Nota do Blog: Apesar de estar integralmente apresentado. Esse livro ainda não está totalmente formatado nesse blog, para uma leitura mais prazerosa.
Caro Amigo
Se você gostou deste livro e tem oportunidade de adquiri-lo, faça-o, pois os direitos
autorais são doados a instituições de caridade.
Muita Paz
FRANCISCO CANDIDO XAVIER
PONTOS E
CONTOS
Pelo Espírito
Irmão X
PONTOS E CONTOS
O Evangelho é o Livro da Vida, cheio de contos e pontos divinos, trazidos ao mundo pelo
Celeste Orientador.
Cada apóstolo Lhe reflete a sabedoria e a santidade.
E em cada página o Espírito do Mestre resplende, sublime de graça e encantamento, beleza
e simplicidade.
É a história do bom samaritano.
A exaltação de uma semente de mostarda.
O romance do filho pródigo.
O drama das virgens loucas.
A salvação do mordomo infiel.
O ensinamento da dracma perdida.
A tragédia da figueira infrutífera.
A lição da casa sobre a rocha.
A parábola do rico.
A rendição do juiz contrafeito.
Na montanha, o Divino Amigo multiplica os pães, mas não se esquece de salientar as bemaventuranças.
Na cura de enfermos ou de obsidiados, traça pontos de luz que clareiam a rota dos séculos,
restaurando o corpo doente, sem olvidar o espírito imperecível.
Inspirados na Boa Nova, escrevemos para você, leitor amigo, as páginas deste livro singela.
Por que se manifestam os desencarnados, com tamanha insistência na Terra? não teriam
encontrado visões novas da vida que os desalojassem do mundo? – perguntará muita gente,
surpreendendo-nos o esforço.
É que o túmulo não significa cessação de trabalho, nem resposta definitiva aos nossos
problemas.
É imprescindível agir, sempre a auxiliarmo-nos uns aos outros.
Conta-nos Longfellow a história de um monge que passou muitos anos, rogando uma visão
do Cristo. Certa manhã, quando orava, viu Jesus ao seu lado e caiu de joelhos, em jubilosa
adoração.
No mesmo instante o sino do convento derramou-se em significativas badaladas. Era a hora
de socorrer os doentes e aflitos, à porta da casa e, naquele momento, o trabalho Lhe
pertencia. O clérigo relutou, mas, com imenso esforço, levantou-se e foi cumprir as
obrigações que Lhe competiam.
Serviu pacientemente ao povo, no grande portão do mosteiro, não obstante amargurado por
haver interrompido a indefinível contemplação. Voltando, porém, à cela, após o dever
cumprido, oh maravilha! Chorando e rindo de alegria, observou que o Senhor o aguardava no
cubículo e, ajoelhando-se, de novo, no êxtase que o possuía, ouviu o Mestre que Lhe disse,
bondoso:
– “Se houvesses permanecido aqui, eu teria fugido.”
Assim, de nossa parte, dentro do ministério que hoje nos cabe, não nos é lícito desertar da
luta e sim cooperar, dentro dela, para a vitória do Sumo Bem.
É por isso, leitor, que trazemos a você estas páginas despretensiosas, relacionando
conclusões e observações dos nossos trabalhos e experiências.
Talvez sirvam, de algum modo, à sua jornada na Terra. Mas se houver alguma semelhança,
entre estes pontos e contos com algum episódio de sua própria vida, acredite você que isso
não passa de mera coincidência.
Irmão X.
Pedro Leopoldo, 3 de outubro de 1950.
01 - O PROGRAMA DO SENHOR
A frente da turba faminta, Jesus multiplicou os pães e os peixes, atendendo à necessidade
dos circunstantes.
O fenômeno maravilhara.
O povo jazia entre o êxtase e o júbilo intraduzíveis.
Fora quinhoado por um sinal do Céu, maior que os de Moisés e Josué.
Frêmito de admiração e assombro dominava a massa compacta.
Relacionavam-se, ali, pessoas procedentes das regiões mais diversas.
Além dos peregrinos, em grande número, que se adensavam habitualmente em torno do
Senhor, buscando consolação e cura, mercadores da Iduméia, negociantes da Síria,
soldados romanos e cameleiros do deserto ali se congregavam em multidão, na qual se
destacavam as exclamações das mulheres e o choro das criancinhas.
O povo, convenientemente sentado na relva, recebia, com interjeições gratulatórias, o
saboroso pão que resultara do milagre sublime.
Água pura em grandes bilhas era servida, após o substancioso repasto, pelas mãos robustas
e felizes dos apóstolos.
E Jesus, após renovar as promessas do Reino de Deus, de semblante melancólico e sereno
contemplava os seguidores, da eminência do monte.
Semelhava-se, realmente, a um príncipe, materializado, de súbito, na Terra, pela suavidade
que lhe transparecia da fronte excelsa, tocada pelo vento que soprava, de leve...
Expressões de júbilo eram ouvidas, aqui e ali.
Não fornecera Ele provas de inexcedível poder? não era o maior de todos os profetas? não
seria o libertador da raça escolhida?
Recolhiam os discípulos a sobra abundante do inesperado banquete, quando Malebel,
espadaúdo assessor da Justiça em Jerusalém, acercou-se do Mestre e clamou para a
multidão haver encontrado o restaurador de Israel. Esclareceu que conviria receber-lhe as
determinações, desde aquela hora inesquecível, e os ouvintes reergueram-se, à pressa,
engrossando fileiras, ao redor do Messias Nazareno.
Jesus, em silêncio, esperou que alguém lhe endereçasse a palavra e, efetivamente, Malebel
não se fez rogado.
– Senhor – indagou, exultante –, és, em verdade, o arauto do novo Reino?
– Sim – respondeu o Cristo, sem, titubear.
– Em que alicerces será estabelecida a nova ordem? – prosseguiu o oficial do Sinédrio,
dilatando o diálogo.
– Em obrigações de trabalho para todos.
O interlocutor esfregou o sobrecenho com a mão direita, evidentemente inquieto, e
continuou:
– Instituir-se-á, porém, uma organização hierárquica?
– Como não? – acentuou o Mestre, sorrindo.
– Qual a função dos melhores?
– Melhorar os piores.
– E a ocupação dos mais inteligentes?
– Instruir os ignorantes.
– Senhor, e os bons? Que farão os homens bons, dentro do novo sistema?
Ajudarão aos maus, á fim de que estes se façam igualmente bons.
– E o encargo dos ricos?
– Amparar os mais pobres para que também se enriqueçam de recursos e conhecimentos.
– Mestre – tornou Malebel, desapontado –, quem ditará semelhantes normas?
– O amor pelo sacrifício, que florescerá em obras de paz no caminho de todos.
– E quem fiscalizará o funcionamento do novo regime?
– A compreensão da responsabilidade em cada um de nós.
– Senhor, como tudo isto é estranho! – considerou o noviço, alarmado – desejarás dizer que
o Reino diferente prescindirá de palácios, exércitos, prisões, impostos e castigos?
– Sim – aclarou Jesus, abertamente –, dispensará tudo isso e reclamará o espírito de
renúncia, de serviço, de humildade, de paciência, de fraternidade, de sinceridade e,
sobretudo, do amor de que somos credores, uns para com os outros, e a nossa vitória
permanecerá muito mais na ação incessante do bem com o desprendimento da posse, na
esfera de cada um, que nos próprios fundamentos da Justiça, até agora conhecidos no
mundo.
Nesse instante, justamente quando os doentes e os aleijados, os pobres e os aflitos desciam
da colina tomados de intenso júbilo, Malebel, o destacado funcionário de Jerusalém, exibindo
terrível máscara de sarcasmo na fisionomia dantes respeitosa, voltou as costas ao Senhor, e,
acompanhado por algumas centenas de pessoas bem situadas na vida, deu-se pressa em
retirar-se, proferindo frases de insulto e zombaria...
O milagre dos pães fora rapidamente esquecido, dando a entender que a memória funciona
dificilmente nos estômagos cheios, e, se Jesus não quis perder o contacto com a multidão,
naquela hora célebre, foi obrigado a descer também.
02 - A CARTA DO MUNDO
Em todos os departamentos da Terra, reconhecemos a cooperação dos grandes
missionários com a Sabedoria Divina.
De época a época, de civilização a civilização, vemo-los, à maneira de abelhas laboriosas e
felizes, retirando o mel da ciência nas flores maravilhosas da vida, esparsas no campo
infinito da Natureza.
O mundo sofria as calamidades mefíticas, mas a Medicina respeitável saneou o pântano e
continua vencendo a enfermidade e a morte.
Vagueava a fome entre populações exaustas; todavia, o comércio esclarecido solucionou o
problema doloroso.
Os perigos do mar afligiam os continentes, dificultando as comunicações; entretanto, o navio
rápido venceu o dorso do abismo.
As sombras noturnas invadiam as cidades e os campos, desafiando as lanternas
bruxuleantes; contudo, a lâmpada de Edison resplandeceu, expulsando as trevas.
Moviam-se as máquinas primitivas, pesadamente, extorquindo copioso suor dos servos
cativos; no entanto, a energia elétrica diminuiu os sacrifícios do braço escravizado.
Questões difíceis dos povos atormentavam as administrações nas metrópoles distantes entre
si; mas o avião, qual poderosa ave metálica, cortou os céus, eliminando a separação.
A cultura exigia canais para beneficiar as mais diversas regiões do Planeta e o rádio
respondeu às reclamações, unindo os países uns aos outros.
Corações apartados no plano material padeciam angústias, sequiosos de intercâmbio, e o
telefone, de algum modo, curou semelhante ansiedade.
Nos hospitais e nos lares, a dor física torturava milhões de sofredores; a anestesia, porém,
aliviou-lhes o padecimento.
Em todos os ângulos da evolução terrestre, observamos o concurso dos apóstolos humanos
nas edificações divinas. Transitam nas artes ë nas ciências, no comércio e na indústria, no
solo e nas águas, construindo, colaborando e melhorando, sob os desígnios superiores que
nos assinalam os destinos.
Para quase todos os flagelos que atormentam a Humanidade, encontraram lenitivo e socorro.
Todavia, para um deles, todo o esforço tem sido vão. Monstro de mil tentáculos, envolve as
criaturas desde o sílex, rastejando entre as nações cultas de hoje, como se arrastava entre
as tribos selvagens de ontem. Envenena as fontes da mais adiantada cultura, turva a mente
dos pensadores mais nobres, obscurece o sentimento dos mais fiéis mordomos da economia
terrestre, investe as posições mais simples, tanto quanto as situações mais altas. Não
reconhece a inteligência, nem a sensibilidade; alimenta-se de ódio e ruínas, mastiga
violência e morte em todas as latitudes do Globo. Derruba templos e oficinas, lares e
escolas, pratica ignominiosos crimes com assombrosa indiferença. Ri-se das lágrimas,
espezinha ideais, tritura esperanças...
Esse é o monstro da guerra que asfixia a Europa e a América com a mesma força com que
constringia a garganta do Egito e da Babilônia.
Por cercear-lhe a ação esmagadora, organizam-se ligas e cruzadas, tratados e alianças em
todos os tempos; improvisam-se conferências em Londres e Paris. Em Washington e
Moscou, renova-se a geografia e modificam-se os sistemas políticos.
O flagelo, contudo, prossegue dominando, destruindo, esfrangalhando, matando...
Para extinguir-lhe a existência nefasta, só existe um recurso infalível – a aplicação dos
princípios curativos e regeneradores do Médico Divino. Esses princípios começam na
humildade da manjedoura, com escalas pelo serviço ativo do Reino de Deus, com o auxilio
fraterno aos semelhantes, com a adaptação à simplicidade e à verdade, com o perdão aos
outros, com a cruz dos testemunhos pessoais, com a ressurreição do espírito, com o
prosseguimento da obra redentora através da abnegação e da renúncia, da longanimidade e
da perseverança no bem até ao fim da luta, terminando na Jerusalém libertada, símbolo da
Humanidade redimida.
Será, todavia, remédio das nações, quando as almas houverem experimentado a sua
essência divina.
Não é receituário atuando, problematicamente, de fora para dentro. É medicação viva,
renovando de dentro para fora.
Não é demagogia religiosa. É vida permanente.
Não se trata de plataforma verbalista e, sim, de transformação substancial.
