claridade da Terra

onde o filho infeliz aprenderia a ciência da Vida com a Verdade, para que o túmulo não

mais lhe perturbasse o caminho eterno...

Nasceu o Homem, na esfera carnal e, cuidadosa, a mestra Verdade procurou-o em

pequenino.

Os zeladores do infante, todavia, pais a título precário, afugentaram-na revoltados.

– O menino é nosso! – gritaram possessos de egoísmo – é cedo, muito cedo para a

intromissão da realidade.

E segregaram o aprendiz miúdo em berço de rendas mentirosas.

Ao invés de revelar-lhe a condição de usufrutuário da escola terrena, conferiram-lhe

perigosas ilusões. Afirmaram-lhe que o mundo era propriedade dele, que era superior aos

semelhantes, que era, em suma, o única ser digo de respirar na atmosfera planetária.

Incitaram-no a dominar sempre, fosse como fosse, a vencer de qualquer modo, ainda

mesmo quando o sofrimento e a miséria lhe clamassem piedade e justiça.

Quando o Homem pôs o pé fora do lar, na puberdade, era um diabo mirim. Sabia

espancar, depredar, humilhar, impor-se e ferir...

Notou a Verdade que grandes obstáculos se interpunham entre ambos, mas aproximouse

e ofereceu-lhe o tesouro que trazia.

O fedelho sorriu, cínico, e objetou:

– Nada disto. Quero viver por mim mesmo.

Recolheu-se a orientadora, sem desanimo.

Aprumando-se o interessado em plena juventude, voltou a presenteá-lo com o patrimônio

imperecível.

O rapaz exclamou, desdenhoso:

– Estou muito moço ainda! seguirei sem muletas.

Retraiu-se a sublime condutora. Decorridos alguns anos, informou-se de que o tutelado

bebera novos conhecimentos nas fontes do mundo e regressou, esperançada, ao

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convívio dele, oferecendo-lhe os bens eternos. Sobraçando pesados compêndios, o

aprendiz fujão, dessa vez, gargalhou, simiesco, declarando:

– Tenho a Terra. Não preciso do Céu. Estou bastante preocupado com questões

imediatas para internar-me em problemas longínquos! a sugestão é prematura!...

Refugiou-se a instrutora nas vizinhanças, aguardando outro ensejo...

Quando o aluno refratário à lição se consorciou para converter-se em pai provisório de

outros aprendizes na escola terrestre, tornou a buscá-lo, abrindo-lhe o acesso à

espiritualidade superior. O protegido recusou recebê-la.

– Vivo sobremaneira ocupado... não posso cogitar de enigmas transcendentes... –

assegurou.

A incansável benfeitora passou então a visitá-lo, periodicamente, na expectativa de

modificação repentina.

Assim é que o Homem lhe apresentava os mais variados pretextos, em troca da oferenda

divina.

– Hoje, não. Tenho a mulher enferma.

– Enquanto meus filhos estiverem desassossegados.

– Depois. Antes de tudo, é indispensável garantir o futuro da prole.

- Minha cabeça estala!

– Assumi outros compromissos, não sou livre... – Doente como estou, não arredarei pé de

casa.

– Não posso faltar ao clube.

A Verdade jamais desanimou. Procurava-o, de muitos modos, cada semana. O hábil

esgrimista do raciocínio, contudo, dispunha de golpes inesperados. Esquivou-se

maciamente, enquanto lhe sobravam vigor e saúde. Quando se viu, porém, valetudinário

e encanecido, fêz-se vítima e desculpava-se, afiançando :

– Sinto-me fatigado como nunca...

– É imprescindível espichar os anos.

– Estou velho em demasia para renovar-me...

Surgiu, no entanto, um dia, em que identificou singulares diferenças em si mesmo.

Aterrado, verificou que a carne renascente estava flácida e descontrolada. O sangue

engrossava-se-lhe nas veias.

A epiderme semelhava-se ao pergaminho. Os ossos rangiam, quebradiços.

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A Morte impassível acercou-se dele, tentando cerrar-lhe os olhos, mas o infeliz clamou

por ajuda. Socorreu-o a Ciência com picadas e beberagens. A Fé orou sentidamente,

junto ao leito acolhedor.

O mísero, porém, temendo a escuridão do sepulcro, bradava para dentro do próprio

coração:

– – A Verdade! quero a Verdade!...

A benfeitora, reconhecendo-o novamente cego, viu-se inibida de atender. Inclinando-selhe

aos ouvidos, esclareceu:

– Agora é tarde...

O moribundo suplicou a intervenção do Tempo, mas o Tempo escusou-se, informando,

inflexível:

_ Agora será necessário esperar...

E a Morte, querida e detestada, respeitada e incompreendida, aproximou-se

serenamente, baixou o pano e concluiu:

– Agora, é comigo. Tratarei de seu caso.

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31 - OS MAIORES INIMIGOS

Certa feita, Simão Pedro perguntou a Jesus:

- Senhor, como saberei onde vivem nossos maiores inimigos? Quero combatê-los, a fim

de trabalhar com eficiência pelo Reino de Deus.

Iam os dois de caminho entre Cafarnaum e Magdala, ao sol rutilante de perfumada

manhã.

O Mestre ouviu e mergulhou-se em longa meditação.

Insistindo, porém, o discípulo, ele respondeu benevolamente:

- A experiência tudo revela no momento preciso.

- Oh! – exclamou Simão, impaciente – a experiência demora muitíssimo.

O Amigo Divino esclareceu, imperturbável:

- Para os que possuem “olhos de ver” e “ouvidos de ouvir”, uma hora, às vezes, basta ao

aprendizado de inesquecíveis lições.

Pedro calou-se, desencantado.

Antes que pudesse retornar às interrogações, notou que alguém se esgueirava por trás de

velhas figueiras, erguidas à margem. O apóstolo empalideceu e obrigou o Mestre a

interromper a marcha, declarando que o desconhecido era um fariseu que procurava

assassiná-lo. Com palavras ásperas desafiou o viajante anônimo a afastar-se,

ameaçando-o, sob forte irritação. E quando tentava agarrá-lo, à viva força, diamantina

risada se fez ouvir. A suposição era injusta. Ao invés de um fariseu, foi André, o próprio

irmão dele, quem surgiu sorridente, associando-se à pequena caravana.

Jesus endereçou expressivo gesto a Simão e obtemperou:

- Pedro, nunca te esqueças de que o medo é um adversário terrível.

Recomposto o grupo, não haviam avançado muito, quando avistaram um levita que

recitava passagens da Tora e lhes dirigiu a palavra, menos respeitoso.

Simão inchou-se de cólera. Reagiu e discutiu, longe das noções de tolerância fraterna, até

que o interlocutor fugiu, amedrontado.

O Mestre, até então silencioso, fixou no aprendiz os olhos muito lúcidos e inquiriu:

- Pedro, qual é a primeira obrigação do homem que se candidata ao Reino Celeste?

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A resposta veio clara e breve:

- Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.

- Terás observado a regra sublime, neste conflito? – continuou o Cristo, serenamente –

recorda que, antes de tudo, é indispensável nosso auxílio ao que ignora o verdadeiro bem

e não olvides que a cólera é um perseguidor cruel.

Mais alguns passos e encontraram Teofrasto, judeu grego dado à venda de perfumes,

que informou sobre certo Zeconias, leproso curado pelo profeta nazareno e que fugira

para Jerusalém, onde acusava o Messias com falsas alegações.

O pescador não se conteve. Gritou que Zeconias era um ingrato, relacionou os benefícios

que Jesus lhe prestara e internou-se em longos e amargosos comentários, amaldiçoandolhe

o nome.

Terminando, o Cristo indagou-lhe:

- Pedro, quantas vezes perdoarás a teu irmão?

- Até setenta vezes sete – replicou o apóstolo, humilde.

O Amigo Celeste contemplou-o, calmo, e rematou:

- A dureza é um carrasco da alma.

Não atravessaram grande distância e cruzaram com Rufo Grácus, velho romano

semiparalítico, que lhes sorriu, desdenhoso, do alto da liteira sustentada pelos escravos

fortes.

Marcando-lhe o gesto sarcástico, Simão falou sem rebuços:

- Desejaria curar aquele pecador impenitente, a fim de dobrar-lhe o coração para Deus.

Jesus, porém, afagou-lhe o ombro e ajuntou:

- Por que instituiríamos a violência no mundo, se o próprio Pai nunca se impôs a

ninguém?

E, ante o companheiro desapontado, concluiu:

- A vaidade é um verdugo sutil.

Daí a minutos, para repasto ligeiro, chegavam à hospedaria modesta de Aminadab, um

seguidor das idéias novas.

À mesa, um certo Zadias, liberto de Cesárea, se pôs a comentar os acontecimentos

políticos da época. Indicou os erros e desmandos da Corte Imperial, ao que Simão

correspondeu, colaborando na poda verbalística. Dignitários e filósofos, administradores e

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artistas de além-mar sofreram apontamentos ferinos. Tibério foi invocado com impiedosas

recriminações.

Finda a animada palestra, Jesus perguntou ao discípulo se acaso estivera alguma vez em

Roma.

O esclarecimento veio depressa:

- Nunca.

O Cristo sorriu e observou:

- Falaste com tamanha desenvoltura sobre o Imperador que me pareceu estar diante de

alguém que com ele houvesse privado intimamente.

Em seguida, acrescentou:

- Estejamos convictos de que a maledicência é algoz terrível.

O pescador de Cafarnaum silenciou, desconcertado.

O Mestre contemplou a paisagem exterior, fitando a posição do astro do dia, como a

consultar o tempo, e, voltando-se para o companheiro invigilante, acentuou, bondoso:

- Pedro, há precisamente uma hora procurava situar o domicilio de nossos maiores

adversários. De então para cá, cinco apareceram, entre nós: o medo, a cólera, a dureza,

a vaidade e a maledicência... Como reconheces, nossos piores inimigos moram em nosso

próprio coração.

E, sorrindo, finalizou:

- Dentro de nós mesmos, será travada a guerra maior.

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32 - NUMA CIDADE CELESTE

Quando Joaquim Pires desencarnou, crente sincero e praticante assíduo que fora do

Evangelho, procurou, incontinenti, as portas do céu. Combatera as próprias paixões,

distribuíra benefícios sem cogitar de recompensa, humilhara-se em favor dos outros,

sempre que as circunstâncias lhe aconselhavam serenidade e renúncia.

Em suma, Joaquim fora um homem bom. Todavia, como vivemos sobre maneira

distanciados das criaturas perfeitas, andava preocupado com a idéia de repousar no

paraíso. Não tivera ocasião de provar-se em testemunhos reconhecidamente difíceis e

angustiosos. No entanto, acariciava o propósito de anestesiar-se no "outro mundo".

Queria descansar, esquecer, embriagar-se no êxtase divino...

"Morreu", por isso, sem receio algum. Despediu-se, quase contente, dos familiares.

Parecia andorinha humana, no júbilo de buscar a primavera noutras paragens. E, como

efeito, tantos méritos detinha consigo, que prodigioso frio de luz assinalava-lhe o caminho,

desde o túmulo até as portas de uma cidade resplandecente.

Aí chegado, Joaquim, premido pela emoção, empalidecera de regozijo. Enlevado, notou

que, lá dentro, havia felicidade e luz, mas inequívocos sinais de trabalho também...

Ruídos de atividade salutar e sons de campainhas inquietas alcançaram-lhe os ouvidos

surpresos.

Antes de se entregar a maiores perquirições íntimas, simpático mensageiro veio recebê-lo

no limiar.

-É aqui o paraíso? - inquiriu à maneira do sertanejo bisonho que visita grande metrópole

pela primeira vez.

-Sim - informou o interpelado, gentilmente -, estamos numa cidade celestial.

-Quer dizer, então, em boa geografia, que já não respiramos a atmosfera da carne... -

tornou o recém-chegado, hesitante.

-Não tanto - esclareceu o enviado fraterno.

De tímpanos aguçados, Pires registrou a chamada dos clarins de serviço e considerou,

tímido:

-Meu amigo, que eu não sou mais do número dos "vivos"...

O outro completou-lhe a frase reticenciosa, asseverando:

-Não padece qualquer dúvida...

-Mas - prosseguiu o "morto" adventício -, trabalham, ainda, aqui?

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-Muitíssimo.

-Há, nesta cidade, horários, distribuição de tarefas, responsabilidades individuais,

disposições de lei, lutas e conflitos?

O mensageiro esboçou expressivo gesto de complacência e observou:

- Acredita que a morte da carne, mero fenômeno da Natureza, purifique o Espírito

milagrosamente? Temos enorme serviço a fazer. E o repouso para nós é lição, reparo ou

estímulo. Nossa felicidade não se cristalizaria em altares imóveis.

-Oh! - clamou Joaquim aflito - a justiça ensinava-me no mundo que há um paraíso para os

bons e um inferno para os maus.

-E você - interrogou o companheiro, intencionalmente - se julga perfeitamente bom?

-Não - respondeu Pires com humildade não fingida -, sou um pecador, bem o reconheço;

contudo... Francamente, não admitia houvesse tanto serviço após o sepulcro.

-Suporá inoportuno e intempestivo nosso propósito de luta e solidariedade, melhoria e

reconstrução? Quem não é infinitamente bom, deve amparar quem não é infinitamente

mau. É imprescindível atender aos imperativos da vida.Só Deus é o Absoluto.

-Sim, compreendo... - resmungou Joaquim, descoroçoado - todavia, sonhava com a paz

perpétua.

E continuou:

- Existe aqui chefia e subalternidade?

- Perfeitamente.

- Servidores melhores e piores?

- Sim, em mais elevado padrão de justiça e aproveitamento.

- Há estudos e provas, especializações e obrigações?

- Muito além dos ensaios que efetuamos na Terra...

- Há probabilidades de erro e dúvida, discussão e negação?