Jesus encontrou os discípulos, um por um.
O indivíduo é coluna sagrada no templo do Cristianismo.
Negue cada qual a si mesmo – disse-nos o Mestre –, tome a sua cruz e siga-me.
Eis por que o Evangelho é a Carta do Mundo que glorificará a paz na Terra, depois de
impressa no Coração do Homem.
03 - AS PORTAS CELESTES
O grupo de desencarnados errava nas esferas inferiores. Integravam-no alguns cristãos de
escolas diversas, estranhando a indiferença do Céu...
Onde os Anjos e Tronos, os Arcanjos e Gênios do paraíso, que não se aprestavam para
recebê-los?
Em torno, sempre a neblina espessa, a penumbra indefinível. Onde o refúgio da paz, o asilo
de recompensa?
Longos dias de aflição, em jornadas angustiosas...
Depois da surpresa, a revolta; após a revolta, a queixa. Finda a queixa, veio o sofrimento
construtivo e com esse surgiu a prece.
Em seguida à oração, eis que aparece a resposta. Iluminado mensageiro, em vestidura
resplandecente, desafia a sombra da planície, fazendo-se visível em alto cume.
Prosternam-se os peregrinos à pressa. Seria o próprio Jesus? Não seria?
Ante a perturbação que os acometera, o emissário tomou a palavra e esclareceu, fraterno:
– Paz em nome do Senhor, a quem endereçastes vosso apelo. Vossas súplicas foram
ouvidas.
Que desejais?
– Anjo celeste – falou um deles –, pois não vês?!... Estamos rotos, exaustos, vencidos, nós,
que fomos crentes fervorosos no mundo. Onde se encontra o Redentor que não nos salva, o
Príncipe da Luz, que nos deixa em plena treva? Que desejamos? nada mais que o prêmio da
luta...
Não pôde prosseguir. Ondas de lágrimas invadiram-lhe os olhos, sufocando-lhe a garganta e
contagiando os companheiros que se desfizeram em pranto dorido.
O preposto do Cristo, contudo, manteve-se imperturbável e considerou:
– A Justiça Divina nunca falhou no Universo.
– Ah! mas nós sofremos – replicou o interlocutor aliviado – e certamente somos vítimas de
algum esquecimento que esperamos seja reparado.
O ministro de Jesus não se deixou impressionar e voltou a dizer:
– Vejamos. Respondei-me em sã consciência:
Quando encarnados, amastes a Deus, sobre todas as coisas, com toda a alma e
entendimento?
Se estivessem à frente de autoridade comum, provavelmente os interpelados buscariam
tergiversar, fugindo à verdade. A luz divina do emissário, porém, penetrava-lhes o âmago do
ser. Decorrido um instante de pesada expectação, informaram todos a um só tempo:
– Não.
– Considerastes os interesses do próximo como se vos pertencessem?
Novo momento de luta íntima e nova resposta sincera:
– Não.
– Negastes a personalidade egoística, suportastes vossa cruz e seguistes o Mestre?
– Não.
– Colocastes a Vontade Divina acima de vossos desejos?
– Não.
– Fizestes brilhar em vós, na Terra, a luz que o Céu vos conferiu?
– Não.
– Auxiliastes vossos inimigos, orastes pelos que vos perseguiram, ministrastes o bem aos
que vos caluniaram e dilaceraram?
– Não.
– Perdoastes setenta vezes sete vezes?
– Não.
– Fostes fiéis ao Pai até ao fim?
– Não.
– Vencestes os dragões da discórdia e da vaidade?
– Não.
– Carregastes as cargas uns dos outros?
– Não.
O mensageiro fixou benevolente gesto com as mãos e, mostrando olhar mais doce,
observou, depois de comprida pausa:
– Se em dez das lições do Divino Mestre não aprendestes nenhuma, com que direito
invocais o seu nome? Acreditais, porventura, que Ele nos tenha ensinado algo em vão?
Os infortunados puseram-se a chorar, com mais força, e um deles objetou :
– Que será de nós? quem nos socorrerá, se tínhamos crença verdadeira?!...
– Sim – tornou o representante do Cristo –, não contesto. Entretanto, como interpretar o
possuidor do bom livro que nunca lhe examinou as páginas? Como definir o aluno que
gastou possibilidades e tempo da escola, sem jamais aplicar as lições no terreno prático?
– Oh! anjo bom, contudo, nós já morremos na Terra!... – acrescentou a voz triste do irmão
desencantado, entre a aflição e a amargura.
O mensageiro, porém, rematou com serenidade:
– Diariamente, milhões de almas humanas abandonam a carne e tornam a ela, no
aprendizado da verdadeira vida. Quem morre no mundo grosseiro perde apenas a forma
efêmera. O que importa no plano espiritual não é o “interromper” ou o “recomeçar” da
experiência e, sim, a iluminação duradoura para a vida imortal. Não percais tempo, buscando
novos programas, quando nem mesmo iniciastes a execução dos velhos ensinamentos.
Aprendiz algum tem o direito de invocar a presença do Mestre, de novo, antes de atender as
lições anteriormente indicadas. Voltai e aprendei! Não existe outro caminho para a distração
voluntária.
Nesse mesmo instante, o enviado tornou ao plano de onde viera, enquanto os peregrinos, ao
invés de prosseguirem viagem para mais alto, obedeciam ao impulso irresistível que os
conduzia para mais baixo.
04 - EM SESSÃO PRÁTICA
A situação no grupo doutrinário apresentava anormalidades significativas. Desentendiam-se
os companheiros entre si. Olvidando obrigações respeitáveis, confiavam-se a críticas
acerbas. Acentuavam-se hostilidades mal-disfarçadas de cizânia, orientadas pela
incompreensão. Ninguém se lembrava dAquele humilde e divino servidor que lavara os pés
dos próprios companheiros. Cada aprendiz da comunidade chamava a si a posição de
comando e o direito de julgar asperamente.
Debalde os mentores espirituais da casa convidavam à ponderação e ao entendimento
recíproco.
Os operários descuidados recebiam-lhes as palavras, sem maior atenção pelas advertências
educativas.
É que Cláudio e Elias, os dois abnegados diretores invisíveis do agrupamento, não se
inclinavam a exortações contundentes.
Entre os desencarnados de nobre estirpe, há também fidalguia, cavalheirismo e gentileza e,
na opinião deles, não deviam tratar os irmãos de trabalho como se fossem crianças
inconscientes.
Certa noite em que as vibrações antagônicas se fizeram mais fortes, anulando os melhores
esforças no campo da espiritualidade edificante, Elias dirigiu-se a Cláudio, sugerindo,
esperançoso :
– Creio de grande eficácia a visita de alguns sofredores ao núcleo dos nossos amigos
encarnados. Poderiam assim observar, de perto, os efeitos escuros da vaidade e da
indisciplina. Amanhã, teremos sessão prática, de há muito tempo esperada, e admito a
oportunidade de semelhante lição.
– Excelente medida! – exclamou o colega, satisfeito – não seria razoável recordar obrigações
comuns, de modo direto, a cooperadores nossos que estudam o Evangelho, todos os dias.
Afinal de contas, não obstante mergulhados na carne, possuem tantos deveres para com
Jesus quanto nós, e, se já receberam inúmeras mensagens sobre as necessidades de ordem
e concurso fraterno, como insistir com eles no serviço a fazer? O alvitre é, portanto,
providenciai. Traremos à reunião alguns infelizes, desviados da reta conduta. Observandolhes
os padecimentos, é provável que sintam a lição, com segurança, tornando aos rumos
legítimos...
Com efeito, na noite imediata, duas entidades perturbadas foram trazidas à sessão.
Mais de trinta freqüentadores passaram a ouvir a palestra dolorosa.
O doutrinador Silvério Matoso fazia paciente esforço para acalmar os desventurados que
choravam ruidosamente, através das organizações mediúnicas.
– Desgraçado de mim! – comentava um deles – sou um réprobo, amaldiçoado de todos!
Onde o meu equilíbrio? perdi tudo... Não tenho recursos para a locomoção, quanto
antigamente!... Vivo no seio de tempestade sem bonança...
Enquanto as lágrimas lhe corriam, copiosas, da face, clamava o outro:
– Que será de mim, relegado às trevas? Para onde se foram os miseráveis que me ataram
ao poste do martírio? Malditos sejam!...
Acostumado à doutrinação, Matoso dizia, fraternalmente :
– Meus amigos, abstende-vos da desesperação e da revolta! confiemos no Divino Poder!
Inspirado diretamente por Elias, o benfeitor espiritual que se esforçava intensamente por
gravar a lição da hora, prosseguia, enérgico:
– Viveis presentemente as realidades da alma. Notastes agora que o relaxamento interior no
mundo ocasiona grandes males. Desditosos todos aqueles que conhecem o bem e o não
praticam! desventurados os rebeldes, os hipócritas e os indiferentes, porque a morte do
corpo revela a verdade pura, e as almas transviadas não encontram senão abismos e trevas,
lágrimas e tormentos. Jesus, porém, é a fonte inesgotável das bênçãos de paz renovadora.
Tende calma e esperança!...
– Sou, todavia, um infame – soluçava uma das entidades comunicantes –, repetidamente
escutei palavras da fé santificante e do bem salvador, mas nunca cedi a ninguém. Quis viver
as minhas fraquezas, alimentá-las e defendê-las com todas as forças. Nunca ponderei,
intimamente, quanto às realidades eternas. Ao alcance de meu coração, fluíam
ensinamentos e socorros de toda sorte. Fui muita vez convidado ao Evangelho do Cristo;
entretanto, zombei de todas as oportunidades de renovação espiritual. Considerava meus
melhores amigos, no capítulo da religião, tão egoístas e mentirosos quanto eu mesmo.
Agora... quantas lágrimas devo chorar, eu que desprezei a paz divina e preferi as vibrações
infernais?
– E eu? – exclamava o mais revoltado – poderá haver trevas mais densas que as minhas?
haverá dor maior que esta a devastar-me? Sinto-me desequilibrado, sem direção... Um
náufrago perdido no abismo é mais feliz que eu... Rodeiam-me quadros de horror...
Experimento fogo e gelo ao mesmo tempo... Podereis, acaso, compreender-me, a mim que
penetrei o vale fundo da desgraça?!...
Matoso, porém, orientado espiritualmente por Elias, interferiu, solicito :
– Olvidai, meus irmãos, as algemas da vida material e ligai-vos ao Senhor, pelo coração. É
indispensável extirpar a raiz dos enganos adquiridos na Terra! A vida não se resume a
impressões físicas, a fantasia corporal; é vibração da eternidade, da divina eternidade!
acalmai os sentimentos em desequilíbrio para recolherdes a dádiva dos conhecimentos
superiores. Esquecei o mal, tornai ao caminho reto! Atravessais, agora, a zona escura das
conseqüências do erro. R necessário renovar as próprias forças, a fim de reacenderdes a
lâmpada da fé.
Assim, Matoso, devagarinho, convenceu as pobres almas desiludidas e desesperadas.
Exaltou a necessidade de disciplina, com a desistência do egoísmo e da vaidade,
azorragando os maus costumes e os vícios vulgares.
Em terminando a longa palestra, ambos os comunicantes se revelavam diferentes.
Despediram-se,revestidos de coragem, esperança e bom ânimo.
A assembléia de ouvintes encarnados mantinha-se sob forte impressão e, entre os invisíveis,
Elias e Cláudio aguardavam, ansiosos, a colheita de ensinamentos.
Teriam os circunstantes compreendido Que as lições se destinavam a eles mesmos? que
ainda se encontravam na carne, com sublimes oportunidades em mão? guardariam as
experiências ouvidas? ponderariam sobre as lutas que aguardam os rixosos e imprevidentes,
além do túmulo? Modificariam as diretrizes?
Ambos os orientadores, benevolentes e sábios, esperavam a manifestação dos amigos, por
identificarem o aproveitamento havido, quando a Senhora Costa quebrou o silêncio,
murmurando:
– Viram vocês quanta dureza e intransigência?
– É... é... – comentou o velho Silva Torres – pregam eles numerosas peças neste mundo
para chorarem no outro...
– E nós, os médiuns – acrescentou Dona Segismunda Fernandes –, devemos suportar
semelhantes Espíritos como se fôssemos caixas de pancada.
– Esses infelizes não chegaram a ser identificados – observou Alberto Lima, um dos
companheiros mais entusiastas do núcleo –, e foi pena. Pareciam muito cultos e,
sobremaneira, versados em matéria religiosa.
– Notei, porém – aduziu outro confrade –, que se não fora a palavra convincente de Matoso
teríamos sofrido desastre. Tenho a idéia de que tratamos com entidades não somente
sofredoras, mas igualmente perversas.
E o próprio doutrinador da casa, que recebera o, inspiração brilhante de Elias, partilhando a
conversação, afiançou, contente :
– Em suma, estou satisfeito. Guardo a convicção de que esses desventurados integram a
falange perturbadora que me persegue o lar.
Elias e Cláudio, invisíveis ao raio de observação comum, entreolhavam-se com indizível
desapontamento.
Os companheiros encarnados mantinham-se prontos para o comentário cintilante e vivo.
Qualificavam as comunicantes, queixavam-se dos sacrifícios a que eram obrigados por
semelhantes visitas, reclamavam-lhes a ficha individual, situavam-nos entre os verdugos da
vida privada; todavia, não houve um só que entendesse a lição legítima da noite, nela
reconhecendo uma advertência do Alto para reajustamento de roteiro, enquanto era tempo.
Ninguém percebeu que, doutrinando os Espíritos, o grupo estava sendo igualmente
doutrinado.
05 - O TESTEMUNHO
Um santo homem repousava, junto a velho poço, em Cesaréia, quando se aproximaram dele
alguns jovens aprendizes do Evangelho, rogando-lhe esclarecimentos sobre o testemunho a que
se referem todos os orientadores da virtude cristã, na preparação espiritual.
O ancião fez um gesto de bênção e falou sem preâmbulos :
– Um devotado judeu convertido à Boa Nova resolveu transportar a palavra do Senhor para certa
comunidade rural da antiga Fenícia, onde residia, no intuito de guiar corações amigos, das trevas
para a luz.
Inflamado de entusiasmo, saiu de Jerusalém para a nova pátria que adotara, após recolher os
ensinamentos do Messias, através dos apóstolos, em ambiente familiar.
Mente modificada e coração refeito, passou a ensinar as verdades novas, sem perder o calor da
fé, ante a gelada indiferença de velhos companheiros de luta.
Ninguém queria saber de perdoar inimigos ou auxiliá-los e muito menos de lançar mão dos
próprios haveres, em favor da fraternidade e, por isto, o pobre doutrinador foi insultado e
apedrejado em praça pública.
Decorrido longo tempo de esforço inútil, deliberou transferir-se para aldeia próspera, situada às
margens do Eufrates, onde contava com diversos amigos, e pôs-se a caminho, sem vacilar.
Seguia estrada fora, de pensamento voltado para o céu todo azul e ouro, agradecendo ao Mestre
a bênção das flores e das brisas que lhe adocicava a marcha, quando, a certa altura de zona
pantanosa, surpreendeu ardiloso crocodilo que, sorrateiro e voraz, rastejava ao seu encontro.
Compreendeu a extensão do perigo e tentou evitá-lo.
Recuou, instintivamente; todavia, dois temíveis animais da mesma espécie buscavam atacá-la
pela retaguarda.
Sabia que, não longe, existia pequena cabana a que poderia abrigar-se e deu-se pressa em
alcançá-la; atingindo-a, porém, reparou, surpreendido, que a choça fora incendiada por anônimo
delinqüente.
Procurou a margem de grande canal próximo, onde pequena ponte lhe proporcionaria passagem
para outro lado da região; entretanto, a ponte rústica fora arrebatada por inundações recentes.
Há esse tempo, outros crocodilos se haviam agregado aos três primeiros e o viajor, apavorado,
no intuito de preservar-se, encaminhou-se para uma cova antiga não muito distante; contudo, ao
abordá-la, notou que enorme serpente lhe ocupava o fundo, apresentando-lhe agressiva cabeça.
Atordoado, dirigiu-se para duas árvores aparentemente vigorosas e tentou escapar, através de
uma delas, mas, em poucos segundos, o vegetal tombou fragorosamente, restituindo-o ao chão;
escalou a segunda e repetiu-se a experiência. As raízes haviam sido destruídas por vermes
invasores.
Lembrou-se o convertido de certo montículo de pedras e, concluindo que algo devia possuir para
defender-se convenientemente, correu a buscá-lo; no entanto, somente encontrou sinais de
trabalhadores que, sem dúvida, as teriam transportado para alguma construção das adjacências
Ávido, buscou algum elemento para a defensiva natural; todavia, o terreno fora lavado por
chuvas copiosas e não viu sequer a mais leve acha de lenha.
Desacoroçoado, subiu pequena eminência, com a intenção de despejar-se em algum vale, mas,
alcançando o topo, descortinou simplesmente o abismo e compreendeu que o abismo significava
a morte.
Então, aquele homem que tanto se torturara, fitou o céu, ajoelhou-se e, ante as feras que se
aproximavam, clamou, confiante:
– Mestre, cumpram-se no escravo os desígnios do Senhor!
Nesse ponto da experiência, o discípulo, espantado, lobrigou tênue neblina, da qual, numa
reduzida fração de minuto, emergiu o próprio Jesus, radiante e belo, que lhe disse, bondoso:
– Não temas! Estou aqui. A minha graça te basta.
Forte ventania soprou, célere, e os ferozes sáurios recuaram assombrados.
O narrador fez demorada pausa e concluiu :
– Todos os seguidores do Senhor encontrarão adversários na senda de purificação... Quanto
mais adiantado o curso em que se encontram, maior é o número de testemunhos e de lições,
porque as dificuldades, obstáculos, perseguições e incompreensões são sempre feras
simbólicas. Há discípulos que encontram um crocodilo por ano, outros recebem um crocodilo
mensal ou semanal e muitos existem que são defrontados por uma romaria de crocodilos de hora
em hora, dependendo as experiências do avanço levado a efeito... Nesses momentos preciosos
e importantes, contudo, não vale qualquer recurso à proteção das forças exteriores, porque, na
escola divina da ascensão, cada aprendiz deverá encontrar o socorro, a resposta ou a solução,
dentro de si mesmo.
E antes que os jovens formulassem as novas indagações que lhes assomavam à boca, o
velhinho ergueu-se, arrimou-se a humilde bordão, despediu--se e seguiu para a frente...
06 - O DOENTE GRAVE
Uma alma atormentada de Mãe, conduzida ao Céu, nas asas blandiciosas do sono, esbarrou
ante as resplandecentes visões do Paraíso.
Um anjo solícito recebeu-a no pórtico.
– Anjo amigo – disse ela em voz súplice –, sou mãe na Terra e tenho dois filhos. Rogo para
ambos as bênçãos de Deus, generosas e augustas.
O mensageiro anotou as petições e, observando-lhe o desvelo fraternal, a mulher aflita
acrescentou, ansiosamente :
– Venho até aqui pedir, em particular, por um deles que, desde muito tempo, se encontra
gravemente enfermo, entre a morte e a vida. Todo o meu carinho, todos os recursos médicos
têm sido ineficazes. Não posso tolerar, por mais tempo, as lágrimas dolorosas que me
afligem o coração. Digne-se o Todo-Poderoso, por vosso intermédio, conceder-me a graça
de vê-la restituído à saúde.
O emissário das Esferas Superiores pensou um instante e interrogou:
– Qual de teus dois filhos se encontra mais unido a Deus?
– Meu pobre filhinho doente – respondeu a recém-chegada –, pois que medita na grandeza
do Pai Celeste, dia e noite. É com o Seu nome que se submete aos remédios amargos e é
esperando no Senhor que vê despontar cada aurora. No sofrimento que lhe desintegra as
forças, dirige-se ao Céu com tamanho fervor que se lhe pressente, de maneira inequívoca, a
ligação com o Pai Amoroso e Invisível.
– E o outro? – indagou o mensageiro divino.
– Esse – esclareceu a pedinte, um tanto confundida, qual se lhe fora impossível dissimular –,
é um homem feliz nos negócios do mundo. Como é favorecido da sorte, parece não sentir
necessidade de procurar o socorro da Providência Divina...
– Qual deles entende a sublime significação do trabalho? – interpelou o emissário
novamente.
– O enfermo, atirado à imobilidade, guarda profunda compreensão, com respeito às virtudes
excelsas do espírito de serviço. Refere-se, constantemente, aos bens do esforço e edifica
quantos lhe ouvem a palavra, tocada de dolorosas experiências.
– E o outro?
– Talvez pelo gênero de vida a que se consagra deixou de ver as belezas da ação própria.
Dispondo de muitos servidores, descansa nos trabalhos alheios. Não conhece o radioso
convite da manhã, porque se levanta do leito demasiado tarde, nos hotéis de luxo, e
permanece estranho às bênçãos da noite, de vez que o corpo, saciado em mesas opíparas e
extravagantes, não lhe confere oportunidade de sentir as sugestões santificadoras da
Natureza.
– Qual deles percebe o imperativo de confraternização com os homens, nossos irmãos? –
tornou o mensageiro sorrindo, bondoso.
– O que está preso à enfermidade angustiosa recebe os amigos de qualquer posição social,
com indisfarçável reconhecimento. Recolhe as expressões de carinho com lágrimas de
alegria a lhe saltarem dos olhos. Emociona-se com a menor gentileza de que é objeto e
parece deter, agora, um laço de amor forte e sincero, mesmo para com aqueles que, em
outro tempo, lhe foram inimigos ou perseguidores.
– E o outro?
– Os favores do mundo – comentou nobremente a palavra maternal – isolam-lhe a
personalidade, a distância dos júbilos domésticos, em rodas restritas e fantasiosas ou nas
regiões elegantes, onde rolem fortunas iguais à dele. Assediado pelos empenhos do mundo
social, cujas idéias se modificam à feição do vento, nunca encontra tempo necessário para
sondar os sentimentos afetivos dos companheiros que o Céu lhe enviou à senda comum.
O anjo atento passou a refletir, com grande interesse, e argüiu, de novo:
– Para qual deles rogas a bênção de Deus, em particular?
– Em favor do pobrezinho que agoniza no leito – informou a ternura materna.
O enviado da Providência fixou-a com extrema bondade e concluiu, com sabedoria :
– Volta à Terra e reconsidera as atitudes do teu carinho! O enfermo do corpo vai muito bem;
já entende a necessidade de união com o Divino Pai e o que distingue, em verdade, os
homens uns dos outros, é o grau de suas relações com a vida mais alta. Renova, pois, os
votos de tuas preces ardentes, porque o doente grave é o outro.
07 - O ACIDENTE PROVIDENCIAL
Martinho Sousa era rapaz inteligente, muito culto, mas excessivamente confiado a idéias
fixas.
Após firmar esse ou aquele ponto de vista, não cedia a ninguém no campo da opinião.
Renovava os pareceres que lhe eram peculiares somente à força de fatos e, assim mesmo,
apenas quando os acontecimentos lhe ferissem os olhos. Declarava-se absoluto nas
interpretações e, rebelde, brandia pesada argumentação sobre quantos lhe não aderissem
ao modo de ver.
Dentro de semelhantes características, foi colhido na trama sutil de terrível obsessão.
A influenciação deprimente das entidades infelizes envolveu-lhe o campo mental em rede
extensa de vibrações perturbadoras. E o desequilíbrio psíquico progrediu singularmente,
senhoreando-lhe o sistema nervoso.
O desventurado amigo começou por abandonar o trabalho diuturno, recolhendo-se ao
ambiente domestico, onde se consagrou ao exame particularizado do próprio caso, enquanto
se alarmavam a esposa e os filhos pequeninos do casal...
Martinho alimentava conversações estranhas, gesticulava a esmo, esbugalhava os olhos
como se fixasse horrendas paisagens, dominado de incoercível pavor.
Não chegava a identificar as sombras que o cercavam, ameaçadoras e inflexíveis na
perseguição sem tréguas; no entanto, assinalava-lhes a presença e captava-lhes os
pensamentos sinistros, em forma de cruéis sugestões.
Atacado de insônia insistente, não se aquietava senão durante alguns minutos, pela
madrugada, para o descanso corporal, gastando as horas em movimentação anormal e
excitante, através dos aposentos, ao jardim e do quintal, errando sempre, obcecado por
invisíveis malfeitores.