- Em todas as rotas de ação, porque o livre-arbítrio da alma evolvida é naturalmente a

cooperar na estruturação dos destinos, com a supervisão da Vontade de Deus.

- Conseqüentemente - prosseguiu Joaquim -, há reparações e punições, desequilíbrios e

dificuldades.

- Exatamente. Você não ignora que onde o erro é possível deve existir recurso para a

corrigenda.

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O recém-desencarnado meditou, meditou e aduziu:

- Procuro o repouso inalterável... Quem sabe resplandece em esfera mais elevada o céu

que busco?

- Assim não é - disse-lhe o interlocutor. Quanto mais alto subir, ais trabalho encontrará,

embora em condições diferentes.

Pires, sentou-se, apalermado, sob indizível abatimento.

O emissário fixou um gesto de bom humor e acentuou com clareza:

- Parece-me que o paraíso, sonhado por você, é o éden da espécie "Limax arborum".

Essas criaturas, que no fundo são igualmente filhas de deus, organizam o próprio lar,

através de folhas e flores. Aquietam-se e dormem descansadas sob a claridade do

firmamento. Nada perguntam. Não riem, nem choram. Desconhecem os enigmas. Não

sabem o que vem a ser aflição ou dor de cabeça. Alimentam-se daquilo que encontram

nas árvores preciosas da vida. Ignoram se há guerra ou paz, dificuldade ou pesadelo

entre os homens. Vivem alheias aos dramas biológicos, aos conflitos espirituais e, se um

cataclismo fulminasse o Universo em que nos achamos, não registrariam grandes

diferenças...

-Oh! - gritou Joaquim, repentinamente entusiasmado - quem são esses seres

privilegiados?

-São as lesmas - esclareceu o emissário, sorrindo -, e se você descer, suficientemente,

encontrará o paraíso delas...

Joaquim modificou a expressão facial e, embora consternado, quando ouviu falar em

lesmas, resolveu entrar.

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33 - LEMBRANDO A PARÁBOLA

Ao enviar três servos de confiança para servi-Lo em propriedade distante, onde outros

milhares de trabalhadores, em diversos degraus da virtude e da sabedoria, lavravam a

terra em louvor de, tua grandeza divina, o Supremo Senhor chamou-os à sua presença e

distribuiu com eles preciosos dons.

Afagado o primeiro, entregou-lhe cinco “talentos”, notificando:

– Conduze contigo estes tesouros da alegria e da prosperidade. São eles a Saúde, a

Riqueza, a Habilidade, o Discernimento e a Autoridade. Multiplica-os, aonde fores, em

benefício dos pneus filhos e teus irmãos que, em situação inferior à tua, avergados ao

solo do planeta a quem levarás minhas bênçãos, se esforçam mais intensamente.

Ao segundo servidor passou dois “talentos”, acentuando:

– Transporta contigo esta duas preciosidades, que se destinam ao esclarecimento e

auxílio do mundo a que te diriges. São ambas, a inteligência e o Poder. Estende estes

patrimônios respeitáveis às minhas construções eternas.

Ao terceiro, confiou apenas um “talento”, aclarando, cuidadoso :

– Apossa-te desta lâmpada sublime e segue. É a Dor, o dom celeste da iluminação

espiritual, Acende-a em teu campo de trabalho, em favor de ti mesmo e dos semelhantes.

Seus raios abrem acesso aos tabernáculos divinos.

Em seguida fixou os três colaboradores que partiam e explicou:

– Aguardá-los-ei de regresso, para as contas.

O tempo correu, célere, e veio o dia em coque os mensageiros voltaram ao pátrio lar.

O Soberano esperava-os no pórtico, esperançoso e feliz.

Findas as saudações usuais, o primeiro enviado adiantou-se e entregou-lhe dez

“talentos”, relacionando :

– Senhor, eis tuas dádivas multiplicada. Deste-me cinco e restituo-as em dobro.

Respeitando a Saúde, adquiri o Tempo ; espalhando a Riqueza, aliciei a Gratidão ;

usando a Habilidade, recebi a Estima; movimentando o Discernimento, conquistei o

Equilíbrio, e distribuindo a Autoridade em teu nome, ganhei a Ordem. O teu plano de

júbilo e evolução foi executado.

O Senhor o abençoou-o e explicou :

– Já que foste fiel nestes negócios de pouca monta, conceder-te-ei a intendência de

importantes interesses de minha casa.

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Aproximou-se o segundo e depositou-lhe nas mãos quatro “talentos”, informando:

– Senhor, recebe teus haveres multiplicados. Elevando a Inteligência obtive o Trabalho e,

submetendo o Poder à tua vontade sábia, atraí o Progresso. A tua expectativa de

instrução e ajuda no meu setor de atividade foi atendida.

O Pai louvou-lhe a conduta e falou, contente:

– Já que revelaste lealdade no “pouco”, ser-te-á conferido o “muito” das grandes tarefas.

Logo após, acercou-se o terceiro e último servo da expedição e, devolvendo, intacto, o

patrimônio que recebera, notificou:

– Senhor, recolhe de volta a indesejável herança que me deste... Sei que és austero e

exigente, que colhes o que não semeias e que ordenas por toda parte... Experimentando

enorme dificuldade para agüentar a carga que me puseste nos ombros temendo-te o

juízo, escondi-a na terra e reponho-a, agora, em tuas mãos... Esta dádiva é um fardo

difícil de carregar... Constituiu-se desagradável recordação por onde passei, estorvou-me

os desejos e, de modo algum, desejaria possuí-la, outra vez.

É impossível obter lucros ou vantagens com semelhante obstáculo. Retoma, pois, teu

estranho e insuportável depósito!...

O Poderoso contemplou-o, triste, e falou, enérgico:

– Servo mau e infiel, como poderias multiplicar minha benção se nem ao menos te deste

ao esforço de examiná-la? Como iluminar o caminho se mantiveste a lâmpada apagada?

Tua ociosidade transformou alguns gramas de serviço benéfico em várias toneladas de

angústia que doravante pesarão sobre ti. Criaste fantasmas que nunca existiram,

multiplicaste preocupações e receios que te levaram a gritar e espernear como simples

tolo, no avançado círculo de minhas obras... Por fim, atiraste-me o tesouro ao pântano do

desespero e da revolta e vens comentar o temor e o zelo que minha presença, te infunde,

quando foste tão somente preguiçoso e insensato! A Dor era a tua oportunidade sagrada

e única de iluminação ao próprio caminho, para que a tua claridade amparasse os

companheiros de luta regenerativa e salutar. Repeliste o dom que te confiei... Volta,

portanto, à sombra e à desesperação que abraçaste!...

E o servo, que se perdera pela imprevidência e pela inconformação, somente entendeu o

sublime valor da lâmpada do sofrimento quando se viu sozinho e desamparado, nas

trevas exteriores.

89

34 - NA SUBIDA CRISTÃ

Filipe, o velho pescador fiel ao profeta Nazareno, meditando bastas vezes na grandeza do

Evangelho, punha-se a monologar para dentro da própria alma.

“A Boa-Nova – dizia consigo mesmo – era indiscutivelmente um monte divino, alto

demais, porém, considerando-se as vulgaridades da existência comum. O Mestre era,

sem duvida, o Embaixador do Céu. Entretanto, os princípios de que era portador

mostravam-se transcendentes em demasia. Como enfrentar as dificuldades e resolvê-las?

Ele, que acompanhava o Senhor, passo a passo, atravessava obstáculos imensos, de

modo a segui-lo com fidelidade e pureza. Momentos surgiam em que, de súbito, via

esfaceladas as promessas de melhoria íntima que formulava a si próprio. É quase

impraticável a ascensão evangélica. Os ideais, as esperanças e objetivos do Salvador

permaneciam excessivamente longínquos ao seu olhar... Se os óbices da jornada

espiritual lhe estorvavam sadios propósitos do coração, que não ocorreria aos homens

inscientes da verdade e mais frágeis que ele mesmo?”

Em razão disso, de quando em quando interpelava o Amigo Celeste, desfechando-lhe

indagações.

Jesus, persuasivo e doce, esclarecia:

– Filipe, não te deixes subjugar por semelhantes pensamentos. É indispensável instituir

padrões superiores com a revelação dos cimos, inspirando os viajores da viela e

estimulando-os, quanto for necessário... Se não descerrarmos a beleza do píncaro, como

educar o espírito que rasteja no pântano?

Não menosprezes, impensadamente, a claridade que refulge, além...

– Mas, Senhor – obtemperava o companheiro sincero –, não será mais justo graduar as

visões? o amor que pleiteamos é universal e infinito. A maioria das criaturas, porém, sofre

estreiteza e incompreensão. Muitos homens chegam a odiar e perseguir como se

praticassem excelentes virtudes. Filósofos existem que consomem a vida e o tempo

entronizando os que sabem tiranizar. É razoável, portanto, diminuir a luz da revelação,

para que se não ofusque o entendimento do povo. No transcurso do tempo, nossos

continuadores se encarregariam de mais amplas informações...

O Cristo sorria, benevolente, e acrescentava:

– Se as idéias redentoras de nossos ensinamentos são focos brilhantes de cima,

reconheçam que a mente do mundo está perfeitamente habilitada a compreendê-las e

materializá-las. Não é a coroa da montanha que perturba a planície. E se obstáculos

aparecem, impedindo-nos a subida, estas dificuldades pertencera a nós mesmos. Uma

estrela beneficia sempre, convida ao raciocínio elevado; no entanto, jamais incomoda.

Não maldigas, pois a luz, porque todo impedimento na edificação do Reino Celeste está

situado em nós mesmos.

90

O velho irmão penetrava o terreno das longas perquirições interiores e concluía,

afirmando:

– Senhor, como eu desejava compreender claro tudo isto!

Silenciava Jesus na habitual meditarão.

Certo dia, ambos se preparavam para alcançar os cimos do Hermon, em jornada

comprida e laboriosa, quando o apóstolo, ainda em baixa altitude, se pôs a admirar,

deslumbrado, os resplendores que fluíam da cordilheira.

Terminara o lençol verdoengo e florido.

Atacaram a marcha no carreiro íngreme.

Agora, era a paisagem ressequida e nua.

Pequeninos seixos pontiagudos recheavam o caminho.

Não obstante subirem devagar, Filipe, de momento a momento, rogava pausa e, suarento

e inquieto, sentava-se à margem, a fim de alijar pedras minúsculas que, sorrateiras, lhe

penetravam as sandálias. Gastava tempo e paciência para localizá-las entre os dedos

feridos. Dezenas de vezes, pararam, de súbito, repetindo Filipe a operação e, ao

conquistarem as eminências da serra, banhados de sol, na prodigiosa visão da natureza

em torno, o Mestre, que sempre se valia das observações diretas para fixar as lições,

explicou-lhe, brandamente:

– Como reconheces, Filipe, não foi a claridade do alto que nos dificultou a marcha e, sim,

a pedrinha modesta do chão. O dia radioso nunca fez mal entretanto, muitas vezes, as

questões pequeninas do mundo interrompem a viagem dos homens para Deus, Nosso

Pai. Quase sempre, a fim de prosseguirmos na direção do dever elevado e soberano,

nossa alma requisita a cooperação dos outros, tanto quanto os pés necessitam da

sandália protetora nestes caminhos escabrosos... Toda dificuldade na ascensão reside

nos problemas insignificantes da senda... Assim também, na caminhada humana, as

questões mais ínfimas, se conduzidas pela imprudência, podem golpear duramente o

coração. Observa o minuto de palestra, a opinião erradia, o gesto impensado... Podem

converter-se em venenosas pedrinhas que cortam os pés, ameaçando-nos a estabilidade

espiritual. Entendes, agora, a importância das bagatelas em nosso esforço diário?

O pescador galileu meneou a cabeça, significativamente, e respondeu, satisfeito:

– Sim, Mestre, agora compreendi.

91

35 - INESPERADA OBSERVAÇÃO

Assim que a fama de Jesus Se espalhou fartamente, dizia-se, em torno de Genesaré, que

o Messias jamais desprezava o ensejo de ensinar o bem, através de todos os quadros da

natureza.

Ante as ondas revoltas, comentava as paixões que devastam a criatura; contemplando

algum ninho com filhotes tenros, exaltava a sublimidade dos elos da família; à frente das

flores campesinas louvava a tranqüilidade e a segurança das coisas simples; ouvindo o

cântico das aves, reportava-se às harmonias do alto. Ocasião houve em que de uma

semente de mostarda extraiu glorioso símbolo para a fé e, numa tarde fulgurante de

pregação consoladora, encontrara inesquecíveis imagens do Reino de Deus, lembrando

um trigal. Explanou sobre o amor celeste, recorrendo a uma dracma perdida, e surgiu um

instante, ó surpresa divina, em que o Cristo subtraíra infortunada pecadora ao

apedrejamento, usando palavras que lhe denunciavam a perfeita compreensão da justiça!

Reconhecida e proclamada a sabedoria d’Ele, porfiavam os discípulos em lhe arrancarem

referências nobres e sábias palavras. Por mais se revezassem na exposição de feridas e

maldades humanas, curiosos de apreender-lhe a conceituarão da vida, o Mestre

demonstrava incessantes recursos na descoberta da “melhor parte”.

Como ninguém, sabia advogar a causa dos infelizes e identificar atenuantes para as faltas

alheias, guardado o respeito que sempre consagrou à ordem. Guerreava abertamente o

mal e chicoteava o pecado. Entretanto, estava pronto invariavelmente ao socorro e

amparo das vítimas. Se vivia de pé contra os monstros da perversidade e da ignorância,

nunca foi observado sem compaixão para com os desventurados e falidos da sorte.

Levantava e animava sempre. Estimulava as qualidades superiores sem descanso,

surpreendia ângulos iluminados nas figuras aparentemente trevosas.