De quando em quando, alguém comentava a situação, convidando-o a estudar a suposta
enfermidade, à luz do Espiritismo renovador, mas o teimoso doente se retraía nas
interpretações científicas.
Tratava-se, dizia ele convicto, de choques sucessivos no sistema nervoso, agravados por
uma avitaminose significativa. Além disso, acrescentava, padecia enorme deficiência no
pâncreas. Não se lhe processava a nutrição com a regularidade devida e via-se esgotado em
vista da assimilação imperfeita.
Os companheiros de luta, interessados em seu bem-estar, não conseguiam demovê-lo.
O obsidiado tecia longas considerações de natureza técnica e relacionava diagnósticos
complicados.
Lia, atencioso, as anotações médicas, referentemente aos sintomas que lhe diziam respeito
e, para refutar os amigos, trazia à conversação, exasperado e irritadiço, textos e gravuras de
natureza científica para exaltar os próprios males. Agravava-se-lhe o tormento dia a dia.
Assim, atingira Martinho perigosa posição mental.
Os adversários de sua paz subtraíram-no, quase totalmente, à alimentação e acentuaram-lhe
as preocupações na vigília enfermiça.
Horas a fio mantinha-se na estranha contemplação de paisagens horríveis, na tela escura do
pensamento atormentado.
Piorando-se-lhe a situação, os benfeitores espirituais, que por ele se interessavam,
multiplicaram recursos de salvação, mobilizando novos colaboradores encarnados, de
maneira indireta, que passaram a visitar o enfermo por verdadeiros emissários da solução
indispensável.
Eram portadores de consolação, remédio, esclarecimento e luz; entretanto, o doente não se
abria ao socorro que se lhe dispensava.
Bastaria escutar calmamente a leitura de algumas páginas espiritualizantes e encontraria em
si mesmo o recurso à reação; todavia, negava-se ele, impaciente e menos delicado.
– Influências de ordem psíquica? – indagava, exaltado, aos visitantes – é rematada
maluquice de vocês. Sou vítima de exaustão geral por falta de suprimento vitaminoso
adequado. Estou arrasado. Tenho o fígado apático, os rins intoxicados e os intestinos
inertes...
E estendendo o braço magríssimo, na direção dum velhinho prestimoso que o visitava com
freqüência, exclamava, estentórico:
– E o senhor, “seu” Luís, ainda me vem falar de atuação do outro mundo?! Não será ironia de
sua parte?
Silenciavam os circunstantes, desapontados.
Luís Vilela, o ancião citado nominalmente pelo enfermo, traduzindo o pensamento de
abnegados mentores invisíveis, retrucava sem irritação:
– Deveria você, Martinho, acalmar-se convenientemente para o exame das necessidades
próprias. Como julgar, com tanto rigor, princípios edificantes e curativos que você
absolutamente não conhece? Não devemos condenar sem base firme.
Não sabe a quantos distúrbios pode ser conduzido um homem, sob perseguições ocultas.
Sei que o seu estado de agora impede a leitura meditada; entretanto, proponho-me a ler para
os seus ouvidos e a prestar os esclarecimentos que se fizerem indispensáveis. Creio
aprenderá você, desse modo, a consolidar as próprias energias e a refletir com mais clareza,
repelindo as sugestões inferiores, mesmo porque, meu amigo, em qualquer processo de
remediar a saúde do corpo, é imperioso sanear a mente.
O rebelde obsidiado, porém, não atendia. Não se detinha convenientemente nem mesmo
para registrar as considerações de ordem afetiva. Andava, nervosamente, dum lado para
outro, torcendo as mãos ou gesticulando sem propósito, gritando blasfêmias e queixas. Não
aparecia recurso com que se pudesse sossegá-lo no leito.
Quase desalentados, consultavam-se os amigos entre si.
E não só no círculo dos encarnados sobravam as preocupações. Os enfermeiros espirituais
partilhavam aflições e receios. Martinho não oferecia campo adequado ao entendimento e,
por essa razão, os algozes intangíveis ganhavam terreno franco.
Prosseguia o perigoso impasse, quando, certa noite, um dos verdugos sugeriu ao doente a
idéia de galgar a velha mangueira do quintal, no sentido de respirar atmosfera mais pura.
O doente assimilou a idéia, encantado, sem perceber que o inimigo intentava precipitá-la ao
solo, em queda espetacular.
Recebeu o alvitre capcioso e gostou.
Aguardaria as primeiras horas da madrugada, quando a pequena família descansasse nos
domínios do sono. Procuraria o ar rarefeito na copa da árvore antiga. Possivelmente
conquistaria forças novas ao contacto das mais altas correntes atmosféricas.
Reconhecendo-lhe a disposição firme na execução do projeto, alguns colaboradores
espirituais buscaram o diretor de suas atividades, a fim de traçarem normas para socorro
urgente.
O chefe, contudo, ponderou, muito calmo:
– Não podemos violentar o nosso Martinho no que se reporta à preferência individual. Se ele
estima a orientação dos que lhe tramam a perda, como evitar que sofra as conseqüências
justas?
Deixemo-la confiar-se à dolorosa prova. Talvez esteja dentro dela a chave da solução que
ambicionamos.
Efetivamente, ao raiar do dia, o enfermo sofreu desastrosa queda de grande altura, após
escalar, facilmente, a velha mangueira escorregadia e muito alta.
Aos gritos de dor, foi socorrido pelos familiares e companheiros inquietos. Em seguida, veio o
médico que o amarrou no leito para a restauração de ambas as pernas quebradas.
Foi então que Martinho Sousa, imobilizado no gesso, pôde ouvir a leitura reconfortante de
Luís Vilela, partilhar os serviços de oração e receber passes curativos, libertando-se da
obsessão terrível e insidiosa.
Transcorridas algumas semanas, quando conseguiu locomover-se, era outro homem. Sua
queda da mangueira fora o remédio providencial.
08 - A MAIOR DÁDIVA
Na assembléia luzida do Templo de Jerusalém, os descendentes do povo escolhido exibiam
generosidade invulgar à frente da preciosa arca de contribuições públicas.
Todos traziam algum tributo de consideração ao Santo dos Santos, cada qual mostrando a
liberalidade da fé.
Vestes de linho e valiosas peles, enfeites dourados e aromas indefiníveis impunham, ali,
deliciosas impressões aos sentidos.
Os fariseus, sobretudo, demonstravam apurado zelo no culto externo, destacando-se pela
beleza das túnicas e pelos ricos presentes ao santuário.
Jesus e alguns discípulos, de passagem, acompanhavam as manifestações populares, com
justificado interesse. E Judas, entre eles, empolgado pelo volume das oferendas, abeirava-se
do cofre aberto, seguindo os menores movimentos dos doadores, com a cobiça flamejante
no olhar.
A certa altura, aproximou-se do Messias e informou-o :
– Mestre: Jeroboão, o negociante de tapetes, entregou vinte peças de ouro!...
– Abençoado seja Jeroboão – acentuou Jesus, sereno –, porque conseguiu renunciar a
excesso apreciável, evitando talvez pesados desgostos. O dinheiro demasiado, quando não
se escora no serviço aos semelhantes, é perigoso tirano da alma.
O discípulo voltou ao posto de observação, com indisfarçável desapontamento, mas,
decorridos alguns instantes, reapareceu, notificando:
– Zacarias, o velho perfumista, sentindo-se enfermo e no fim dos seus dias, trouxe cem
peças!...
– Bem-aventurado seja ele – disse o Cristo, em tom significativo –, mais vale confiar a
fortuna aos movimentos da fé que legá-la a parentes ambiciosos e ingratos... Zacarias
prestou incalculável benefício a ele mesmo.
Judas tornou, de moto próprio, à fiscalização para comunicar, logo após, ao grupo galileu:
– A viúva de Cam, o mercador de cavalos que faleceu recentemente, acaba de entregar todo
o dinheiro que recebeu dos romanos pela venda de grande partida de animais.
E, baixando o tom de voz, completava, cauteloso, o apontamento:
– Dizem por aí que alguns centuriões planejavam roubar-lhe os bens...
Jesus sorriu e considerou:
– Muitos recursos amontoados sem proveito provocam as sugestões do mal. Feliz dela que
soube preservar-se contra os malfeitores.
O aprendiz curioso regressou à posição e retornou, loquaz :
– Mestre: Efraim, o levita de Cesaréia, entregou duzentas moedas! Duzentas!...
– Bem-aventurado seja Efraim – falou o Amigo Divino, sem afetação –, é grande virtude
saber dar o que sobra, em meio de tantos avarentos que se rejubilam à mesa, olvidando os
infelizes que não dispõem de uma côdea de pão!...
Nesse instante, penetrou o Templo uma viúva paupérrima, a julgar pela simplicidade com
que se apresentava.
Diante do sorriso sarcástico de Judas, o Senhor acompanhou-a, de perto, no que foi seguido
pelos demais companheiros.
A mulher humilde orou e apresentou duas moedinhas ao fausto religioso do santuário
célebre.
Muitos circunstantes riram-se, irônicos, mas Jesus apressou-se a esclarecer:
– Em verdade, esta pobre viúva deu mais que todos os poderosos aqui reunidos, porquanto
não vacilou em confiar ao Templo quanto possuía para o sustento próprio.
A observação caridosa e bela congelou a crítica reinante.
Pouco a pouco, o recinto enorme tornou à calma.
Israelitas nobres e sem nome abandonaram, rumorosamente, o domicílio da fé.
Jesus e os apóstolos foram os derradeiros na retirada.
Quando se dispunham a deixar a enorme sala vazia, eis que uma escrava de rosto
avelhentado e passos vacilantes surgiu no limiar para atender à limpeza.
Movimenta-se em minutos rápidos.
Aqui, recolhe flores esmagadas, além, absorve em panos úmidos os detritos deixados por
enfermos descuidados.
Tem um sorriso nos lábios e a paciência no olhar, brunindo o piso em silêncio, para que o ar
se purificasse na sublime residência da Lei.
Pedro, agora a sós com o Messias, ainda impressionado com as lições recebidas, ousou
interrogar:
– Senhor, foi então a viúva pobre a maior doadora no Templo de nosso Pai?
– Realmente – elucidou Jesus, em tom fraterno –, a viúva deu muitíssimo, porque, enquanto
os grandes senhores aqui testemunharam a própria vaidade, com inteligência, desfazendose
de bens que só lhes constituíam embaraço à tranqüilidade futura, ela entregou ao Todo-
Poderoso aquilo que significava alimento para o próprio corpo...
Em seguida a leve pausa, apontou com o indicador a serva anônima que se incumbia da
limpeza sacrificial e concluiu :
– A maior benfeitora para Deus, aqui, no entanto, ainda não é a viúva humilde que se desfez
do pão de um momento... É aquela mulher dobrada de trabalho, frágil e macilenta, que está
fornecendo à grandeza do Templo o seu próprio suor.
09 - SURPRESA EM SESSÃO
Aquela mania de Aguinaldo Limeira raiava pela imprudência incompreensível.
Estimava o serviço de doutrinação aos desencarnados, era de uma pontualidade notável às
reuniões, contribuía de boa-vontade nos serviços de assistência, mas, no trato com o
invisível, não era bastante cauteloso nas conversações.
Cultivava especialmente as sessões práticas, dedicadas às entidades sofredoras e
ignorantes, mas preferia realizá-las com grande público, junto do qual se esmerava em
demonstrar o verbo enérgico e veemente.
Não se sentia satisfeito por mostrar o caminho ao desviado, dar pão espiritual ao faminto de
luz, remédio à alma enferma.
Aguinaldo multiplicava perguntas e exigências.
Consolava, sem dúvida, e, na qualidade de trabalhador sincero, espalhava muitos bens;
entretanto, dava-se a longas conversas para estabelecer a procedência dos comunicantes.
Por vezes, as entidades em luta, por motivo de padecimentos incríveis, não podiam prestar
esclarecimentos minuciosos, mas o doutrinador reclamava, rogava, insistia. Quanto mais
conhecido o Espírito visitante, mais se desmanchava Limeira nas indagações ociosas.
Quando arrancava certas declarações tristes, parecia alegrar-se como o caçador viciado
quando apanha a presa, e, a pretexto de identificar as almas sofredoras, tendia, sem
perceber, para a falta de caridade.
De quando em quando, o respeitável orientador espiritual do grupo utilizava o médium
Silvares e esclarecia, de maneira direta :
– Aguinaldo, meu amigo, tem cautela no campo da identificação dos invisíveis. Se o
necessitado bate à porta, atendamos sem muitas interrogações. Que adianta minudenciar a
situação de pobres irmãos nossos, ignorantes e sofredores? Em muitas ocasiões, qual
acontece aos doentes graves da Terra, também os desencarnados em desequilíbrio não
trazem a memória muito clara, perturbados nas inquietações que lhes povoam a mente. Dálhes
o pão do Cristo e deixa-os passar. Obrigá-los a pormenores informativos, quanto à
paisagem que lhes é própria, é intensificar-lhes a dolorosa humilhação. Seria crueldade pedir
aos agonizantes certos esclarecimentos de que devem estar seguros aqueles que os
assistem. Além do mais, os que ensinam e doutrinam estão sempre criando imagens mentais
diferentes naqueles que ouvem e aprendem, e torna-se indispensável não esquecer que tens
numeroso público visível e invisível. A indagação descabida, por vezes, se ajusta à
pretensão científica na pesquisa intelectual, mas aqui, meu amigo, estamos num serviço de
iluminação do espírito para a melhoria do sentimento. Não te transformes de missionário do
bem no advogado de acusação. Pede ao Mestre Divino te esclareça o entendimento!
Limeira ouvia, mas não ponderava.
Na sessão imediata, referia-se ao trabalho indagador dos estudiosos eminentes do
Espiritismo científico, e, quando algum pobre necessitado se fazia sentir, iniciava o
interrogatório crucial.
Mantinha-se inalterada a situação do agrupamento, quando certa noite, diante de enorme
assistência, em meio dos trabalhos, surgiu uma entidade que tomou o médium Silvares, a
desfazer-se em convulsivo pranto.
– Diga, meu irmão – falou Aguinaldo, inquieto –, diga o que sofre e o que deseja...
– Que sofro, que desejo? – gemeu o infeliz, amarguradamente – não posso!... não posso!...
Sou um miserável convertido num monstro!...
– Como assim, meu amigo? – tornou Limeira, espicaçado pela curiosidade.
– Ai! – suspirou a entidade lacrimosa – como doem os resultados da hipocrisia! Na Terra,
enganei as criaturas, mistifiquei os semelhantes, mas, agora, sinto-me diante da própria
consciência... não posso iludir a mim mesmo!
– Com que então foi você um hipócrita no mundo? – perguntou Limeira, com atitude superior
– certamente, enganou os homens, mascarando propósitos e intenções, e, muito tarde,
reconhece que praticou um crime...
- É verdade, é verdade... – clamou o infeliz, soluçando.
Tão comovedoras eram as lágrimas do comunicante infortunado, que toda a assistência
chorava, sob forte emoção.
Limeira, contudo, desejando imprimir o máximo efeito ao quadro, mostrava atitude inquiridora
e convincente.
– Continue, meu irmão! – prosseguiu com autoridade.
E, ao invés de confortá-lo, em nome de Jesus, levantando-lhe a esperança caída, o
doutrinador insistia :
– Esclareça convenientemente o seu caso, meu irmão! de onde veio? poderá identificar-se?
O desventurado esforçava-se, em vão, para responder. O pranto embargava-lhe a voz.
Parecendo insensível, Limeira sentenciou :
– Veja, meu amigo, a que estado angustioso foi conduzido pelo hábito de mentir. O crime da
hipocrisia determinou suas lágrimas presentes. A morte, que descerra os véus da ilusão,
revelou sua verdadeira consciência. Conhece, o irmão, agora, os sofrimentos que aguardam
os mentirosos, os homem fingidos e todos aqueles que aparentam a verdade e fogem dela,
às ocultas, acolhendo-se ao crime. Fale, meu amigo, em que zona da vida tentou enganar as
leis divinas... Como se chama?
Que fez na Terra? Como iludiu o próximo? Possuía você alguma crença religiosa?
Nesse momento, a entidade conseguiu interromper os soluços e falou:
– Aguinaldo, não me tortures mais com tantas interrogações!...
Escutando a voz, tonalizada em novo característico, o doutrinador estremeceu, fez-se lívido e
perguntou, espantado:
– Quem é você, meu irmão?
O infeliz comunicante, num gesto supremo, respondeu em tom lastimoso:
– Eu sou teu pai!...
Viu-se, então, que Limeira deixou pender a fronte e começou também a chorar.
10 - O DISCÍPULO DE PERTO
Efraim, filho de Atad, tão logo soube que Jesus se rodeava de pequeno colégio de aprendizes
diretos para a enunciação das Boas Novas, veio apressado em busca de informes precisos.
Divulgava-se, com respeito ao Messias, toda sorte de comentários.
O povo se mantinha oprimido. Respirava-se, em toda parte, o clima de dominação. E Jesus
curava, consolava, bendizia... Chegara a transformar água em vinho numa festa de casamento...
Não seria ele o príncipe esperado, com suficiente poder para redimir o Povo de Deus?
Certamente, ao fim do ministério público, dividiria cargos e prebendas, vantagens e despojos de
subido valor.
Aconselhável, portanto, disputar-lhe a presença. Ser-lhe-ia discípulo chegado ao coração.
De cabeça inflamada em sonhos de grandeza terrestre, procurou o Senhor que o recebeu com a
bondade de sempre, embora tisnada de indefinível melancolia.
O Cristo havia entrado vitorioso em Jerusalém, mas achava-se possuído de imanifesta angústia.
Profunda tristeza transbordava-lhe do olhar, adivinhando a flagelação e a cruz que se
avizinhavam.
Sereno e afável, pediu a Efraim lhe abrisse o coração.
– Senhor! – disse o rapaz, ardendo de idealismo – aceita-me por discípulo, quero seguirte,
igualmente, mas desejo um lugar mais próximo de teu peito compassivo!... Venho disputar-te o
afeto, a companhia permanente!... Pretendo pertencer-te, de alma e coração...
Jesus sorriu e falou, calmo:
– Tenho muitos seguidores de longe; aspirarás, porventura, à posição do discípulo de perto?
– Sim, Mestre! – exclamou o candidato, embriagado de esperança no poder humano – que fazer
para conquistar semelhante glória?
O Divino Amigo, que lhe sondava os recônditos escaninhos da consciência, esclareceu,
pausadamente:
– O aprendiz de longe pode crer e descrer,abordando a verdade e esquecendo-a,
periodicamente, mas o discípulo de perto empenhará a própria vida na execução da Divina
Vontade, permanecendo, dia e noite, no monte da decisão.
O seguidor de longe provavelmente entreter-se-á com muitos obstáculos a lhe roubarem a
atenção, mas o companheiro de perto viverá em suprema vigilância.
O de longe sente-se com liberdade para buscar honrarias e prazeres, misturando-os com as suas
vagas esperanças no Reino de Deus, mas o de perto sofrerá as angústias do serviço sacrificial e
incessante.
O de longe dispõe de recursos para encolerizar-se e ferir ; o de perto armar-se-á, através dos
anos, de inalterável paciência para compreender e ajudar.
O de longe alegará dificuldades para concentrar-se na oração, experimentando sono e fadiga; o
de perto, contudo, inquietar-se-á pela solução dos trabalhos e caminhará sem cansaço, em
constante vigília.
O de longe respirará em estradas floridas,demorando-se na jornada quanto deseje; o de perto,
porém, muita vez seguirá comigo pelo atalho espinhoso.
O de longe dar-se-á pressa em possuir; o de perto, no entanto, encontrará o prazer de dar sem
recompensa.
O de longe somente encontra alegria na prosperidade material; o de perto descobre a divina lição
do sofrimento.
O de longe padecerá muitos melindres; o de perto encher-se-á de fortaleza para perdoar sempre
e recomeçar o esforço do bem, quantas vezes se fizerem necessárias.
O de longe não cooperará sem honras; o de perto servirá com humildade, obscuro e feliz.
O de longe adiará os seus testemunhos de fé e amor perante o Pai; o de perto, entretanto, estará
pronto a aceitar o martírio, em obediência aos Celestes Desígnios, a qualquer momento.
Após longa pausa, fixou em Efraim os olhos doces e indagou :
– Aceitarás, mesmo assim?
O candidato, algo confundido, refletiu, refletiu e exclamou:
– Senhor, os teus ensinos me deslumbram!...
Vou à Casa de Deus agradecer ao Santo dos Santos e volto, dentro de uma hora, a fim de
abraçar-te o sublime apostolado, sob juramento!...
Jesus aceitou-lhe o amplexo efusivo e ruidoso, despediu-se dele, sorrindo, mas Efraim, filho de
Atad, nunca mais voltou.
11 - PROBLEMA DE SAÚDE
Comentávamos alguns problemas alusivos à saúde humana, quando Olímpio Ericeira, exmédico
na Terra, considerou:
– Modifica-se singularmente o campo geral da vida, quando examinado através de nossos
objetivos superiores. Sob o ponto de vista espiritual, renovam-se-nos aqui todos os conceitos
clássicos da Medicina, em virtude das necessidades fundamentais da alma. Com raríssimas
exceções, toda enfermidade reflete as deficiências de natureza profunda. A rigor, não há
patologia sem desequilíbrio psíquico, tanto quanto não existe flora microbiana sem clima
adequado. Por isso mesmo, grande número de moléstias funcionam como elementos de
socorro à inteligência reencarnada. Claro que o homem não pode prescindir do combate
contra as forças invasoras, no sentido de preservar o precioso vaso orgânico em que se
manifesta; entretanto, não deveria lutar com o pavor do sentenciado e sim com a atenção do
trabalhador. A moléstia acidental pode ser aviso prestimoso; as enfermidades de longo curso
costumam simbolizar trabalhos de salvamento; as enxaquecas, por vezes, demoram-se no
corpo, atendendo a dispositivos da Providência Divina. Se eu dispusesse de autoridade,
solicitaria a todos os irmãos reencarnados aceitarem as manifestações patogênicas, dentro
da maior serenidade, a fim de que produzam todos os bens de que são portadores.
– Semelhante atitude, porém, é muito difícil!
– observou Eduardo Lessa, outro médico desencarnado – o homem estima viver na filosofia
do imediatismo. Exige melhora e cura, ao mesmo tempo, e é tarefa complicada atender a
criaturas insaciáveis.
– A opinião é justa – tornou Olímpio, em tom grave –, o imediatismo é o escolho com que
somos invariavelmente defrontados, em todos os trabalhos de assistência aos companheiros
da experiência física. Há doentes, com muitos anos de leito, que reclamam o
restabelecimento em alguns dias, necessitados que não percebem os impositivos de ordem
moral que os agrilhoam a padecimentos transitórios e pessoas que, intoxicadas pelos
escuros pensamentos que cultivam, não reconhecem as sombras da própria mente
enfermiça.
E refletindo para dar-nos um exemplo do que asseverava, continuou :
– Inda agora, assisti a uma ocorrência significativa. Através dela observei, mais uma vez, que
a pressa de curar, entre os que se movimentam na carne, pode agravar as doenças
verdadeiras da alma.
Olímpio fez uma pausa e prosseguiu :
– A Senhora Ramos é criatura de qualidades excelentes, mas na posição maternal é
apaixonada ao delírio, o que não impede seja credora de numerosas amizades em nosso
plano, em virtude da sua bondade espontânea. Realmente, é caridosa sem ostentação e
humilde sem alarde. Ninguém se retira da presença dessa nobre mulher sem sentir-se
melhor. Sendo prestativa e fraternal, suas rogativas mobilizam muitos colegas nossos, que a
ela se uniram pelos laços indestrutíveis da gratidão.
Não há muitos meses, fui convidado a cooperar no tratamento de Anacleto, filho dessa
valiosa missionária do bem. Dispus-me ao concurso solicitado, sondei o caso; depressa
reconheci, em companhia de outros amigos, que a moléstia insidiosa deveria ser tratada com
muita lentidão, em vista de ascendentes de origem moral. Anacleto apresentava
perturbações orgânicas facilmente remediáveis; no entanto, a sua personalidade real exibia
enormes desequilíbrios. Era ele um viciado de renovação muito difícil.
O médico da família tratava-o, com acerto; entretanto, a mente transviada do rapaz exigia
provas rudes.