Impressionados com aquela feição d’Ele, Tiago e João, certa feita, ao regressarem de

rápida estada em Cesaréia, traziam, espantados, o caso de um ladrão confesso, que fora

ruidosamente trancafiado no cárcere...

Pisando Cafarnaum, de retorno, Tiago disse ao irmão, após relacionar as dificuldades do

prisioneiro:

– Que diria o Senhor se viesse a sabê-la. Tiraria ilações benéficas de acontecimento tão

escabroso?

Ouvido pelo irmão, com indisfarçável interesse, rematou:

– Dar-lhe-ei notícias do sucedido.

Com efeito, depois de abraçarem Jesus, de volta, o filho de Zebedeu passou a narrar-lhe

a ocorrência desagradável, em frases longas e inúteis.

92

– O criminoso de Cesaréia – descreveu, prolixo – fora preso em flagrante, em seguida a

audaciosa tentativa de roubo, que perdurara por seis meses consecutivos. Conhecia,

através de informações, vasto ninho de jóias pertencentes a importante família romana e,

por cento e oitenta dias, cavara ocultamente a parede rochosa, de modo a pilhar as

preciosidades, sem testemunhas. Fizera-se passar por escravo misérrimo, sofrera açoites

na carne, padecera fome e sede, por determinações de capatazes insolentes, trabalhara

de sol a sol num campo não distante da residência patrícia, tão só para valer-se da noite,

na transposição do obstáculo que o inibia de apropriar-se dos camafeus e das pedras,

das redes de ouro e dos braceletes de brilhantes. Na derradeira noite de trabalho sutil, foi

seguido pela observação de um guarda cuidadoso e, quando mergulhava as mãos ávidas

no tesouro imenso, eis que dois vigilantes espadaúdos agarram-no pressurosos. Buscou

escapar, mas debalde. Rudes bofetadas amassaram-lhe o rosto e dos braços duramente

golpeados corria profusamente o sangue. Aturdido, espancado, depois de sofrer pesadas

humilhações, o infeliz, agonizando, fora posto a ferros em condições nas quais, talvez,

não lhe seria dado esperar a sentença de morte...

O Mestre ouviu a longa narrativa em silêncio e, porque observasse a atitude expectante

dos aprendizes, neles fixou o olhar percuciente e doce e falou:

Se a prática do mal exige tanta inteligência e serviço de um homem, calculemos a nossa

necessidade de compreensão, devotamento e perseverança no sacrifício que nos reclama

a execução do verdadeiro bem.

Logo após, afastou-se, pensativo, enquanto os dois jovens companheiros se

entreolhavam, surpresos, sem saberem que replicar.

93

36 - NAS HESITAÇÕES DE PEDRO

Logo depois de se estabelecerem os apóstolos em Jerusalém, em seguida às revelações

do Pentecostes, ia o serviço de assistência social maravilhosamente organizado, não

obstante as perseguições que se esboçavam, quando a casa acolhedora, dirigida por

Simão Pedro, foi procurada por infeliz mulher. Trazia consigo todos os estigmas das

pecadoras. Fora lapidada e exibia manchas sanguinolentas na roupa em frangalhos.

Pronunciava palavras torpes. Revelava-se semilouca e doente.

As senhoras do reduto cristão retraíram-se, alarmadas. E o próprio Pedro, que recebera

preciosas lições do Senhor, vacilou quanto à atitude que lhe seria adequada.

Como haver-se nas circunstâncias? Destinava-se aquele abrigo ao recolhimento de

criaturas desventuradas; entretanto, como classificar a triste posição daquela mulher que,

naturalmente, buscara o vaso da angústia nos excessivos gozos da vida? Não estaria a

sofredora resgatando os próprios débitos? Se bebera com loucura na taça dos prazeres,

não lhe caberia o fel da aflição?

Dispunha-se a rogar-lhe que se afastasse do asilo, quando recordou a necessidade de

orar. Se o caso era omisso nas disposições que regiam o instituto fraterno, tornava-se

imperioso consultar a inspiração do Messias.

O Mestre lhe ditaria o recurso. Buscar-lhe-ia, por isso, o conselho na prece ardente.

Enquanto a infortunada aguardava resposta, sob o apupo de pequena multidão que lhe

contemplava as feridas, o apostolo buscou a solidão do santuário doméstico, e exorou a

proteção do Amigo Divino, que fora crucificado.

Em breves instantes viu Jesus, nimbado de claridade resplandecente, não longe de suas

mãos, que se estenderam suplicantes:

- Mestre - rogou Pedro, atacando diretamente o assunto, como quem sabia da brevidade

daqueles momentos inesquecíveis -, temos à entrada uma pecadora reconhecidamente

entregue ao mal! Ajuda-me, inspira-me!... que farei?!...

O Salvador entreabriu os lábios sublimes e falou:

- Pedro, eu não vim curar os sãos...

O discípulo entendeu a referência, mas, ponderando a grave responsabilidade de quem

administra, acentuou:

- Senhor, estamos agora sem tua orientação direta e visível. Recebê-la-emos neste lar,

para que? A fim de julgá-la?

Com o mesmo olhar sereno, Jesus replicou:

94

- Nesse mister permanecem na Terra numerosos juizes.

- Para fazer-lhe sentir a extensão dos erros? - indagou Simão, em lágrimas.

- Não, Pedro - tornou o Mestre -, para dar-lhe conhecimento da penúria em que vive,

conta nossa irmã, nas vias públicas, milhares de bocas que amaldiçoam e outras tantas

mãos que apedrejam.

- Para conferir-lhe a noção do padecimento em que se mergulhou por si mesma?

- Também não. Em tarefa ingrata como essa, vivem aqueles que a exploram, dando-lhe

fome e sede, pranto e aflição...

- Para dizer-lhe das penas que a esperam neste e no “outro mundo”?

- Ainda não. Nesse labor terrível respiram os espíritos acusadores, que não hesitam na

condenação em nome do Pai, olvidando as próprias faltas...

O ex-pescador de Cafarnaum, então, chorou, súplice, porque no íntimo desejava

conformar-se com os ditames da justiça, exemplificando, simultaneamente, com o amor

que o Cristo lhe havia legado. Arquejava, soluçante, ignorando como prosseguir nas

indagações, mas Jesus dele se acercou, iluminado e benevolente... Enxugou-lhe as

lagrimas que corriam abundantes e esclareceu:

- Pedro, para ferir e amaldiçoar, sentenciar e punir, a cidade e o campo estão cheios de

maus servidores. Nosso ministério ultrapassa a própria justiça. O Evangelho, para ser

realizado, reclama o concurso de quem ampara e educa, edifica e salva, consola e

renuncia, ama e perdoa... Abre acesso à nossa irmã transviada e auxilia-a no

reerguimento. Não a precipites em despenhadeiros mais fundos... Arranca-a da morte e

traze-a para a vida... Não te esqueças de que somos portadores da Boa Nova da

Salvação!...

Logo após, entrou em silêncio, diluindo-se-lhe a figura irradiante na claridade evanescente

da hora vespertina...

O apóstolo levantou-se, deu alguns passos, atravessou extensa fileira de irmãos

espantados, abriu, de manso, a porta e dirigiu-se à mulher, acolhedor:

- Entre, a casa é sua!

- Quem sois? - interrogou a infeliz, assombrada.

-Eu? - falou Pedro, com os olhos empapuçados de chorar.

E concluiu:

- Sou seu irmão.

95

37 - CANDIDATO IMPEDIDO

Quando o Mestre iniciou os serviços do Reino Celeste, em torno das águas do Genesaré,

assinalando-se por indiscutíveis triunfos no socorro aos aflitos e comentando-se-lhe as

disposições de receber companheiros e aprendizes, muita gente apareceu ávida de

novidade, pretendendo o discipulado. Não seria agradável seguir aquele homem divino,

que restaurava a saúde dos paralíticos e abria novos horizontes à fé? A palavra d’Ele,

represada de amor, falava de um reino porvindouro, onde os aflitos seriam consolados.

Suas mãos, como que tocadas de luz sublime, distribuíam paz e bem-aventurança, bom

ânimo e alegria. Acompanhá-lo seria serviço tentador.

Em razão disso, muito grande era o número de mulheres e homens que o buscavam

diariamente.

Acreditava-se em nova ordem política na província. Sobrariam talvez posições

importantes e remunerações expressivas.

Mães esperançadas procuravam confiar os filhos ao Messias Nazareno. Jovens e velhos

entusiastas vinham, de longe, de modo a se colocarem na dependência d’Ele. Para

quantos que se lhe apresentavam, voluntariamente, pronunciava uma frase amiga,

mostrava um sorriso benévolo, fixava um gesto confortador.

Foi assim que, em radiosa manhã, quando o Senhor descansava na residência de Levi,

por alguns minutos, apeou de uma liteira adornada certo cavalheiro a caracterizar-se pelo

extremo apuro.

O recém-chegado tratou, célere, do objetivo que o trazia. Interpelou o Cristo, diretamente.

Queria o discipulado. Ouvira comentários ao novo reino e desejava candidatar-se a ele.

Sobretudo – esclareceu, fluente –, honrar-se-ia acompanhando o Mestre, ao longo de

todas as suas pregações e ensinamentos.

O Profeta contemplou-lhe a indumentária brilhante e perguntou:

– Em verdade, aceitas os testemunhos do apostolado?

– Perfeitamente – replicou o moço, cortês.

– Hoje – disse o Mestre, após longa, pausa –, temos em Cafarnaum dois loucos

agonizantes, num telheiro junto à casa de Pedro, reclamando

cooperação fraternal. Poderás ajudar-nos a socorrê-los?

O rapaz franziu a testa e acentuou:

– Não hesitaria. Entretanto, sou armeiro de Fassur, principal da casa de Herodes e

guardo esse título com veneração. A um pajem de minha, estirpe, não ficaria adequado

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semelhante serviço. Os nobres da raça poderiam identificar-me. A crítica não me

perdoaria e talvez não pudesse satisfazer a incumbência...

Jesus não se irritou.

Contemplando o interlocutor surpreendido, propôs, bondosamente:

– Duas órfãs estão em casa de Joana, aguardando mão carinhosa que as ampare quem

sabe? Dispondo de tantas relações prestigiosas, não conseguirias encaminhá-las a

destino edificante? São meninas necessitadas de proteção sadia.

– Oh! não posso! – exclamou o noviço, escandalizado – sou explicador dos textos de

Ezequiel e nos trenos de Jeremias, fora de Jerusalém.

Documentação de sacerdotes ilustres aprova-me a cultura sagrada. A um intérprete do

Testamento, de minha condição, não quadraria a oferta de crianças desprezadas... Como

vemos...

Sem alterar-se, o Mestre lembrou:

– Um paralítico moribundo foi recolhido á casa de Filipe. Veio transportado de grande

distância, pleiteando a cura impossível. Está cansado; aflito, e Filipe permanece ausente

em missão de socorro... Se lhe desses dois dias de assistência piedosa, praticarias nobre

ação...

– É impraticável! – tornou o rapaz – sou fiscal das disposições do Levítico e, nessa

função, provavelmente seria compelido a isolar o enfermo no vale dos imundo ... A

medida é imperiosa se ele houver ingerido carnes impuras.

O Senhor esboçou um sorriso e agradeceu.

Insistindo, porém, o interlocutor, Jesus indagou:

– Que pretendes, enfim?

– Garantir futura representação do reino que se aproxima...

O Nazareno fitou nele o olhar translúcido e redargüiu:

– Erraste o caminho. Naturalmente o teu carro deve seguir para Jerusalém, onde se

concentram todos aqueles que distribuem cargos bem pagos.

– Mas, reitero a solicitação – disse o armeiro de Fassur, – quero colocar-me dentro da

nova ordem!...

Apesar do imperativo que transparecia daquela voz, o Mestre finalizou, muito calmo:

– Prossegue em teu caminho e não teimes.

97

Realmente, reclamamos companheiros para o ministério. Já possuis, todavia, muitos

títulos de inibição e o Evangelho precisa justamente de corações desembaraçados que

estejam prontos ao necessário auxílio em nome de Nosso Pai.

O explicador dos textos de Ezequiel deu uma gargalhada, olhou para o Messias

evidenciando inexcedível sarcasmo, qual se houvera defrontado um louco, e partiu sem

compreender.

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38 - ENTRE O BEM E O MAL

O Gênio do Bem e O Gênio do Mal aproximaram-se simultaneamente do Homem e

ocuparam-lhe as antenas receptivas da mente, disputando-lhe a colaboração.

Empenhado na construção do Reino de Deus, sobre a Terra, o Gênio do Bem, mais

poderoso e mais forte, assoprou-lhe a fronte, desanuviando-a, e notificou-lhe, através do

“sem fio” do pensamento:

– Filho meu, venho abrir-te Caminho para a luz eterna. Arrebatar-te-ei a sublimes

culminâncias. Integrarás o séqüito de cooperadores do Altíssimo. Com o teu concurso, o

planeta libertar-se-á da peste, da fome e da guerra e o paraíso brilhará entre as

criaturas...

Fremia o Homem de gozo íntimo.

O nume celeste, porém, passou a relacionar as condições:

– Para esse fim, iniciarás os serviços renunciando às facilidades humanas.

Regozijar-te-ás quando fores desprezado.

Servirás sem descanso.

Nunca reclamarás recompensa.

Ajudarás ao necessitado que se perdeu no sofrimento e ao ímpio que se precipitou nos

despenhadeiros da ignorância.

Alegrar-te-ás com a prosperidade de todos e preferirás o sacrifício de ti mesmo.

Rejubilar-te-ás com o êxito de teus amigos, tanto quanto lhes partilharás a dor.

Não te deterás sobre as imperfeições de ninguém; entretanto, vigiarás, dia e noite, os teus

próprios defeitos, de maneira a corrigi-los definitivamente.