A Senhora Ramos vivia receosa. Temia pela saúde do filho e desejava, fervorosamente, a
restauração imediata. Todavia, se o facultativo terrestre apressava recursos para o fim em
vista, de nosso lado acentuávamos a delonga. Não devia o moço restabelecer-se com
facilidade. Tal concessão seria perigosa. Anacleto precisava extrair todo o proveito que a
enfermidade lhe poderia conferir e devia socorrer-se da colaboração de muitos amigos
encarnados, para entender, de alguma sorte, as obrigações que lhe competiam. As reflexões
do leito ser-lhe-iam benéficas. O fígado enfermo, o estômago escoriado e as pernas feridas
lhe ensinariam, sem palavras, valiosas lições íntimas. No curso do tempo, fornecer-lhe-iam
paciência, fraternidade, gratidão e, sobretudo, algum entendimento da vida. Até à ocasião em
que se recolhera para tratamento rigoroso, não passava de criatura inútil. Gastava a
mocidade entre arruaças e vícios.
Não sabia agradecer e muito menos cooperar na extensão do bem. Todavia, em virtude da
moléstia renitente, começava a ser afável e reconhecido. Já sabia como atender a visitas,
como suportar uma conversação em que os seus pontos de vista não eram respeitados e
aprendera a sorrir para pessoas menos simpáticas.
A Senhora Ramos, porém, qual ocorre à maioria das mães terrestres, não examinava a
situação fora das inquietudes injustificáveis. Acomodava-se muito bem com a fé tranqüila dos
dias róseos, mas não compreendia a confiança nos dias escuros.
Implorava a restituição imediata da saúde ao filho e consagrava-se apaixonadamente a essa
idéia.
De quando em quando, encontrávamo-nos no grupo espiritista, através da organização
mediúnica. Expunha-nos, inquieta, as suas aflições e temores.
– Guarde serenidade, minha irmã – repetíamos, invariavelmente –, Anacleto há de curar-se;
em qualquer tempo, mais vale atentar para a Vontade de Deus que nos encarcerarmos nos
próprios desejos, quase sempre filiados à desorientação e ao egoísmo. Aguardemos com
calma.
Nossa amiga, no fundo, pretendia sustentar o elevado padrão de fé, mas acabava sempre
em vacilações prejudiciais, dentro do labirinto afetivo.
De nossa reunião espiritual, seguia para a discussão com o médico, no conforto da
residência, reclamando remédios mais eficientes, melhoras seguras e resultados mais
nítidos.
Assediado pelas rogativas da genitora, o facultativo encarnado lembrou a oportunidade de
uma estação de águas. Anacleto iria às fontes curativas e, certo, restauraria o fígado
intoxicado.
Consultou-nos a Senhora Ramos, com respeito ao alvitre.
Sabíamos que a medida, em nos reportando ao campo físico, seria excelente, que o rapaz
encontraria alívio rápido; no entanto, não ignorávamos que a sua condição espiritual ainda
era lamentável, e que, por isso mesmo, o rapaz não se habilitara à recepção daquela
bênção. Não víamos tão-somente o organismo enfermo, mas também os interesses vitais da
saúde eterna. Examinando todos esses fatores, opinamos em contrário. A pobre mãe
recebeu-nos a negativa, mal-humorada, e, após novo acordo com o clínico terreno, assentou
que nós outros, os cooperadores espirituais, estacionáramos em equívoco, deliberando a
partida do filho para as águas, sem perda de tempo, plenamente despreocupada de nossa
lembrança fraternal.
Em poucos dias, viu-se Anacleto em estação elegante.
A essa altura da narrativa, Olímpio fez longa pausa, como a exumar as reminiscências mais
fortes e concluiu:
Efetivamente, o rapaz, em duas semanas, estava quase radicalmente curado. A Senhora
Ramos não cabia em si de contente. Anacleto, porém, assim que se viu exonerado dos
impedimentos físicos, não mais quis saber das edificantes palestras maternais. Não longe do
balneário funcionava grande seção de jogos de azar que, de pronto, lhe fascinaram a mente
doentia. Incapaz de procurar o entretenimento sadio, útil ao sistema nervoso enfermiço,
atirou-se ao pano verde, desvairadamente, tomado de estranha sede. Ocultando-se à
vigilância materna, durante oito noites sucessivas aventurou somas enormes. Quando
perdeu o conteúdo da própria bolsa, valeu-se de dois cheques em branco que o pai havia
confiado à genitora, devidamente assinados, para despesas eventuais na excursão de cura.
Fez dois saques vultosos, mas perdeu irremediavelmente. Quando viu rolar a ficha
derradeira, ausentou-se, alucinado; enceguecido, semi-louco, não conseguiu registrar-nos a
assistência espiritual e, a sós, no quarto de dormir, ralado de ódio e vergonha, suicidou-se
estourando o crânio. E assim terminou a experiência. A Senhora Ramos retirou-se de casa
conduzindo um filho doente e regressou trazendo um cadáver.
12 - A ÁRVORE DIVINA
Ante nossa acalorada conversação para definir o Testamento de Jesus - Cristo, o ancião de
olhos lúcidos, complacente e humilde, esclareceu:
O Evangelho, meus filhos, pode ser comparado a uma árvore divina, produzindo sementes
de vida eterna, sustentada pelo Senhor junto às fontes do tempo...
Todos os viajores humanos que se abeiraram dela, aproveitaram-lhe os dons de maneira
diferente.
Adorou-a um sacerdote, colheu-lhe preciosa tinta na seiva e escreveu muitos livros, expondo
seus pontos de vista com referência à Soberana Lei, tornando-se, por isso, poderoso
condutor de almas.
Apareceu um filósofo e consagrou-se ao exame de suas menores particularidades, pondo-se
em atitude de interminável indagação.
Visitou-a um geneticista que se revelou fascinado pela ofuscante luz de suas raízes,
mergulhando-se em estudos complexos, sem cogitar das horas.
Procurou-a um pregador de frases corretas e escalou-lhe o tronco, improvisando nele
luminosa tribuna em que passou a ensinar o roteiro do bem aos caminhantes.
Aproximou-se um pastor e retirou-lhe pequeno ramo que transformou em vara disciplinadora
para as ovelhas.
Veio um negociante, recolheu-lhe as folhas curativas e montou vasto empório de remédios
tonificantes, adquirindo imensa fortuna.
Passou um pintor, contemplou-lhe a beleza e compôs maravilhosos painéis, conseguindo, ao
vendê-los, a prosperidade e a fama.
Apareceu um escultor hábil, seccionou-lhe alguns galhos robustos e converteu a delicada
madeira em primorosas estátuas que o encheram de riqueza e renome.
Surgiu um polemista, anotou-lhe a posição no solo e fez minuciosa estatística de todas as
suas possibilidades, de modo a discutir com base sólida as idéias que pretendia oferecer aos
semelhantes.
Apareceu infortunado vagabundo que se lhe ajoelhou à sombra acolhedora e dormiu
satisfeito.
Veio um doente desesperado que lhe fixou as flores perfumosas e arrancou-as, ansioso, a
fim de obter um elixir de consolação.
Cada qual se uniu à árvore preciosa, satisfazendo os propósitos de que se sentiam
possuídos; todavia, embora dessem o máximo de seus esforços à obra do progresso
coletivo, em tarefas respeitáveis, continuavam sempre radicados ao campo inferior da vida,
atormentados pelos interesses que os ligavam entre si.
Eis, porém, que surge um homem diferente. Caracterizado por grande boa-vontade, não
exibe título algum, a não ser indiscutível disposição à fraternidade real. Admirou com
simpatia o sacerdote, o filósofo, o geneticista, o pregador, o pastor, o negociante, o pintor, o
escultor, o polemista,
o vagabundo e o doente e, após longa meditação, abraçou-se respeitosamente à árvore,
colheu-lhe os frutos e comeu-os. Seus olhos iluminaram-se. Fez-se mais sereno, mais forte e
mais digno. E, em silêncio, passou a servir a todos, em nome do Divino Pomicultor. Como
persistisse trabalhando abnegadamente, sem ser catalogado na convenção do serviço
terrestre, determinou o Mestre fosse chamado Discípulo, com vantagens ocultas no Céu.
O velhinho interrompeu-se, sorriu e rematou :
– Segundo reconhecemos, o Evangelho permanece entre nós. Em derredor de sua claridade,
porém, toma cada aprendiz o título que deseja.
E, antes que pudéssemos interpelá-lo para mais amplo esclarecimento do apólogo, fez
significativo gesto de adeus e seguiu adiante.
13 - A SURPRESA DO CRENTE
O devoto feliz experimentava a doce comoção do espetáculo celeste. Mais que a perspectiva
do plano divino, porém, via, extasiado, o Senhor à frente dele.
Chorava, ébrio de júbilo. Sim, era o Mestre que se erguia, ali, inundando-lhe o espírito de
alegria e de luz.
Sentia-se compensado de todos os tormentos da vida humana. Esquecera espinhos e
pedras, dificuldades e dores.
Não vivia, agora, o instante supremo da realização? não esperara, impacientemente, aquele
minuto divino? suspirara, muitos anos, por repousar na bem-aventurança. Recolhera-se em
si próprio, no mundo, aguardando aquela hora de imortalidade e beleza. Fugira aos homens,
renunciara aos mais singelos prazeres, distanciara-se das contradições da existência
terrestre, afastara-se de todos os companheiros de humanidade, que se mantinham
possuídos pela ilusão ou pelo mal. Assombrado com as perturbações sociais de seu tempo e
receoso de complicar-se, no domínio das responsabilidades, asilara-se no místico santuário
da adoração e aguardara o Senhor que resplandecia glorificado, ali diante dos seus olhos.
Jesus aproximou-se e saudou-o.
Oh! semelhante manifestação de carinho embriagava-o de ventura. Sentia-se mais poderoso
e mais feliz que todos os príncipes do mundo, reunidos!...
O Divino Mestre sorriu e perguntou-lhe:
– Dize-me, discípulo querido, onde puseste os ensinamentos que te dei?
O crente levou a destra ao tórax opresso de alegria e respondeu:
– No coração.
– Onde guardaste – tornou o Amigo Sublime – minhas continuadas bênçãos de paz e
misericórdia?
– No coração – retrucou o interpelado.
– E as luzes que acendi, em torno de teus passos?
– Tenho-as no coração – repetiu o devoto, possuído de intenso júbilo.
O Mestre silenciou por instantes e indagou novamente:
– E os dons que te ministrei?
– Permanecem comigo – informou o aprendiz –, no recôndito da alma.
Silenciou o Cristo e, depois de longo intervalo, inquiriu, ainda:
– Ouve! onde arquivaste a fé, as dádivas, as oportunidades de santificação, as esperanças e
os bens infinitos que te foram entregues em meu nome?
Reafirmou o discípulo, reverente e humilde:
– Depositei-os no coração, Senhor!...
A essa altura, interrompeu-se o diálogo comovente. Jesus calou-se num véu de melancolia
sublime, que lhe transparecia do rosto.
O devoto perdeu a expressão de beatitude inicial e, reparando que o Mestre se mantinha em
silêncio, indagou :
– Benfeitor Divino, poderei doravante abrigar-me na paz inalterável de tua graça? já que fiz o
depósito sagrado de tuas bênçãos em meu coração, gozarei o descanso eterno em teu
jardim de infinito amor?
O Mestre meneou tristemente a cabeça e redargüiu:
– Ainda não!... o trabalho é a única ferramenta que pode construir o palácio do repouso
legítimo. Por enquanto, serias aqui um poço admirável e valioso pelo conteúdo, mas
incomunicável e inútil... Volta, pois, à Terra! Convive com os bons e os maus, justos e
injustos, ignorantes e sábios, ricos e pobres, distribuindo os bens que represaste! Regressa,
meu amigo, regressa ao mundo de onde vieste e passa todos os tesouros que guardaste no
santuário do coração para a oficina de tuas mãos!...
Nesse momento, o devoto, em lágrimas, notou que o Senhor se lhe subtraía ao olhar
angustiado.
Antes, porém, observou que o Cristo, embora estivesse totalmente nimbado de intensa luz,
trazia nas mãos formosas e compassivas os profundos sinais dos cravos da cruz.
14 - OBSESSÃO E DÍVIDA
Quando surgiam casos de obsessão no grupo, recorria-se, imediatamente, a Sinfrônio
Lacerda.
Era ele, sem dúvida, o companheiro ideal para a situação.
Dotado de altas qualidades magnéticas, sabia orientar como ninguém.
Tratava-se, efetivamente, dum amigo generoso e bem-intencionado.
Não regateava a colaboração fraterna aos doentes, nem se inclinava a preferências
individuais.
Primava pela delicadeza e pela pontualidade onde fosse convidado a contribuir para o bem.
Por sua clarividência admirável, aliada a firme disposição de servir, atingia as melhores
realizações.
Especializara-se, por isso, na assistência aos obsidiados, em que obtinha verdadeiros
prodígios a lhe coroarem a dedicação.
Sinfrônio, contudo, não obstante a inteireza de caráter e a bondade ativa em determinados
setores do serviço, não se conduzia nas mesmas normas, diante dos desencarnados
sofredores ou ignorantes.
Dispensava aos médiuns enfermos ou perseguidos o maior carinho, concentrando, porém,
sobre as entidades em desequilíbrio a máxima rispidez.
À maneira de grande número de doutrinadores, via nos obsidiados inocentes vítimas e, nos
transviados invisíveis, os verdugos de sempre. Em razão disso, tratava os Espíritos infelizes,
desapiedadamente.
Não raro, Jerônimo, um de seus mentores espirituais, se lhe fazia visível e recomendava:
– Meu amigo, não te afastes do entendimento necessário. Não vicies o olhar, no capítulo das
obsessões. Nem sempre o perseguido está isento de culpas. Os que exibem a carne doente
podem ser grandes devedores. Não desejo furtar-te ao espírito de caridade e serviço aos
semelhantes, mas devo esclarecer-te que não nos cabe olvidar a obrigação de repartir os
recursos do auxílio com as vítimas e os algozes, em porções iguais. Por vezes, Sinfrônio, o
desencarnado desditoso é mais digno de amparo que o encarnado aparentemente sofredor.
As chagas abertas e as necessidades dolorosas permanecem nos dois planos. Não te dirijas,
pois, às pobres entidades da sombra, com descabidas exigências. Sê enérgico, porque todo
sistema de construir ou restaurar demanda robustez de atitudes; entretanto, não sejas cruel
nas palavras. Atende aos perturbados da esfera invisível, com decisão e fortaleza de ânimo;
todavia, não excluas a fraternidade e a compreensão.
Lacerda, contudo, parecia pouco disposto a observar os pareceres.
Não sabia tratar os comunicantes perturbados senão em tom áspero, como quem ordena,
sem cogitar dos direitos alheios.
Frequentemente, palestrava sereno e gentil, antes do contacto com os irmãos infelizes; no
entanto, tão logo se via à frente dos transviados do Além, assumia diversa posição. Emitia
conceituação pesada e agressiva, dentro de francas hostilidades.
Desdobrava-se-lhe a experiência sem alterações, quando foi surpreendido por aflitiva
ocorrência no próprio lar.
A sua filha Angelina, jovem de quinze anos, revelou perturbações psíquicas muito graves.
Assinalava-se-lhe a enfermidade por desmaios sucessivos e inquietantes. Em plena
tranqüilidade doméstica, caía, de súbito, palidíssima, ofegante, perdendo a noção de si
mesma.
O pai carinhoso, extremamente impressionado com a situação, iniciou o tratamento, através
de passes curativos, sem resultados positivos na cura.
Alarmou-se a família, em virtude dos acessos freqüentes, e movimentaram-se providências
diversas.
A esposa de Sinfrônio reclamou a consulta ao psiquiatra, e o companheiro, embora convicto
da legitimidade do fenômeno de obsessão, por verificar a presença do perseguidor, com os
próprios olhos, foi compelido a valer-se do especialista, que diagnosticou a epilepsia comum.
As injeções e os comprimidos, porém, não resolveram o problema.
A prostração da enferma era cada vez maior.
O genitor, não obstante conhecer centenas de casos daquela natureza, achava-se atônito. A
obsessão da filha desconcertava-o. Mobilizara todos os recursos ao seu alcance, sem que se
fizesse sentir qualquer resultado satisfatório. Via a entidade perturbadora que lhe minava a
tranqüilidade doméstica, anotava as ocasiões em que se aproximava sutilmente da jovem,
despendia esforços variados, mas não conseguia deslocar o estranho perseguidor.
As vezes, na intimidade, quando Angelina desfalecia, de súbito, o devotado pai debalde
recorria à palavra forte. Acusava o infeliz, asperamente, admoestava-o com rigor.
A filha, contudo, parecia piorar com semelhante prática.
Atormentado pela ineficiência do seu método, Sinfrônio, esperançoso, organizou um
programa de reuniões semanais, no próprio ambiente da família, buscando atender ao caso
complexo.
As manifestações através da obsidiada começaram imprecisas; entretanto, a entidade
perturbadora não conseguia articular palavra. Incorporava-se em Angelina, prostrava-a
dolorosamente, mas tanto o comunicante quanto a médium pareciam enfermos espirituais
em posição grave.
Sinfrônio, na maioria das vezes, internava-se pela extrema excitação.
– No dia em que eu puder falar a esse obsessor infame, na certeza de ser ouvido –
comentava, irritadiço –, expulsá-lo-ei para sempre. Movimentarei todos os meus recursos
magnéticos para enxotá-lo como se fosse um cão.
Depois de dez meses, decorridos sobre as reuniões sistemáticas, certa noite articulou o
infeliz as primeiras frases angustiosas.
Sinfrônio escutou-lhe as lamentações, num misto de sentimentos contraditórios,
experimentando, acima de tudo, certa satisfação por atingir a presa na esfera verbal.
– Desventurado salteador das trevas – exclamou o doutrinador após ouvi-la –, é chegado o
momento de tua rendição! Vai-te daqui! Ouve-me as determinações!... Não mais voltes a
esta casa! nunca, nunca ais!...
– Não é possível – gemeu o infortunado –, Angelina e eu estamos ligados, desde muitos
séculos... e não somente nós ambos sofremos nesta situação... Você também, Sinfrônio, foi
meu perverso inimigo... Algemas de ódio me ligam ao seu lar, muito antes que as paredes de
sua casa se levantassem...
Sinfrônio Lacerda, neurastênico, interceptou-lhe a confissão e, concentrando todo o seu
potencial magnético, bradou, autoritário :
– Nem mais uma palavra! não desejamos ouvir-te! Retira-te, cruel perseguidor!... Ordeno!
afasta-te, afasta-te!...
Como se a mísera entidade fora premida por uma pinça de vastas proporções, desgarrou, de
chofre, caindo, porém, Angelina em terrível imobilidade.
Esforçou-se o pai por despertá-la, mas em vão.
Três, quatro, cinco horas escoaram aflitivas.
Agravado assim o problema, foi chamado o médico, que identificou o estado comatoso.
Depois de catorze horas de angústia, Sinfrônio Lacerda, chorando pela primeira vez,
convidou alguns irmãos para uma prece de socorro urgente, desfazendo-se em lágrimas na
rogativa,de auxílio aos benfeitores espirituais.
Finda a súplica, Jerônimo, o sábio mentor que o acompanhava de perto, falou,
conselheirático:
– Meu amigo, todas as obsessões, quanto as moléstias de qualquer procedência, podem ser
tratadas, mas nem todas podem ser curadas, segundo os propósitos do homem. No caso de
Angelina, temo-la profundamente unida ao obsessor, desde alguns séculos, quase na
mesma proporção de tempo em que os dois se encontram intimamente associados ao teu
próprio espírito. No passado, perturbaste-lhes o lar e, agora, consoante a Lei Divina,
procuram-te ansiosos de equilíbrio no caminho reto.
Com o teu poder magnético, isolaste o perseguidor, violentamente, mas não podes sustentar
semelhante medida, sem grave dano para ti mesmo. Não se arranca o carvalho de trezentos
anos sem algum trabalho, como não se pode desfazer uma construção milenária, de um
minuto para outro, sem ofensa à harmonia geral. Se não buscares a mesma entidade para
junto da filha, utilizando o mesmo influxo magnético, por intermédio do qual a afastaste,
Angelina desencarnará, em breves horas, para reunir-se ao companheiro.
– Sim, agora compreendo – soluçou o pai aflito.
E, acabrunhado, indagou :
– Jerônimo, meu benfeitor, como proceder então? Ensina-me o caminho da ação por amor
de Deus!
O venerável amigo, com serena inflexão de voz, respondeu, comovidamente :
– Esqueceste, Sinfrônio, que há doutrinações pela palavra e doutrinações através do
exemplo.
Traze o obsessor e recebe-o no teu santuário doméstico, afetuosamente, qual se o fizesse a
um filho.
Cura-lhe as mágoas, orienta-o para o Senhor.
Ama-o, quanto puderes, porque só o amor pode curar o ódio.
E, reparando que Lacerda chorava resignado, copiando a atitude do aprendiz inquieto,
quando em dificuldade na lição, Jerônimo concluiu :
– Não te sintas humilhado, meu filho! Tens agora muitos conhecimentos e possibilidades,
mas tens igualmente muitas dívidas. E quem deve, Sinfrônio, precisa desembaraçar-se ao
débito, a fim de seguir, em paz, na gloriosa e divina jornada para Deus.
15 - NO CORREIO FRATERNO
Meu amigo, diz você, em vernáculo precioso, que a crença nos Espíritos desencarnados é
característico de miséria intelectual.
Em sua conceituação de garimpeiro da retórica, os problemas do Espiritualismo
contemporâneo se resumem a uma exploração de baixa estirpe, alimentada por uma chusma
de idiotas, nos quais o sofrimento ou a ignorância galvanizaram o complexo da fé
inconsciente.
Com a maior sem-cerimônia deste mundo, assevera você que a convicção dos espiritistas de
hoje é uma peste mental, surgida com Allan Kardec, no século passado, e acentua que o
pensamento aristocrático da antiguidade jamais cogitou de semelhante movimentação
idealística.
O seu noviciado no assunto é claro em demasia para que nos disponhamos a minuciosa
escarificação do pretérito.
Se puder escutar-nos, no entanto, por alguns momentos, não nos meta a ridículo se
lembrarmos que a idéia da imortalidade nasceu com a própria razão no cérebro humano.
Não sei se você já leu a história do Egito, mas, ainda mesmo sem a vocação de um
Champollion, poderá informar-se de que, há milênios, a nobreza faraônica admitia, sem
restrições, a sobrevivência dos mortos, que seriam julgados por um tribunal presidido por
Osíris, dentro do mais elevado padrão de justiça.
Os grandes condutores hindus, há muitos séculos, chegavam a dividir o Céu em diversos
andares e o Inferno em vários departamentos, segundo as Leis de Manu.
Os chineses, não menos atentos para com a suprema questão, declaravam que os mortos
eram recebidos, além do túmulo, nos lugares agradáveis ou atormentados que haviam feito
por merecer.
Os romanos viviam em torno dos oráculos e dos feiticeiros, consultando as vazes daqueles
que haviam atravessado o leito escuro do rio da morte.
Narra Suetônio que o assassínio de Júlio César foi revelado em sonhos.
Nero, Calígula e Cômodo eram obsidiados célebres, perseguidos por fantasmas.
Marco Aurélio sente-se inspirado por entidades superiores, legando suas reflexões à
posteridade.
Na Grécia, os gênios da Filosofia e da Ciência formulam perguntas aos mortos, no recinto
dos santuários.
Tales ensina que o mundo é povoado por anjos e demônios.
Sócrates era acompanhado, de perto, por um Espírito-guia, a ditar-lhe conselhos pertinentes
à missão que lhe cabia desempenhar.
Na Pérsia, o zoroastrismo acende a crença na lei de retribuição, depois do sepulcro, sob a
liderança de Ormuzd e Arimã, os doadores do bem e do mal.
Em todos os círculos da cultura antiga e moderna, sentimos o sulco marcante da
espiritualidade na evolução terrestre.
Acima de todas as referências, porém, invocamos o Evangelho, em cuja sublime autoridade
você se baseia para menosprezar a verdade.
O Novo Testamento é manancial de Espiritismo divino.
O nascimento de Jesus é anunciado, por vias mediúnicas, não só à pureza de Maria, mas à
preocupação de José e à esperança de Isabel, Ana e Simeão.