Confiarás no Senhor de modo invariável, ainda mesmo quando o desânimo te assedie por

todos os lados.

Não pleitearás o incenso bajulatório.

Fixar-te-ás no dever, acima de todas as considerações, convicto de que toda a glória

pertence ao Criador.

Estimarás os que te não compreendam. Desculparás, centenas de vezes, diariamente.

Não perderás tempo na curiosidade vazia. Consagrar-te-ás à prática do bem, sem

perguntas vãs.

99

Não te prenderás aos resultados da ação, para que os cárceres floridos não te

surpreendam a alma.

Colabora no bem de todos, aprendendo a servir.

E, sobretudo, não te esqueças de que só o amor sacrificial te conferirá energias e

recursos para a obra imortal que proponho.

Interrompeu-se o anjo, e o Homem, longe de entusiasmar-se com a oferta, entregou-se a

profunda estranheza...

Nesse instante, o Gênio do Mal, interessado na conservação do império do “eu”,

assoprou-lhe a fronte, turvou-a com o magnetismo da ilusão e falou:

– Meu filho, não te preocupes com os ideais superiores.

As estrelas são maravilhosas lâmpadas no firmamento, mas são inalcançáveis.

Auxilia-me a conservar a Terra tal qual é, para que a luz nos não incomode o milenário

serviço de sombras.

Alarga a tua gaiola e põe as almas desprevenidas dentro dela.

Prende nas mãos os que se acerquem de teu roteiro.

Jamais perdoes, porque perdão é fraqueza...

Antes de ser bom, preocupa-te em não seres tolo.

A renúncia é a arte dos covardes.

Se alguma bomba te ameaça o domicílio, trata de colocá-la à porta do vizinho.

Nunca te sacrifiques por ninguém.

Concentra-te nos lucros imediatos e multiplica vantagens e direitos.

Quando não encontrares cortejadores do teu nome, diligencia o louvor em boca própria.

Não cogites de muita construção elevada, mas não te esqueças de boa e contínua

propaganda de ti mesmo.

Pensa em ti noventa e nove vezes e reflete nos interesses dos outros apenas uma vez em

cada cem, caso te seja isso possível. Assim vencerás.

Não acredites em paz, fora de teu leito ou de tua mesa, nem gastes tempo com o mito da

fraternidade universal.

100

Amontoa pedras preciosas e ouro puro, convertendo-os em forte coluna no cimo da qual

possas conversar tranqüilamente com os teus semelhantes.

Recorda que a trincheira monetária é o único lugar do planeta em que respirarás

suficientemente seguro.

Em troca de tua colaboração valiosa – e o portador do mal fez carantonha diabólica –

auxiliar-te-ei a obter boa casa, cama confortadora, prazeres e comida farta.

O Homem acabou de registrar a proposta no pensamento e quase enlouqueceu de

alegria. Incumbiu-se, ele mesmo, de desligar-se da influência do Gênio do Bem e confiouse,

desvairado, ao Gênio do Mal.

O mensageiro do céu viu-se posto à margem e o satânico inspirador, lançando-lhe

sarcástico olhar, desafiou:

– Então? Não me arrebatarás o aliado incondicional.

Reparando, contudo, que o emissário divino permaneceu calado, bradou, estentórico:

– Porque não confundes o Homem com o teu poder e sabedoria?

O interpelado respondeu sem irritar-se :

– Tenho mais quefazeres e não me cabe despender as horas em contendas inúteis. O

assunto, porém, não está liquidado. Se o Gênio da Dor não passar por aqui em breves

dias, voltarei, mais tarde, em companhia do Gênio da Morte... ;.

E afastou-se, rápido, certamente no intuito de dirigir-se a outros homens.

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39 - A INDAGAÇÃO DO INSPETOR

O agrupamento doutrinário, naquela noite, apresentou aspecto festivo. Duas semanas

antes, Abel, um dos orientadores espirituais da casa, anunciou a visita de um mensageiro

de Jesus, marcada para àquela hora. Viria de muito alto, não só trazendo a bênção do

Senhor, mas também no propósito de inspecionar a humilde instituição.

Deviam preparar-se os companheiros para a venerável presença e, em razão disso, a

pequena comunidade se desdobrou em serviço e carinho.

Nas paredes muito limpas viam-se tufos de flores odorantes. A luz derramava-se, profusa,

de lâmpadas bem cuidadas. Extenso tapete amortecia o rumor dos passos de quantos,

cautelosamente, penetravam o recinto e a atmosfera recordava o sagrado silêncio de um

templo antigo.

Quando os dez cooperadores encarnados se agregaram em torno da mesa simples e

acolhedora, a rogativa do diretor se elevou, comovente e cristalina.

Nós mesmos, ouvindo-a, registrávamos inefável emoção.

O grupo realmente, constituía-se de servidores da crença, sinceros e bem-intencionados.

Talvez, por isso mesmo, merecia a elevada deferência da noite.

Terminada que foi a oração de abertura, fomos notificados de que o embaixador de cima

não tardaria.

Com efeito, em dois minutos, inundou-se o ambiente de suave luz.

O emissário, como que cercado por vasta auréola de estrelas evanescentes, ingressou no

santuário, revelando expressão de sublime benevolência.

Cumprimentou-nos, afavelmente, incorporou-se ao médium mais apto e, demonstrando

avançada sabedoria e inexcedíveis virtudes, saudou a turma em serviço, comentando a

magnanimidade de Jesus que nos permitia o júbilo daqueles momentos reconfortantes.

Exaltou a expectativa da esfera superior, relativamente à colaboração humana, e, em

seguida, pediu que os amigos encarnados algo informassem, individualmente, com

referência ao Espiritismo cristão na existência de cada um deles.

Tínhamos a idéia de contemplar iluminado instrutor em delicada maratona, junto a

reduzida e estudiosa classe escolar.

Constrangidos pela generosidade e pelo carinho da solicitação, os companheiros

passaram a responder, começando pelo condutor da assembléia.

- Graças a Deus! – informou o presidente do grupo – tenho aqui minha luz confortadora. O

Espiritismo renovou-me os caminhos... Sou outro homem. Meu desagradável passado

desapareceu... Em tempo algum recebi tamanha claridade no coração! Sou feliz, meu

102

grande benfeitor, e agradeço ao Supremo Pai a dádiva do conhecimento que tanta

ventura me trouxe!...

Logo após, falou D. Castorina, devotada cooperadora da organização:

- Encontrei nesta fé consoladora o meu refúgio de paz. Bendito seja Jesus, o nosso Divino

Mestre!...

Depois dela, o Senhor Câmara, médium em desenvolvimento, esclareceu, emocionado:

- A Nova Revelação é maravilhosa fonte de alegria para minha alma. Não posso

expressar a gratidão que me vibra no ser.

Calando-se o companheiro, o Senhor João Costa, admirável interprete das idéias cristãs,

explicou:

- Beneficiado que fui pelo Espiritismo, nunca mais sofri dúvidas. O Evangelho dá-me

agora definitiva segurança, pois reconheço que a Justiça Divina é perfeita e que o Espírito

é imortal.

A senhora dele, logo que o marido silenciou, tomou a palavra, assegurando:

- A doutrina é minha vida!...

Finda aquela assertiva breve, o Senhor Freitas, atencioso leitor de teses científicas e mais

loquaz que ou outros, comentou em fraseologia brilhante as ponderações “richeístas”,

referiu-se ao metapsiquismo europeu e terminou, afiançando:

- O Espiritismo é o único sistema que pacifica a inteligência. Nele, temos a crença, a

razão e a lógica perfeitamente atendidas.

Depois disso, D. Emerenciana enunciou:

- Nos princípios do Espiritismo cristão, achei a minha felicidade.

E D. Nair, ao lado dela, ajuntou:

- Eu também.

Por último, o Senhor Soares, fundamente concentrado na prece, exclamou:

- O Espiritismo é o meu farol definitivamente aceso... Sem ele, há muito tempo eu estaria

nas trevas do crime...

Retornando à quietude anterior, o emissário agradeceu a reverência e o carinho que

transpareciam das respostas ao pedido que formulara e acrescentou:

- Meus amigos, que a Nova Revelação é indiscutível mensagem do céu para os caminhos

humanos, estabelecendo o império do bem, provando a sobrevivência da alma além da

morte e oferecendo conforto positivo, não padece qualquer dúvida! Todos vos sentis

103

edificados, esclarecidos e felizes!... Mas o que Jesus deseja saber é justamente o que

vindes realizando com essa bênção. Em verdade, o Espiritismo é vossa lâmpada... Que

tendes feito dela? É um ideal superior... Que proveito organizais com ele? É uma dádiva

celestial... Que benefícios produzis em vós outros ou em derredor de vossos passos,

usando semelhante graça?

Interrompeu-se o inspetor divino e, em vista de se calarem os circunstantes,

respeitosamente, a se entreolharem agora espantadiços, o venerando amigo despediu-se,

bem-humorado, e prometeu voltar breve.

104

40 - ROGATIVA REAJUSTADA

Ildefonso, o filho de Dona Malvina Chaves, dama profundamente virtuosa e devotada à

causa do bem, há quatro longos anos jazia semi-acamado; entretanto, preso à situação

difícil, assemelhava-se a um cordeiro. Parecia estimar as preces maternas, consagravase

à leitura edificante e sabia conversar, respeitoso e gentil, encorajando quem o

visitasse.

Contemplando-o, comovidamente, a desvelada mãe inquiria o Médico Divino, ansiosa:

– Senhor, que motivo trouxe meu filho à invalidez? Não te parece doloroso imobilizar a

juventude aos dezoito anos? Traze-o, de novo, aos movimentos da vida! Restaura-lhe o

equilíbrio, por piedade!

Levanta-o e consagrar-me-ei inteiramente ao teu divino serviço!...

As lágrimas do sublime coração materno sufocavam as palavras na garganta,

emocionando os amigos espirituais que a assistiam em silêncio.

No propósito de obter a concessão celeste, a prestativa senhora sacrificava-se através de

todas as atividades socorristas.

Visitava moribundos, amparava sofredoras, protegia crianças abandonadas e arriscava a

própria saúde e os recursos na caridade operante, conquistando prestigiosos

colaboradores no plano invisível.

Em virtude dos inúmeros laços de simpatia e reconhecimento, as súplicas da estimada

matrona eram agora secundadas por imenso grupo de entidades espirituais, que

imploravam diariamente a renovação do destino de Ildefonso. Reclamava-se para ele

plena liberdade de movimentação. Esclarecia-se que na hipótese de o enfermo não

merecer a graça, o benefício não deveria tardar, mesmo assim, considerando-se os

méritos da genitora, mulher admirável na fé e no devotamento.

Tantos rogos se multiplicaram e tantas simpatias se entrelaçaram, que, um dia, a ordem

chegou de mais alto, determinado que o jovem fosse reajustado cem por cem.

Os trabalhadores invisíveis, jubilosos, aguardaram ensejo adequado; e quando surgiu um

médium notável, no setor da tarefa curativa, a Senhora Chaves foi inspirada a conduzir o

filho até ele.

O missionário recebeu-a solícito e declarou-se pronto a contribuir no socorro ao doente,

em obediência aos desígnios superiores.

A mãezinha fervorosa observou, no entanto, que aguardava a cura completa, era face da

confiança que a orientara até ali.

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O servo da saúde humana,, cercado de espíritos amorosos e agradecidos, orou, impôs as

mãos sobre o hemiplégico e transmitiu, vigorosamente, os fluidos regenerativos dos

benfeitores desencarnados.

Em breves dias, o prodígio estava realizado.

Ildefonso recuperou o equilíbrio orgânico, integralmente.

E a genitora, feliz, celebrou a bênção, multiplicando serviços de compaixão fraterna e

gestos de elevada renovação espiritual.

Um mês desdobrara os dias consuma, quando Dona Malvina começou a desiludir-se.

Ildefonso, curado, era outro homem. Perdera o amor pelas coisas sagradas. Pronunciava

palavrões de minuto a minuto. Convidado à prece, informava, irreverente, que a religião

era material de enfermarias e asilos e que não era doente nem velho para ocupar-se de

semelhante mister. Inadaptado ao trabalho, fugia à disciplina benéfica. Trocava o dia pela

noite, tal a pressa de esfalfar-se em noitadas ruidosas. Parecia vigilante do clube noturno

e suas despesas desordenadas não chegavam a termo. Se a mãezinha pedia

reconsideração e atitudes, sorria, escarninho, asseverando a intenção de recuperar o

tempo que perdera através de espreguiçadeiras, drogas e injeções.

Com dez meses; era um transviado autêntico.

Embriagava-se todas as noites, tornando ao lar nos braços de amigos, e, quando a

genitora, impondo-lhe repreensões educativas, se negou a pagar-lhe a centésima conta

mais exagerada, Ildefonso falsificou a assinatura de um tio em escandaloso saque de

grandes proporções.

A generosa mãe não sabia como solver o enigma do filho rebelde e ingrato.

Queixas surgiam de toda parte. Autoridades e parentes, amigos e desconhecidos traziam

reclamações infindáveis.

A abnegada senhora via-se aflita e estonteada, ignorando como reajustar a situação,

quando, certa noite, pedindo ao filho ébrio lhe respeitasse os cabelos brancos, foi por ele

agredida a pauladas que lhe provocaram angustiosas feridas no coração. Sem palavras

de revolta, Dona Malvina, a abençoada intercessora, procurou a câmara íntima, em

silêncio, e rogou:

– Médico Divino, compreendo-te agora, os desígnios sábios e justos. Meu filho é também

uma ovelha de teu infinito rebanho!... Não permitas,

Divino Amigo, que ele se converta num mostro!... Não sei, Senhor, como definir-lhe as

necessidades, mas faze-me entender-te as sentenças compassivas e modifica-lhe a rota

desventurada!...

Enxugando o pranto copioso, repetiu as palavras evangélicas:

– Sou tua serva... Faça-se em mim, segundo a tua vontade!...

Intensa luminosidade espiritual resplandecia em torno de sua cabeça venerável. Nova

benção desceu de mais alto e, com surpresa de todos no dia imediato, Ildefonso acordou

paralítico...

106

41 - NA INTERPRETAÇÃO RIGORISTA

Juvenal Silva, após longa incursão nos domínios espiritualistas, concluiu que as aflições

alma representavam fatalidade, que a dor constituía inevitável espinho e que não seria

razoável imiscuir-se nas questões de auxílio. Não afirmavam os filósofos e instrutores que

o indivíduo recebe sempre de acordo com os próprios méritos? se não era possível

modificar a estrutura da semente, porque a audácia de transformar as situações?

Examinando todas as teses doutrinárias “ao pé da, letra”, rematava, convicto: – “para que

ajudar? se o aleijado respira sem movimento e se o pobre sofre miséria e infortúnio, certo,

obedecem a desígnios que não nos compete perturbar”.

Às vezes, em companhia de amigos íntimos, pilheriava:

Em algumas ocasiões, recorria ao caso da víbora enregelada que socorrida pelas mãos

de caridoso caminhoneiro, readquirira o equilíbrio, inoculando-lhe veneno letal.

Retraído nas interpretações que lhe agradavam, passou a vida, paradoxalmente. Aceitava

a Revelação Divina, mas negava o espírito de sacrifício. Se algum companheiro

ponderava a inconveniência do rigorismo, à frente dos textos sagrados, valia-se das

passagens que, de algum modo, lhe garantiam os pontos de vista e observava:

– O próprio Cristo não asseverou que nem um fio de cabelo da cabeça cairá sem que o

Pai o queira? se nossas dificuldades estão dependendo da vontade de Deus, como

entender as interferências da criatura?

Cristalizando-se-lhe a estranha atitude mental, tratou de ensimesmar-se na Terra. Depois

de trancafiar-se na torre falsa do individualismo excessivo, cercou-se de cofres pesados e

flores leves num palacete que resumia os mais avançados serviços de conforto moderno.

Sentindo-se amplamente desobrigado de auxiliar a quem quer que fosse, amealhou

facilmente o que pôde, precavendo-se para o futuro.

No campo teórico, era notável discursador, mas no terreno da ação, Juvenal entregara-se,

inerme, às sugestões que o egoísmo lhe oferecia. Se irmãos de luta lhe batiam às portas,

implorando socorro para desamparados, informava, semi-colérico:

-Não dou. Cada qual recebe o que merece. Onde guardarão vocês a cabeça? Isto é

invasão de seara alheia. A beneficência é dever do Estado. Não posso interferir com

autoridades.

Quando alguém lhe dizia que a dor não esperava por decretos e que a morte não

costumava ler portarias governamentais, explodia furioso:

_ Cada espírito se cerca daquilo que merece ou pede.

E lá vinha Juvenal com vastíssima série de referências às leis regenerativas. Para firmarse,

estribava em estudos de toda sorte. Recorria a doutrinas orientais e ocidentais. Citava

enumeráveis exemplos da própria vida. E ninguém lhe deslocava o parecer.

– Perdoem-me – exclamava, irritadiço mas creio guardarem escassos deveres em casa.

De outro modo, não perturbariam o serviço divino, porquanto esta caridade pedinchona

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não se harmoniza com a justiça. Se vocês soltarem todas os malfeitores presas à grade

do sofrimento adequado, que seria do mundo em que vivemos? Saibam que não as

acompanho. Sou adversário da desordem.

Invariavelmente, retirava-se as protetoras dos necessitados, em meio à tristeza e ao

desapontamento.

Em semelhante rumo, prosseguiu Juvenal até à desencarnação, finda a qual, entrou em

aflitivo isolamento.

Vivia a esmo, como que envolvido numa coluna de neblina espessa. Lamentava-se,

chorava, pedia auxílio, mas em vão. Pressentia a passagem de muita gente em torno

dele; mas ninguém lhe prestava atenção.

Apareceu, todavia, um momento em que o desventurado foi atendido por um mensageiro

da assistência divina.

Valendo-se do ensejo, lastimou-se, suplicou, exigiu.

Afinal – declarava em desespero –, não fora um criminoso, um perverso...

O enviado, de olhar translúcido e coruscaste, informou calmo:

– Filho, cada qual recolhe o que planta. A árvores do egoísmo não produz flores de

cordialidade.

Juvenal desfez-se em explicações. Acusado pela consciência, pretendia argumentar

contra si próprio. Se não praticara maior soma de bens é que supunha conveniente não

dever contrariar os dispositivos das provações remissoras.

- Sim – acrescentou o emissário, sereno -, de acordo com os mesmos princípios,

compreende-se-lhe, agora a solidão...

– Quer dizer – exclamou Silva, desalentado – que deveremos invadir os celestes

desígnios?

O mensageiro, porém, esclareceu sem perturbar-se:

– Se a dor humana é lavoura de renovação para, quem sofre e resgata, é também

sementeira sublime para todas aqueles que desejam plantar o bem imperecível. De outra

forma, Jesus não precisaria imolar-se na cruz por nos todos.

O interlocutor escutava, admirado. Antes, contudo, de sua argumentação, o venerável

socorrista indagou, direto:

- Juvenal, se você, quando via alguém aproximar-se de sua porta ou de sua

personalidade, conhecia de tão perto a questão do merecimento, nunca pensou que a

sabedoria e o programa e Deus atuavam em cada acontecimento, através de ligações

invisíveis, porque o sofredor ou o necessitado já se faziam dignos de seu amparo e de

sua proteção?

Silva que, não obstante egoísta, recorria ao raciocínio e à lógica, perdeu o gosto de

responder, mergulhou a cabeça entre as mãos e começou a meditar.

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42 – ATÉ MOISÉS

Quando Euclides Brandão desencarnou, aguardava imediato ingresso ao paraíso.

Vivera de Bíblia na mão, consultando textos diversos.

Declarava sempre que os dez mandamentos lhe controlavam a vida. Em pensamento,

embora quisesse o mundo inteiro para si, reverenciava a Deus, não lhe prenunciava

debalde o santo nome, observava o descanso dominical, honrava os pais, não matava,

não adulterava, não furtava, não cobiçava, de publico, os bens do próximo, não obstante

enredar as circunstâncias em seu favor, quanto lhe era possível, e não se entregava aos

falsos testemunhos.

Por tudo isso, sentia-se Brandão com direitos líquidos no país da Morte.

Atingindo, porém, o limite, entre este mundo e o “outro”, em plena alfândega da

espiritualidade, o vosso companheiro surpreendeu-se. Era atendido sem considerações

especiais. Naquele vasto recinto de trabalho seletivo, via-se tratado como consulente

vulgar numa agencia de informações.

Chamado a esclarecimentos, travou-se entre ele e o funcionário da justiça divina

interessante dialogo, depois das saudações espontâneas:

– Não há ordem, determinando minha transferência definitiva para o céu? – perguntou,

confiadamente.

O interpelado, com jovial expressão, observou após inteirar-se, com pormenores, quanto

à sua procedência:

– Não foi expedida qualquer resolução superior nesse sentido. O amigo era cristão?

– Sem dúvida – replicou Euclides, mordido no amor próprio – aceitei Jesus integralmente.

– Aceitou-o e seguiu-o?

– Perfeitamente. Lia-lhe o testamento dia e noite.

Lia-o e praticava-o?

– Com a máxima exatidão.

– Retirando, porém, os benefícios do Evangelho, aproveitava-se dele para renovar-se em

Cristo, revelando-se melhor no aprendizado da sabedoria e da virtude?

Euclides respondeu afirmativamente. E porque se mostrasse um tanto melindrado com as

interrogações, o fiscal da esfera superior recomendou-lhe enfileirar alguns dados

autobiográficos, o mais sucintamente possível. Pretendia decifrar o enigma.

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Encorajado, Brandão foi claro e breve.

– Eu – disse ele, demonstrando o gosto de exprimir-se invariavelmente na primeira

pessoa – fui um homem justo na Terra. Sempre guardei cuidado em preservar esta

característica de minha personalidade. Se recebia dos outros bondade e respeito, pagava

com moedas iguais. Aos que me agradavam, aquinhoei com as vantagens suscetíveis de

serem articuladas com a minha, influência. Tanto assim que deixei meus haveres a

quantos me souberam conquistar simpatia. A todos, porem, que me fizeram mal, retribuí

conforme propunham. Nunca tive inclinação para ajudar malfeitores, porque para eles não

há suficientes grades no mundo. Quando molestado pelos maus, sabia conjugar o verbo

corrigir e, se me incomodavam duramente, punia-os com aspereza. Corda e ferro não

podem ser esquecidos na melhoria dos homens. Em sendo perseguido, jamais permiti

que os amigos me tomassem dianteira na desforra. Não me calava ante qualquer desafio;

por isso, se era convidado a contender, competia-me ganhar as demandas. Pisado pelos

outros, dava o troco, de conformidade com as circunstâncias em que recebia as ofensas.

Nunca perdi tempo, ensinando a delinqüentes e vagabundos o que não desejavam

aprender, e, se às pessoas nobres tratei com generosidade, ofereci aos desonrados a

repulsa que mereciam. Quando recebido a flores, improvisava um jardim aos que me

favorecessem; mas, se era surpreendido com as pedradas, respondia com uma chuva de

pedras.

Fez longa pausa e acentuou:

– Não suponha que exerci a justiça com facilidade. Ao homem de minha estirpe, que

procura ser equilibrado e cristão, muito ingrata é a experiência terrestre.

Estampou engraçada expressão fisionômica e ajuntou:

– Segundo vê, minhas reclamações são oportunas. Se o paraíso não estiver aberto para

mim, que andei de Bíblia nas mãos...

O funcionário celeste, bem humorado, interveio para esclarecer:

– O plano superior não lhe cerrará a passagem, conquanto, Brandão, a sua justiça não

haja conhecido a misericórdia...

– Oh! mas nunca assumi compromissos sem consultar os sagrados textos!...

– Sim – disse o sábio interlocutor –, você chegou até Moisés. Voltará naturalmente ao

corpo de carne, a fim de prosseguir o aprendizado com Jesus - Cristo.

E, sorridente, acrescentou:

– Seu curso está com um atraso de mil e novecentos anos...

Foi ao ouvir este esclarecimento que Euclides baixou a cabeça e calou-se, como quem se

dispunha a refletir...

110

43 - COM LEALDADE FRATERNA

Meu amigo: alega você a impossibilidade de aceitar-nos a sobrevivência,por não

atestarem seus olhos a nossa presença espiritual. E acentua que não pode copiar Santo

Agostinho na repentina modificação. É provável que você, no intimo, se julgue superior ao

discípulo Santo Ambrosio, mas pode crer que a sua duvida é leviana e infantil.

Sua declaração menciona filósofos e cientistas, salientando os ateus com frases

louvaminheiras.

A rigor, não deveríamos perder tempo com as suas indagações; entretanto, por

despertarem pensamentos graves, cumpre-nos registrá-las e a elas responder.

É que você vive, em grande percentagem, daquilo que permanece invisível aos olhos

mortais.

O cacto espinhoso, a florir num deserto, jamais saberia responder por que miraculosos

recursos consegue sustentar-se no chão ressequido. Assim também você, na trama

escura da negação, não explicará por que razoes exibe a flor preciosa da inteligência.

Sua cabeça abriga raciocínios e hipóteses, com recheio de sarcasmo evidente, para

concluir que a civilização é um castelo de cartas a precipitar-se, indefinidamente, no

despenhadeiro da sepultura.

Seus olhos, porem, permanecem fixos no "prato de lentilhas".

Seu problema é puro imediatismo. Nada mais. Falta-lhe alicerce para as reflexões.

A sua incapacidade de verificação, no campo fenomênico a que se ajusta, começa no

enigma do nascimento. A historia de seu corpo transcende as anotações da ficha

genealógica. Você não sabe, por agora, como ingressou no santuário das formas

terrestres e, se um biologista lhe fala dos cromossomos, elucidando questões de

embriologia, naturalmente acreditará ouvir mentiroso romance com presunção cientifica.

Se você não viu a formação dos elementos microscópicos, como admitirá elucidações dos

compêndios que cogitam do assunto?

À noite de cada dia, no retorno ao lar, seus ouvidos solicitam do aparelho radiofônico o

noticiário das capitais estrangeiras e recebem informações positivas de Roma e

Washington. No entanto, você não enxerga os fios através dos quais chegam as

mensagens que reclama.

Seus órgãos absorvem do ar a maior parte da alimentação de que se mantém. Todavia

você nada percebe.

A enfermidade lhe corrói as vísceras e que o obriga a empenhar-se nas casas bancarias,

procede, na maioria das vezes, do ataque das feras microscópicas que se multiplicam ao

111

influxo mórbido de sua mente. Entretanto, não lhe é possível identificar o inimigo de sua

tranqüilidade pessoal e domestica, em cuja existência é constrangido a acreditar.

Seus olhos, alias, não chegam nem mesmo a contemplar os movimentos peristálticos dos

intestinos, em operações comuns da realidade humana, sem os quais toda a sua missão

terrena estaria ameaçada.

Por fim, meu caro, você, que nos deseja palpáveis as mãos, será visível, em suas

intenções e pensamentos, aqueles que o cercam? Afianço-lhe que seus parentes e

amigos não lhe conhecem dez por cem da legitima personalidade.

Em se tratando de nos, porem, sua exigência é impecável.

A argumentação que apresenta não lhe justifica a negação.

Procure outros recursos para consultar a verdade.

Em meu curso primário, conheci um menino irrequieto, colega leviano e inconstante, que

consumia inutilmente longas horas da professora, levantando duvidas quanto à existência

da Terra do Fogo, porque nunca lhe vira os contornos e não acreditava os apontamentos

da Geografia.

Não podemos, no entanto, considerar a sua inteligência no rudimentarismo da infância.

Você lê algumas línguas diversas entre si e compreende-as com elevado índice de cultura

intelectual, cita Haeckel, Schopenhauer e Le Bon. Ora, sabemos todos que a razão, em

pesquisa, não se acomoda a redoma do berço.

Procure, pois, o seu clima real.

Estude e medite.

Não se recolha exclusivamente as pupilas que o sepulcro apagará mais tarde. Auxilie a

própria reflexão. O ato de ver é mais extenso: não se circunscreve ao corpo efêmero. É

função do espírito imperecível. E examine o problema da morte com mais amplitude.

Prepare a bagagem, porque fará igualmente a travessia que já fiz.

Se você é sincero, não perca a oportunidade de melhorar os conhecimentos acerca da

vida nova que o espera. Não se esqueça, meu amigo, de que, apesar do esforço de todos

os Voronoffs do mundo e não obstante a milagrosa penicilina do nosso estimado

Professor Fleming, o livro de ponto dos cemitérios continua assinado regularmente...

112

44 - DO APRENDIZADO DE JUDAS

Não obstante amoroso, Judas era, muita vez, estouvado e inquieto. Apaixonara-se pelos

ideais do Messias, e, embora esposasse os novos princípios, em muitas ocasiões

surpreendia-se em choque contra eles. Sentia-se dono da Boa-Nova e, pelo desvairado

apego a Jesus, quase sempre lhe tornava a dianteira nas deliberações importantes. Foi

assim que organizou a primeira bolsa de fundos da. comunhão apostólica e, obediente

aos mesmos impulsos, julgou servir à grande causa que abraçara, aceitando a perigosa

cilada. que redundou na prisão do Mestre.

Apesar dos estudos renovadores a que sinceramente se entregara, preso aos conflitos

íntimos que lhe caracterizavam o modo de ser, ignorava o processo de conquistar

simpatias.

Trazia constantemente nas lábios uma, referência amarga, um conceito infeliz.

Quando Levi se reportava a alguns funcionários de Herodes, simpáticos ao Evangelho,

dizia, mordaz:

– São víboras disfarçadas. Sugam o erário público, bajulam sacerdotes e deixam-se pisar

pelo romano dominador... A meu parecer, não passam de espiões..

O companheiro ouvia tais afirmativas, com natural desencanto, e os novos colaboradores

dele se distanciavam menos entusiasmados.

Generosa amiga de Joana de Cusa ofereceu, certo dia, os recursos precisos para a

caminhada do grupo, de Cafarnaum a Jerusalém. Porém, recebendo a importância, o

apóstolo irrefletido alegou, ingratamente:

– Guardo a oferta; contudo, não me deixo escarnecer. A doadora pretende comprar o

reino dos Céus, depois de haver gozado todos os prazeres do reino da Terra. Saiba.m

todos que este ó um dinheiro impuro, nascido da iniqüidade.

Estas palavras, pronunciadas diante da benfeitora, trouxeram-lhe indefinível amargura.

Em Cesaréia, heróica mulher de um paralítico, sentindo-se banhada pelos clarões do

Evangelho, abriu as portas do reduto doméstico aos desamparados da sorte. Órfãos e

doentes buscaram-lhe o acolhimento fraternal. O discípulo atrabiliário, no entanto, não se

esquivou à, maledicência:

– E o passado dela? – clamou cruelmente – o marido enfermou desgostoso pelos quadros

tristes que foi constrangido a presenciar. Francamente, não lhe aceito a conversão. Certo,

desenvolve piedade fictícia para aliciar grandes lucros.

A senhora, duramente atingida pelas descaridosas insinuações, paralisou a benemerência

iniciante, com enorme prejuízo para os filhos do infortúnio.

Quando o próprio Messias abençoou Zaqueu e os serviços dele, exclamou Judas,

indignado, às ocultas:

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– Este publicano pagará mais tarde. Escorcha, os semelhantes, rodeia-se de escravas,

exerce avareza, sórdida e ainda, pretende o raiz.o divino!...

Não irá longe... Enganara o Mestre, não a mim...

Alimentando tais disposições, sofria a desconfiança de muitos. De quando em quando,

via-se repelido delicadamente.

Jesus, que em silêncio lhe seguia as atitudes, aconselhava prudência, amor e tolerância.

Mal não terminava,porém, as observações carinhosas, chegava Simão Pedro, por

exemplo, explicando que Jeroboão, fariseu simpatizante da. Boa-Nova, parecia inclinado

a ajudar o Evangelho renascente.

– Jeroboão? – advertia Judas, sarcástico – aquilo e uma raposa de unhas afiadas. Mero

fingimento! Conheço-o há vinte anos. Não sabe senão explorar o próximo e amontoar

dinheiro. Houve tempo em que chegou a esbordoar o próprio pai, porque o infeliz lhe

desviou meia pipa de vinho!...

A verdade, porém, é que as circunstâncias, pouco a pouco, obrigaram-no a insular-se. Os

próprios companheiros andavam arredios, Ninguém lhe aprovava as acusações

impulsivas e as lamentações sem propósito. Apenas o Cristo não perdia a paciência.

Gastava longas horas, encorajando-o e esclarecendo-o afetuosamente...

Numa tarde quente e seca, viajavam ambos, nos arredores de Nazaré, cansados de

jornada comprida, quando o filho de Kerioth indagou, compungido :

– Senhor, por que motivos sofro tão pesadas humilhações? Noto que os próprios

companheiros se afastam cautelosos de mim... Não consigo fazer relações duradouras.

Há como que forçada separação entre meu espírito e os demais... Sou incompreendido e

vergastado pelo destino...

E levantando os olhos tristes para o Divino Amigo, repetia :

– Por quê?!...

Jesus ia responder, condoído, observando que a voz do discípulo tinha lágrimas que não

chegavam a cair, quando se acercaram, subitamente, de poço humilde, onde

costumavam aliviar a sede. Judas que esperava ansioso aquela bênção, inclinou-se,

impulsivo e, mergulhando as mãos ávidas no líquido cristalino, tocou inadvertidamente o

fundo, trazendo largas placas de lodo à tona.

Oh! Oh! Que infelicidade! - gritou em desespero.

O mestre bondoso sorriu calmamente e falou:

_ Neste poço singelo, Judas, tens a lição que desejas. Quando quiseres água pura, retiraa

com cuidado e reconhecimento. Não há necessidade de alvoroçar a lama do fundo e

das margens. Quando tiveres sede de ternura e amor, faze o mesmo com teus amigos.

Recebe-lhes a cooperação afetuosa sem cogitar do mal, a fim de que não percas o bem

supremo.

Pesado silêncio caiu entre o benfeitor e o tutelado.

O apóstolo invigilante modificou a expressão do olhar, mas não respondeu.

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45 – A ESCEITURA DO EVANGELHO

Quando Jesus recomendou a pregação da Boa-Nova, em diversos rumos, reuniu-se o

pequeno colégio apostólico, em torno d’Ele, na humilde residência de Pedro, onde

choveram as perguntas no inquérito afetuoso.

– Mestre – disse Filipe, ponderado –, se os maus nos impedirem os passos, que faremos?

caber-nos-á recurso à autoridade punitiva?

– Nossa missão – replicou Jesus, pensativo – destina-me a converter maldade em

bondade, sombra em luz. Ainda que semelhante transformação nos custe sacrifício e

tempo, o programa não pode ser outro.

– Mas... – obtemperou Tomé –, e se formos atacados por criminosos?

– Mesmo assim – confirmou o Cristo –, nosso ministério é de redenção, perdoando e

amando sempre. Persistindo no bem, atingiremos a vitória final.

– Senhor – objetou Tiago, filho de Alfeu –, se interpelados pelos fariseus, amantes da Lei,

que diretrizes tomaremos ? São eles depositários de sagrados textos, com que justificam

habilmente a orgulhosa conduta que adotam. São arguciosos e discutidores. Dizem-se

herdeiros dos Profetas. Como agir, se o Novo Reino determina a fraternidade, isenta da

tirania?

- Ainda aí – explicou o Messias Nazareno –, cabe-nos testemunhar as idéias novas.

Consagraremos a Lei de Moisés com o nosso respeito. Contudo, renovar-lhe-emos o

sentido sublime, tal qual a semente que se desdobra em frutos abençoados. A justiça

constituirá a raiz de nosso trabalho terrestre. Todavia, só o espírito de sacrifício garantirnos-

á a colheita.

Verificando-se ligeira pausa, Tadeu, que se impressionara vivamente com a resposta,

acrescentou:

– E se os casuístas nos confundirem?

– Rogaremos a inspiração divina para a nossa expressão humana.

– Mas, que sucederá se o nosso entendimento permanecer obscuro, a ponto de não

conseguirmos registrar o socorro do Alto? – insistiu o apóstolo.

Esclareceu Jesus, sorridente:

– Será, então necessário purificar o vaso do coração, esperando a claridade de cima.

Nesse ponto, André interferiu, perguntando:

– Mestre, em nossa pregação, chamaremos indistintamente as criaturas?

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– Ajudaremos a todos, sem exigências – respondeu o Salvador, com significativa inflexão

na voz.

– Senhor – interrogou Simão, precavido –, temos boa vontade, mas somos também fracos

pecadores. E se cairmos na estrada? e se, muitas vezes, ouvirmos as sugestões do mal,

despertando, depois, nas teias do remorso?

– Pedro – retrucou o Divino Amigo -, levantar e prosseguir e o remédio,

- No entanto – teimou o pescador – e se a nossa queda for tão desastrosa que

impossibilite o reerguimento imediato?

– Rearticularemos os braços desconjuntados, remendaremos o coração em frangalhos e

louvaremos o Pai pelas proveitosas lições que houvermos recolhido, seguindo adiante...

– E se os demônios nos atacarem? – Interrogou João, de olhos límpidos.

– Atraí-los-emos à, gloria do trabalho pacífico.

– Se nos odiarem e perseguirem? – comentou Tiago, filho de Zebedeu.

Serão amparados por nós, no asilo da oração.

– E se esses inimigos poderosos e inteligentes nos destruírem? – inquiriu o filho de

Kerioth.

– O espírito é imortal – elucidou Jesus, calmamente – e a justiça enraíza-se em toda

parte.

Foi então que Levi, homem prático e habituado à estatística, observou, prudente:

– Senhor, o fariseu lê a Tora, baseando-se nas suas instruções; o saduceu possui rolos

preciosos a que recorre na propaganda dos princípios que abraça; o gentio, sustentando

as suas escolas, conta com milhares de pergaminhos, arquivando pensamentos e

convicções dos filósofos gregos e persas, egípcios e romanos... E nós? a que

documentos recorreremos? que material mobilizaremos para ensinar em nome do Pai

Sábio e Misericordioso?!...

O Mestre meditou longamente e falou:

– Usaremos a palavra, quando for necessário, sabendo porém que o verbo degradado

estabelece o domínio das perturbações e das trevas. Valer-nos-emos dos caracteres

escritos na extensão do Reino do Céu. No entanto, não ignoraremos que as praças do

mundo exibem numerosos escribas de túnicas compridas, cujo pensamento escuro

fortalece o império da incompreensão e da sombra. Utilizaremos, pois, todas os recursos

humanos, no apostolado, entendendo, contudo, que o material precioso de exposição da

Boa-Nova reside em nós mesmos. O próximo consultará a mensagem do Pai em nossa

própria vida, através de nossos atos e palavras, resoluções e atitudes...

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Pousando a destra acentuou:

- A escritura divina do Evangelho é o próprio coração do discípulo.

Os doze companheiros entreolharam-se, admirados, e o silêncio caiu entre eles, enquanto

as águas cristalinas, não longe, refletiam o céu imensamente azul, cortado de brisas

vespertinas que anunciavam as primeiras visões da noite...

117

46 – A REVOLUÇÃO CRISTÃ

Ouvindo variadas referências ao novo Reino, Tomé impressionara-se, acreditando o povo

judeu nas vésperas de formidável renovação política. Indubitavelmente, Jesus seria o

orientador supremo do movimento a esboçar-se pacífico para terminar, com certeza, em

choques sanguinolentos. Não se reportava o Mestre, constantemente, à vontade do Todo-

Poderoso? Era inegável o advento da era nova. Legiões de anjos desceriam

provavelmente dos céus e pelejariam pela independência do povo escolhido.

Justificando-lhe a expectativa, toda gente se agrupava, em redor do Messias, registrandolhe

as promessas.

Estariam no limiar da Terra diferente, sem dominadores e sem escravos.

Submetendo, certa noite, ao Cristo as impressões de que se via possuído, d’Ele ouviu a

confirmação esperada:

– Sem dúvida – explicou o Nazareno –, o Evangelho é portador de gigantesca

transformação do mundo. Destina-se à redenção das massas anônimas e sofredoras.

Reformará o caminho dos povos.

– Um movimento revolucionário! – acentuou Tomé, procurando imprimir mais largo

sentido político a definição.

– Sim – acrescentou o Profeta Divino –, não deixa de ser...

Entusiasmado, o discípulo recordou a belicosidade da raça, desde os padecimentos no

deserto, a capacidade de resistência que assinalava a marcha dos israelitas, a começar

de Moisés, e indagou sem rebuços:

– Senhor, confiar-me-ás, porventura, o plano central do empreendimento?

Dirigiu-lhe Jesus significativo olhar e observou:

– Amanhã, muito cedo, iremos ambos ao monte, marginando as águas. Teremos talvez

mais tempo para explicações necessárias.

Intrigado, o apostolo aguardou o dia seguinte e, buscando ansioso a companhia do

Senhor, muito antes do sol nascente, em casa de Simão Pedro, com surpresa encontrouo

à espera dele, a fim de jornadearem sem detenha.

Não deram muitos passos e encontraram pobre pescador embriagado a estirar-se na via

pública. O Messias parou e acercou-se do mísero, socorrendo-o.

– Que é isto? – clamou Tomé, enfadado – este velho diabo e Jonas, borracho renitente.

Para que ajudá-lo? Amanhã, estará deitado aqui ás mesmas horas e nas mesmas

condições.

118

O Companheiro Celeste, todavia, não lhe aceitou o conselho e redargüiu:

– Não te sinto acertado nas alegações. Ignoras o princípio dd experiência de Jonas. Não

sabes por que fraqueza se rendeu ele ao vicio. È enfermo do espírito, em estado grave:

seus sofrimentos se agravam à medida que mergulha no lamaçal. Realmente vive

reincidindo na falta. Entretanto, não consideras razoável que o serviço de escorro exige

também o ato de começar?

O aprendiz não respondeu, limitando-se a cooperar na condução do bêbado para lugar

seguro, onde caridoso amigo se dispôs a fornecer-lhe lume e pão.

Retomavam a caminhada, quando pobre mulher, a toda pressa, veio implorar ao Messias

lhe visitasse a filhinha em febre alta.

Acompanhado pelo discípulo, o Salvador orou, ao lado da pequenina confiante,

abençoou-a e restituiu-lhe a tranqüilidade ao corpo.

Iam saindo de Cafarnaum, mas foram abordados por três senhoras de aspecto humilde

que desejavam instruções da Boa-Nova para os filhinhos. O Cristo não se fez rogado.

Prestou esclarecimentos simples e concisos.

Ainda não havia concluído aquele curso rápido de Evangelho e Jafé, o cortador de

madeira, veio resfolegante suplicar-lhe a presença no lar, porque um filho estava morto e

a mulher enlouquecera.

O Emissário de Deus seguiu-o sem pestanejar, à frente de Tomé silencioso. Reconfortou

a mãezinha desvairada, devolvendo-a ao equilíbrio e ensinou à casa perturbada que a

morte, no fundo, era a vitória da vida.

O serviço da manhã absorvera-lhes o tempo e, assim que se puseram a caminho, em

definitivo, eis que uma anciã semi-paralítica pede o amparo do Amigo Celestial. Trazia a

perna horrivelmente ulcerada e dispunha apenas de uma das mãos.

O messias acolhe-a, bondoso. Solicita o concurso do apóstolo e condu-la a sítio vizinho,

onde lhe lava as feridas e deixa-a convenientemente asilada.

Prosseguindo viagem para o monte, mestre e discípulo foram constrangidos a atender

mais de cinqüenta casos difíceis, lenindo o sofrimento, semeando o bom ânimo,

suprimindo a ignorância e espalhando lições de esperança e iluminação. Sempre

rodeados de cegos e loucos, leprosos e aleijados, doentes e aflitos, mal tiveram tempo de

fazer ligeiro repasto de pão e legumes.

Quando atingiram o objetivo, anoitecera de todo. Estrelas brilhavam distantes. Achavamse

exaustos.

Tomé, que mostrava os pés sangrentos, enxugou o suor copioso e rendeu graças a Deus

pela possibilidade de algum descanso. A fadiga, porém, não lhe subtraíra, a curiosidade.

Erguendo para o Cristo olhar indagador, inquiriu :

119

– Senhor, dar-me-ás agora a chave da conspiração libertadora?

O divino interpelado esclareceu, sem vacilações :

– Tomé, os homens deviam entediar-se de revoltas e guerras que começam de fora,

espalhando ruína e ódio, crueldade e desespero. Nossa iniciativa redentora verifica-se de

dentro para fora. Já nos achamos em plena revolução evangélica e o dia de hoje, com os

abençoados deveres que nos trouxe, representa segura resposta à indagação que

formulaste. Enquanto houver preponderância do mal, a traduzir-se em aflições e trevas,

no caminho dos homens, combateremos em favor do triunfo supremo do bem.

E, ante o discípulo desapontado, concluiu :

– A ordem para nós não é de matar para renovar, mas, sim, de servir para melhorar e

elevar sempre.

Tomé passou a refletir maduramente e nada mais perguntou.

120

47 - RECORDANDO O FILÓSOFO

Conta-se que Epicteto, o escravo filósofo, visitado por Lisandro, liberto de Epafrodita, que

lhe apresentava despedidas, em razão de mudança precipitada para Roma, entrou em

fundo silêncio, diante do amigo íntimo.

– Pois não te regozijas? – exclamou o amigo, exonerado do cativeiro – não sentirás

comigo o júbilo da transferência feliz?

O interpelado fixou-o, de frente, e indagou:

– Que pretendes?

– Uma viagem maravilhosa, o ambiente diverso, a modificação da vida, o esplendor da

cidade imperial, a honra de ouvir os tribunos célebres, a contemplação dos espetáculos

faustosos e, quem sabe, talvez o destaque entre os patrícios dominadores.

O filósofo escutava o companheiro sem o mais leve movimento.

Terminada a breve exposição, objetou, imperturbável:

– Empreendes longa e perigosa jornada, em busca de importância pessoal que te

satisfaça a ambição. No entanto, que viagem já fizeste para

modificar opiniões e melhorar sentimento?

O amigo surpreendido não conseguiu responder.

– Procuras ambiente diverso – prosseguiu o sábio sem alterar-se –; todavia, em que idade

tentaste a própria renovação? Odeias sempre que te ferem, reages quando te insultam,

justificas-te apressadamente quando te acusam de alguma falta... Que novidades poderás

encontrar no caminho da vida? Desejas o esplendor da cidade dos Césares, mas não

acendeste ainda a mais humilde candeia dentro de ti. Queres o júbilo de escutar os

oradores famosos; porém, jamais consultaste alguém sobre os recursos que te façam

melhor. Buscas espetáculos extravagantes para os olhos de carne, esquecido de que há

prisioneiros contemplando festas loucas das grades do cárcere. Sonhas figurar entre os

que dominam, mas não tens ainda o comando da própria existência.

O amigo corou ante as palavras serenas, mas exclamou irritadiço:

– No entanto, eu agora sou livre...

Epicteto sorriu e terminou :

– Tens a liberdade, mas não fugirás de ti mesmo...

O episódio recorda-nos a própria vida.

121

Na juventude, cheia de sonhos, à velhice coroada de desilusões, convida-nos a verdade

ao campo consciencial para os serviços de iluminação íntima. A maneira do amigo de

Epicteto, contudo, repousamos à sombra das árvores floridas de mentiras deliciosas, na

floresta inextricável das emoções humanas. Procuramos melodias que nos embalem os

ouvidos e decorações de luxo que nos magnetizem o olhar, colhemos botões de flores e

inutilizamos frutos verdes, ciosos de nossa independência, permanecera sempre os

mesmos joguetes da reação inferior, quando a luta nos visita de leve.

Desejamos e realizamos no plano exterior, penetrando, em seguida, os caminhos do tédio

mortal.

Esgotamos a taça de vinho embriagador para encontrarmos, no fundo, o vinagre do

desalento.

Terminadas as decepções da natureza física, conservamos o derradeiro e mais terrível

engano. Esperamos na morte a revelação de um paraíso maravilhoso de ambrosias e

cânticos angélicos. Sonhamos atravessar sublimes pórticos de misteriosos palácios,

repletos de tesouros augustos e láureas imortais.

É a viagem difícil do liberto a uma Roma diferente, aureolada de púrpuras e riquezas.

Entretanto, à frente do castelo celestial, resplendente de luzes, estacamos, defrontados

por nós mesmos, em amargosas sombras do coração. Intentamos avançar, ébrios de

esperança, gritando nosso júbilo diante da “terra nova”. Todavia, pesadas algemas

agrilhoam-nos o espírito ao que somos, fazendo-nos reconhecer que a semeadura da

indiferença, produz abundante colheita de remorsos e lágrimas.

Reclamamos, choramos, suplica,mos...

A consciência retilínea, porém, responde calma:

– Que realizaste senão repetir, até hoje, o que fazias há séculos? Odeias, quando te

perseguem; reages, quando te apedrejam; defendes-te, apressado, quando te acusam...

Não compreendeste, não ajudaste, não amaste.

Ansiosos pela fuga, contemplamos o plano infinito que se desdobra, convidando-nos à

maravilhosa aventura, no limiar da Eternidade, e, tentando último esforço, para nos

desvencilharmos das próprias obras, exclamamos, também:

No entanto, eu agora sou livre...

E a consciência, divina e irrepreensível, replica-nos com a serenidade imperturbável do

sábio cativo:

– Tens a liberdade, mas não fugirás de ti mesmo.

122

48 - A ATITUDE DO GUIA

Sob nosso olhar atento, o Guia do grupo começou a desempenhar suas funções de

orientador, explicando:

– Enriqueçamos nossa vida, de bênção. A morte, meus irmãos, é simples modificarão de

roteiros exteriores; preparai-vos, no entanto, a fim de atravessar-lhe os umbrais, com a

precisa luz. A encarnação terrestre representa curso de esclarecimento e ascensão.

Alegria e dor, contentamento e insatisfação, fartura e escassez constituem oportunidades

de engrandecimento para a alma. Nosso problema fundamental, portanto, não é tão

somente crer ou descrer. É imperioso aplicar os princípios da fé às situações difíceis da

experiência humana, como quem espanca as sombras. De que nos serviria a confiança

na Providência Divina sem aproveitarmos os dons da Previdência Celeste que nos situou

o espírito em aprendizado laborioso, tendo em vista nossa própria felicidade? Tudo, pois,

que fizerdes nos setores do bem, enquanto na transitória passagem pela Terra, é

essencial para a eternidade.

Se o Supremo Pai apenas aguardasse de nós outros o incenso da adoração, que

expressaria a grandiosa oficina do mundo? Brilhariam o Sol e a Lua, resplandeceriam as

estrelas, correriam as fontes, frutificariam as árvores, trabalharia o vento simplesmente

para satisfazer um punhado de crentes ociosos? Contentar-se-ia Deus, o Criador

Infatigável, em erguer para os filhos da Terra apenas um templo suntuoso onde

repousassem indefinidamente, sem qualquer finalidade progressiva? É indispensável,

desse modo, renovarmos o entendimento, elevando-nos em espírito para a Imortalidade

Vitoriosa. Junto de vós outros, alinham-se ferramentas preciosas na edificação sublime.

Chamam-se “obstáculos”, “provas” e “lutas”. Utilizando-as para o bem, sereis, em breve,

senhores de oportunidades mais altas, nos círculos de iluminação. Fadados ao glorioso

destino de cooperadores do Eterno, urge compreenderdes a importância de viver na

Crosta da Terra, como é importante para o aprendiz a justa apreciação da escola que o

prepara e edifica. O sofrimento, por isso mesmo, aí no mundo é apelo à ascensão. Sem

ele, seria difícil acordar a consciência para a realidade superior. Aguilhão benéfico, o

sofrimento evita-nos a precipitação nos despenhadeiros do mal, auxilia-nos a prosseguir,

entre as margens do caminho, mantendo-nos a correrão necessária ao êxito do plano

redentor. Busquemos, assim, aproveitar-lhe as bênçãos renovadoras, praticando a

fraternidade em todos os ângulos da bendita peregrinação para a frente. Não nos

interessa o passado escuro. Recebamos a claridade compassiva do presente, construindo

qualidades santificantes no santuário interior, convertendo-nos em tabernáculos vivos da

Vontade Augusta e Misericordiosa do Eterno. Para isso, meus amigos, auxiliemo-nos uns

aos outros, procuremos a verdade e o bem, atendendo as exigências do amor cristão.

Sem essa atitude pessoal de transformação para o entendimento e aplicação do Cristo, é

impossível aguardar mundos melhores, paisagens felizes ou venturas sem fim...

Nesse momento, o orientador interromper-se.

Finalizara a preleção? não sabíamos ao certo.

123

Parecia disposto a retomar o fio das formosas definições, quando se adiantou um

cavalheiro da pequena assembléia de companheiros encarnados.

Julguei-o inclinado a exprimir amor, júbilo, gratidão. Teria estendido a palavra do Guia que

afinal de contas, em boa sinonímia, era, ali, o condutor, o que dirige, o que mostra a

frente. Longe disso. O irmão mencionado assumiu atitude de consulente inquieto e

interrogou, demonstrando absoluta despreocupação de quanto ouvira :

– Meu mestre, que me diz dos bens que me surrupiaram? O furto de que fui vítima

representa muitíssimo para mim. Não devo esquecer o futuro... Os advogados de meus

parentes parecem ganhar a causa... Devo esperar algum socorro? Espantalho, reparei

que o benfeitor espiritual não reagiu. Assumiu paternal expressão no semblante calmo e,

no mesmo diapasão de voz, comentou:

– No assunto, meu amigo, creio mais oportuna sua invocação à polícia. Procure a seção

de perdas e danos...

Logo após, rogou a bênção de Jesus para todos e, retirando-se da organização

mediúnica, tornou ao nosso meio.

Sob forte assombro, referi-me à incompreensão do grupo que visitávamos.

O generoso orientador, porém, distante de qualquer desapontamento, observou:

– Não vos aflijamos. Conheço este irmão, desde muito. Há dois mil e oitocentos anos,

aproximadamente, era ele membro de uma associação de ensinos secretos, nas

vizinhanças do Templo de Zeus, em Olímpia, enquanto eu, por minha vez, exercia as

funções de humilde instrutor espiritual. Na primeira vez em que me materializei, no círculo

de estudos em que ele se encontrava, explanando a simbologia dos mistérios órficos, de

maneira a adaptá-los à Luz Divina, levantou-se na assembléia e pediu-me socorro para

encontrar algumas jóias perdidas.

– Oh! Oh! – aduzi, sarcástico – há quase três milênios? e este homem ainda é o mesmo

caçador de arranjos materiais?

O Guia tocou-me os ombros, paternalmente, e acrescentou, compassivo:

– Nada de mais, meu caro. Continuemos trabalhando, em benefício de todos. Vinte e oito

séculos são a canta de meu nobre concurso. Trata-se de equação que nós mesmos

podemos fazer... Há quantos milênios, porém, Jesus nos auxilia e tudo faz em nosso

favor, malgrado a nossa impermeabilidade e resistência?!...

Afagou-me a cabeça e concluiu, interrogando:

– Não acha?

Fiz por minha vez um sorriso amarelo e calei-me.

124

49 - HOMENS PRODÍGIOS

Conta-se que André, o discípulo prestimoso, tão logo observou o Senhor à procura de

coopera-dores para o ministério da salvação, compareceu, certo dia, à residência de

Pedro, com três companheiros que se candidatavam à divina companhia.

Recebeu-os Jesus, com serenidade e brandura, enquanto o apóstolo apresentava os

novatos com entusiasmo ingênuo.

– Este, Mestre – disse, tocando o braço do mais velho –, é Jacob, filho de Eliakim, o

condutor de cabras, que tem maravilhosas visões do oculto. Já viu os próprios demônios

flagelando homens imundos e, quando visitou Jerusalém, na última peregrinação ao

Templo, viu flamas de fogo celeste sobre os Pães da Proposição. Enxergou também os

espíritos de gloriosos antepassados entre os sacerdotes, surpreendendo sublimes

revelações do invisível.

Ante a expectação do Divino Amigo, o aprendiz acentuou:

– Parece-me excelente companheiro para os nossos trabalhos.

Jesus, contudo, pousando no candidato os olhos firmes, fez interrogativo gesto para

Jacob, que, docemente constrangido pela silenciosa atitude dele, informou:

– Sim... é verdade... Sou vidente do que está em secreto e pretendo receber lições da

nova escola. No entanto, receio a opinião pública,. Trabalho em casa de Prisco Bitínio, o

chefe romano, e recebo salário compensador. Se souberem por lá que freqüento estas

fileiras, provavelmente me expulsarão... Perderei meus proventos e minha família talvez

sofra fome...

Fêz-se grande quietude em torno. Jesus manteve-se quase impassível. Seus lábios

mostravam ligeiro sorriso que não chegava a evidenciar-se, de todo.

André, todavia, interessado em colocar os amigos no quadro apostólico, indicou o

segundo, judeu de meia-idade, que revelava no olhar arguciosa inteligência :

– Este, Senhor, é Menahem, filho de Adod, o ourives. Possui ouvidos diferentes dos

nossos e costuma ser contemplado por sonhos milagrosos.

Escuta vozes do céu, anunciando o futuro com exatidão, e no sono recebe avisos

espantosos. Já descobriu, por esse meio, as jóias de Pompônia Fabrina, quando romanos

ilustres visitaram Cesaréia. Incontáveis são os casos em que funcionou na qualidade de

adivinho vitorioso. Passando por Jerusalém, foi procuração por sacerdotes ilustres que,

com êxito, lhe puseram à, prova as estranhas faculdades. Leu papiros que se achavam a

distância e transmitiu recados autênticos de grandes mortos da raça.

Após ligeiro intervalo acentuou:

125

– Não seria ele valioso colaborador para nós?

O Cristo fixou. o olhar lúcido no apresentado e Menahem de explicou:

– Sim, realmente ouço vozes do céu e resolvo em sonho diversos problemas, acerca, dos

quais sou consultado. Desejaria participar da nova fé, mas,estou preso a muitos

compromissos. Não poderia vir assIduamente... Meu sogro Efraim, o mercador de

perfumes, é riquíssimo e está prestes a descansar com os nossos que já desceram ao

repouso. Sou o herdeiro de sua grande fortuna e sei que se escandalizará com a minha

adesão à crença renovadora... assim considerando, preciso ser cauteloso... Não posso

perder o enorme legado...

Identificando a estranheza que provocava, apressou-se a reforçar:

– Ainda que eu me pudesse desprender de bens tão preciosos, precisaria atender à

mulher e aos filhos...

Novo silêncio pesou na paisagem doméstica.

À frente do Messias, que não se manifestava em sentido direto, o pescador diligente

apresentou o terceiro amigo:

– Aqui, Mestre, temos Moab, filho de Josué, o cultivador. É um prodígio nas Escrituras.

Todos os escribas o olham invejosos e despeitados, porquanto é conhecido pelo dom de

escrever com incrível desenvoltura, a respeito de todos os assuntos que interessam o

povo escolhido. Homens importantes de Israel formulam para ele vários enigmas,

referentes à Lei e aos Profetas, e ele os resolve com triunfo absoluto... Por vezes, chega

a escrever em línguas estrangeiras e há quem diga que, sobre ele, paira o espírito do

próprio Jeová...

Calou-se o apóstolo e, no ambiente pesado que se abateu na sala, o escriba milagroso

esclareceu:

– Efetivamente, escrevo em misteriosas circunstâncias. Uma luz semelhante a fogo desce

do firmamento sobre as minhas mãos e encho rolos enormes com instruções e descrições

que nem eu mesmo sei entender... Proponho-me a seguir os princípios do Reino Celeste,

aqui na Galileia. Não posso, entretanto, comprometer-me muito. Na cidade santa, estou

ligado a um grande revolucionário que me prometeu alto encargo político, logo depois de

assassinarmos o Procurador e eliminar alguns patrícios influentes. Quero aproveitar as

minhas faculdades na restauração de nossos direitos... Conquistarei posição, ouro, fama,

evidência... Por isso, não posso aceitar deveres muito extensos...

A quietude voltou mais envolvente.

André, todavia, ansioso por situar os novos elementos no colégio galileu, perguntou ao

Cristo:

– Mestre não estás procurando associados para o serviço redentor? Admitirás os nossos

amigos.

126

Jesus, porém, com serenidade complacente, esclareceu:

– Não, André! Sigam nossos irmãos em paz. Por enquanto, o roteiro deles é diferente do

nosso. O primeiro estacionou na situação lucrativa, o segundo aguarda uma herança em

ouro, prata e pedras e o terceiro permanece caçando a gloria efêmera do poder

humano!...

– Senhor – ponderou o irmão de Pedro –, mas é preciso lembrar que um deles “vê”, outro

“ouve” e o último “escreve”, milagrosamente...

– Sim – considerou Jesus, terminando a entrevista –, no mundo sempre existiram homens

prodígios, portadores de maravilhosos dons que estragam inadvertidamente, mas, acima

deles, estou procurando quem deseje trabalhar na execução da vontade de Nosso Pai.

127

50 – BILHETE A JESUS

Senhor Jesus, enquanto a alegria do Natal acende luzes novas nos lares festivos, torno à

velha Palestina, revendo, com os olhos da imaginação, a paisagem de tua vinda...

Roma estendia fronteira no Nilo, no Eufrates, no Reno, no Tamisa, no Danúbio, no Mar

Morto, no Lago de Genezaré, nas areias do Saara. César “sossegava e protegia” os

habitantes das zonas mais remotas, aliciando a simpatia dos príncipes regionais, Todos

os deuses indígenas cediam a Júpiter, o dono do Olimpo, de que as águias dominadoras

se faziam emissárias, tremulando no topo das galeras, cheias de senhores e de escravos.

Lembras-te, Senhor, de que se fazia uma grande estatística, por ordem de Augusto, o

Divino?

Otávio, cercado de assessores inteligentes, intensificava a centralização no mundo

romano, reorganizando a administração na esfera dos serviços públicos. As

circunscrições censitárias na Judéia enchiam-se de funcionários exigentes. Cadastravamse

famílias, propriedades, indústrias. E José e Maria também se locomoveram, com os

demais, para atender as determinações. A sensibilidade israelita poderia manter-se a

distancia do culto de César, resistindo ao incenso com que se mareava a passagem dos

triunfadores, em púrpura sanguinolenta, mas a experiência judaica, estruturada em suor e

lágrimas, não se esquivaria à obediência, perante os regulamentos políticos. As

estalagens, no entanto, estavam repletas e não conseguiram lugar.

Em razão disso, a estrela gloriosa, que te assinalou a chegada, não brilhou sobre templos

ou residências de relevo. Apenas a manjedoura singela ofereceu-te conforto e guarida.

Homens e mulheres faziam estatísticos minuciosos de haveres e interesses. Se o governo

imperial decretava o recenseamento para reajustar observações e tributos, os governados

da província alinhavam medidas, imprimindo modificações aos quadros da vida comum,

para se subtraírem, de alguma sorte, às exigências. Permutavam-se cabras e camelos,

terras e casas, reduzidos parques agrícolas e pequenas indústrias.

Haveria espaço mental para a meditação nas profecias? Para cumprir o dever religioso,

não bastava comparecer ao Templo de Jerusalém, nos dias solenes, oferecer os

sacrifícios prescritos e prosternar-se ante a oferenda sagrada, ao ressoar das trombetas?

Razoável, portanto, examinar os melhores recursos e burlar as requisições do romano

dominador. A fração do povo eleito, que se aglomerava na cidade de David, lia os textos

sagrados, recitava salmos e tomava apressado conselho aos livros da sabedoria;

entretanto, não considerava pecado matar o tempo em disputas e conversações

infindáveis ou enganar o próximo com a elegância possível.

Por essa razão, Senhor, quem gastaria alguns minutos para advogar proteção a Maria e

José? Eles traziam a sinceridade dos que andam contigo, falavam de visitas de anjos, de

vozes do céu, e o mundo palestinense estava absorvido no apego fanático aos bens

imediatos. Comentavam-se, apaixonadamente, as listas e informações alusivas a

rebanhos e fazendas. Às narrações do sonho de José ou da experiência de Zacarias,

prefeririam noticiário referente à produção de farinha ou ao rendimento de pomares...

128

Todavia, para entregar à Humanidade a divina mensagem de que te fizeste o Depositário

Fiel, não te feriste ao choque da indiferença. Começaste, assim mesmo na manjedoura

humilde; o apostolado de bênçãos eternas. O Evangelho iniciou a primeira página viva da

revelação nova na estrebaria singela. A Natureza foi o primeiro marco de tua batalha

multissecular da luz contra as trevas.

E enquanto prossegues, conquistando, palmo a palmo, o espírito do mundo, os homens

continuam fazendo estatísticas inumeráveis...

Aos censos de Otávio, seguiram-se os de Tibério, aos de Tibério sucederam-se

arrolamentos de outros dominadores. Depois do poderio romano fragmentado, outras

organizações autoritárias apareceram não menos tirânicas. Dilataram-se os serviços

censitários, em toda à parte.

As nações modernas não fazem outra coisa além da extensão do poder, melhorando a

estatística que lhes diz respeito.

Inventariavam-se, na antiga Judéia, ovelhas e jumentos, camelos e bois. Hoje, porém,

Jesus, o arrolamento é muito mais importante. Com o aperfeiçoamento da guerra, o censo

é vital nas decisões administrativas. Antes da carnificina, arregimentam-se estatísticas de

canhões, tanques e navios, aviões, metralhadoras e fuzis. Enumeram-se homens, por

cabeça, no serviço preparatório dos massacres e, em seguida, anotam-se feridos e

mutilados. Isso, nas vanguardas de sangue, porque, na retaguarda, o inventário dos

grandes e pequenos negócios é talvez mais ativo.Há, corridas de arma- mentos e bancos,

valorização e desvalorização de bens móveis e imóveis, câmbio claro e câmbio escuro,

concorrência leal e desleal, mercado honesto e clandestino, tudo de acordo com as

estatísticas prévias que autorizam providências administrativas e regem o mecanismo da

troca.

Nós sabemos que não condenas o ato de contar. Aconselhaste-nos nesse sentido,

recomendando que ninguém deve abalançar-se a qualquer construção, antes de contas

rigorosas, a fim de que a obra não permaneça inacabada. Entretanto, estamos entediados

de tanto recenseamento para a morte, porque, em verdade, nunca esteve a casa dos,

homens tão rica e tão pobre, tão, faiscante de esplendores e tão mergulhada nas trevas,

tão venturosa e tão infeliz, como agora.

Desejávamos, Mestre, arrolar as edificações da fé, os serviços da esperança, os valores

da caridade contudo, somos ainda muito poucos no setor de interesse pelos sonhos

reveladores e pelas vozes do céu. Apesar disso, sabemos que os homens, fanatizados

pela estatística das formas perecíveis, examinam os gráficos, de olhos preocupados, mas

erguem corações ao alto, amargurados e tristes, movimentam-se entre tabelas e

números, mas torturados pela sede de infinito...

Quem sabe, Senhor, poderia voltar, consolidando a tua glória, como fizeste há quase

vinte séculos?! Entretanto, não nos atrevemos ao convite direto. As estalagens do mundo

estão ainda repletas de gente negociando bens transitórios e melhorando o inventário das

posses exteriores. Os governos estão empenhados em orçamentos e tributos. Os crentes

pousam olhos apressados em teu Evangelho de Redenção e repetem fórmulas verbais,

como os judeus de outro tempo, que mastigavam a Lei sem diferi-la. Quase certo que não

129

encontrarias lugar, entre as criaturas. E não desejamos que regresses, de novo, para

nascer num estábulo, trabalhar à beira das águas, ministrar a revelação em casas e

barcas de empréstimo e morrer flagelado na cruz. Trabalharemos para que a tua glória

brilhe entre os homens, para que a tua luz se faça nas consciências, porque, em verdade,

Senhor, que adiantaria o teu retorno se a estatística das coisas santas não oferece a

menor garantia. De vitória próxima? Como insistir pela tua volta pessoal e direta se na

esfera dos homens ainda não existe lugar onde possas nascer, trabalhar e morrer?