Em todos os ângulos da passagem do Mestre, há fenômenos de transubstanciação da
matéria, de clariaudiência, de clarividência, de materialização, de cura, de incorporação, de
levitação e de glória espiritual.
Em Caná, transforma-se a água em vinho; junto à corrente do Jordão, fazem-se ouvir as
vazes diretas do Céu; no Tabor, corporificam-se Espíritos sublimados; em lugares diversos,
entidades das trevas apossam-se de médiuns infelizes, entrando em contacto com o Senhor;
no lago, o Cristo caminha sobre a massa líquida e, depois do Calvário, surge o Amigo
Celeste, diante dos companheiros tomados de assombro, demonstrando a ressurreição
individual, além da morte...
Tudo isto é realidade histórica, insofismável, mas você afirma que para crer em Espíritos
será necessário trazer complicações na cabeça e chagas na pele.
Não serei eu, “homem-morto” há dezesseis anos, quem terá a coragem de contradizê-lo.
Naturalmente, se este correio de fraternidade chegar às suas mãos, um sorriso cor-de-rosa
aparecerá triunfante em suas bochechas felizes; mas não se glorie, excessivamente, na
madureza adornada de saúde e dinheiro, porque embora eu deseje a você uma existência no
corpo de carne, tão longa quanto a de Matusalém, é provável que você venha para cá, em
breves dias, ensaiando o sorriso amarelo do desencanto.
16 - A BESTA DO REI
A frente da assembléia fraternal que examinava a posição difícil dos médiuns com graves
responsabilidades, o velhinho amigo estampou singulares característicos fisionômicos e
narrou :
– Sem qualquer propósito de plagiar o nosso prestimoso Esopo, já ouvi contar a história de
uma besta de carga, que pode ilustrar os nossos comentários de modo significativo.
Certo rei da Mesopotâmia necessitava transportar enorme tesouro de uma cidade para outra,
a benefício dos próprios súditos. Vastíssima zona do Reino precisava renovar os sistemas de
trabalho e melhorar os processos evolutivos; entretanto, para esse fim, não dispunha de
recursos substanciais. Vocês sabem que, na Terra, toda prosperidade requisita apoio físico,
tanto quanto a luz de uma candeia reclama combustível. Ora, naquele tempo, os homens
não dispunham das facilidades de transporte. Os filósofos ensinavam a verdade e os poetas
já sublimavam a poesia; contudo, a inteligência do mundo estava muito longe da locomotiva
e do avião... O soberano, assim, atado às injunções da época, determinou fosse procurada
uma besta elogiável para o serviço. Depois de várias pesquisas, surgiu o animal nas
condições desejadas. O muar escolhido podia conservar as manhas inerentes à espécie,
mas devia ser calmo, zurrar apenas em horas de perigo e corcovear o menos possível.
A jornada seria laboriosa.
Dias e noites de marcha forçada, com intensivo aproveitamento das horas. Aprazada a
partida, a besta, em sua ingenuidade de serviçal, prazerosamente recebeu arreamento
brilhante.
Deixou o palácio, sob aclamações festivas.
Precedida de carruagens e batedores e seguida de infantes armados, era ladeada de
fidalgos e escrivães, guardas e mordomos, artesãos e ourives, lanceiros e escudeiros,
congregados em rumoroso séqüito para acompanhá-la.
A expedição, realmente, era das mais proveitosas.
Os benefícios seriam incalculáveis.
Isso, porém, não exonerava a besta do cansaço natural.
As caixas repletas de metal precioso que sustentava, se provocavam geral admiração, eram
para ela peso incômodo e incessante.
Em razão disso, a viagem que começou alegremente transformou-se, pouco a pouco, em
peregrinação dolorosa.
Enquanto outros muares podiam comer os legumes frescos de que vinham carregados para
alimento da expedição, a besta honrada e desditosa gemia sob a carga de ouro maciço.
O soberano, se era compreendido por grande parte dos súbitos, possuía também vassalos
infiéis que por incapacidade de entendimento lhe solapavam a autoridade. Por essa razão, o
animal sofredor era objeto de invectivas e achincalhes por parte dos adversários do Rei.
Suarenta e exausta, a infeliz namorava o espelho do Eufrates, sequiosa de uns goles de
água pura; todavia, era obrigada a ver, com absoluta impossibilidade de satisfazer à sede
que a torturava, seus irmãos de rebanho a se refestelarem rio a dentro.
De quando em quando, tangida pelas necessidades naturais, dirigia-se às margens do
caminho, para lamber alguma gota de água barrenta ou tosar algum broto de capim verde;
no entanto, não conseguia grande coisa. A comissão encarregada do tesouro chibateava-a
para que tornasse ao meio-fio. Azeméis desapiedados feriam-na com aguilhões, toda vez
que tentava cheirar outro animal, de modo a sentir-se menos sozinha, porque no fundo, era
uma besta como as outras.
Nas aldeias por onde passava, cheia de feridas e desapontamentos, súditos reconhecidos
traziam-lhe forragem especial e preciosa que a infortunada não conseguia tragar, saudosa da
natureza livre. Senhoras leais ao soberano enfeitavam-na com adornos simbólicos.
Cavalheiros respeitáveis, amigos incondicionais do monarca, exaltavam as virtudes do
solípede, pronunciando extensos discursos, junto de suas orelhas trêmulas.
O animal, guindado a situação de tal brilho, era, porém, descendente de sua espécie e não
podia trair as leis evolutivas, não obstante o favor real.
Por semelhante motivo, amarguravam-lhe, não só as considerações e honrarias indébitas,
como também as disputas sem-fim, que se levantavam, cada dia, em torno de suas patas
inseguras.
Se varava as portas de alguma cidade, sua passagem causava distúrbios.
Cortesãos generosos intervinham, discutidores.
Exigiam alguns que a besta tornasse a direção norte, outros solicitavam a direção sul.
Matronas entusiastas pediam graças especiais para o animal e reclamavam modificações.
Populares exaltados abeiravam-se das caixas preciosas, buscando contemplar, à força, as
barras de ouro puro. Vítima da curiosidade e do atrevimento, a besta era compelida a tolerar
pontapés e golpes incessantes. Se procurava refúgio, ao lado dos artesãos, faminta de
socorro, os ourives protestavam, acreditando que o muar desejava fugir. Se tentava
acolhimento junto dos ourives, para defender-se de alguma sorte, os artesãos provocavam
reação rumorosa, fustigando-a a pontaços.
De quilômetro a quilômetro, o serviço tornava-se mais asfixiante... De vilarejo a vilarejo, a
perturbação aumentava sempre.
A besta não conseguia aliviar-se. Devia transportar o tesouro e não podia comer, repousar
ou banhar-se.
O narrador, inteligente e bondoso, sorriu, fez longa pausa e concluiu :
– O serviço foi realizado. Finda a jornada de sacrifício, a besta foi desarreada. A riqueza
beneficiou a todos. Houve alegria geral no espírito coletivo. Mais possibilidades de trabalho,
mais ânimo entre o povo. A besta, contudo, não era o mesmo animal do início. Trazia o corpo
coberto de chagas sanguinolentas. Não sabia trotear quanto os outros muares. A forragem
rica ou o capim verde não mais a interessavam. Ignorava o caminho da estrebaria. Afligia-se
e assustava-se, tanto na cavalariça, como na pastagem refrescante. Orneava a esmo ou
corria de um lado para outro, sem que ninguém a entendesse. Aos servidores do rei, felizes
com as novas possibilidades, pouco importava o destino de tão extravagante animal. Alguns
companheiros da expedição, mais “caridosos” e práticos, julgaram que o muar houvesse
enlouquecido c resolveram, como solução única, enviá-la ao matadouro.
Antes, porém, o soberano, que era piedoso e justo, mandou buscá-lo para as cocheiras de
sua casa, não se sabe como, e ninguém mais o viu.
A essa altura da narrativa, o velhinho fez uma pausa, e, endereçando a nós outros o seu
olhar percuciente e límpido, perguntou :
– Vocês não acham o médium de responsabilidade, em nossos dias, muito semelhante à
besta do rei?
Sorrimos todos, entreolhando-nos surpresos, mas a curiosa interrogação ficou no ar...
17 - RESPOSTA DE COMPANHEIRO
Meu amigo, pede você um roteiro de nosso plano, que lhe sirva às incursões no campo
mediúnico.
“A região é quase inexplorada, as surpresas imensas” – diz você desalentado.
Como os velhos portugueses do litoral do Brasil, que perdiam longo tempo, antes de enfrentar
a selva do continente espiritual, sentindo-se você incapaz do serviço de penetração, na terra
maravilhosa dos novos conhecimentos. Observa as possibilidades infinitas de realização à
grandeza do serviço a fazer; entretanto, a incerteza impede-lhe a marcha inicial.
Sabe você que os sacrifícios não serão reduzidos. Os bandeirantes antigos, para semearem a
civilização no oceano verde, sofreram, muita vez, privações e dificuldades, solidão e angustia
indizíveis. Os pioneiros da espiritualidade, nos tempos modernos, para distribuírem a nova luz,
na floresta dos sentimentos humanos, não devem nem podem aguardar excursões pacificas e
felizes na esfera imediatista. Experimentarão igualmente os choques do meio, sentir-se-ão quase
sós, padecerão a sede do espírito e a fome do coração.
Tochas acesas contra as sombras da ignorância e do convencionalismo inferior, sofrem o
desgaste natural de suas possibilidades e energias.
Quem se abalance, pois, no ideal de servir, no campo da mediunidade, espere por lutas
árduas de purificação.
A técnica da cooperação com a espiritualidade superior não é diferente daquela que norteia as
atividades dos realizadores do progresso humano. É razoável que o individualismo ai
prepondere, como coloração inalienável da ação pessoal no trabalho a desenvolver; todavia,
esse individualismo deve ajustar-se aos imperativos do supremo bem, apagando-se,
voluntariamente, com alegria, para que as claridade da vida mais alta se destaquem no quadro
penumbroso da atividade terrestre.
Não é o fenômeno desconcertante e indiscutível a base fundamental da obra. È o espírito de
boa-vontade, de sacrifício e renunciação. Ser o medianeiro de fatos transcendente, que
constituam alicerce de grandes e abençoadas convicções, é admirável tarefa, sem duvida. No
entanto, se as demonstrações obedecem a impulsos mecânicos, sem o condimento da
compreensão elevada, no setor da responsabilidade, do serviço e do amor fraterno, toda a
fenomenologia se reduz o fogo-fátuo. Impressiona e comove, durante a festa, para cair no
absoluto esquecimento, nas horas seguintes.
Não basta iniciar a edificação para que o trabalho se realize. É indispensável saber prosseguir
e saber terminar. Imprescindível compreender também nesse capitulo que todos os homens do
mundo são médiuns, por serem intermediários do bem ou do mal.
As fontes do pensamento procedem de origens excessivamente complexas. E, nesse sentido,
cada criatura humana, nos serviços comuns, reflete o núcleo de vida invisível a que se encontra
ligada de mente e coração. Não nos cansaremos de repetir que as esferas dos encarnados e
desencarnados se interpenetram em toda parte.
Não posso desviar-me, contudo, da linha essencial de sua consulta fraterna.
Você, em suma, deseja informa-se quanto ao processo mais eficiente de atender aos
imperativos do bem, no intercambio com o plano invisível e, em face de seu desejo, nada tenho a
aconselhar-lhe senão que intensifique sua capacidade receptiva, dilatando conhecimentos,
elevando aspirações, purificando propósitos e quebrando a concha do personalismo inferior para
poder refletir o infinito.
Mediunidade é sintonia. Cada mente recebe segundo a natureza e extensão da onda de
sentimento que lhe é própria.
Subamos desse modo, a montanha do conhecimento e da bondade. Ajustemo-nos à esfera
superior da vida, para merecermos a convivência dos Espíritos Superiores. A virtude primordial
em semelhante tarefa não consiste, substancialmente, em ser médium, mas ser trabalhador fiel
do bem, instrumento do Divino Amor, onde quer que você se encontre.
Na execução desse programa, encontrará continuo engrandecimento de poder espiritual.
Guarde a harmonia de seu vaso físico, faça mais luz em sua mente, intensifique o amor em
seu coração e o trabalho será sempre mais lúcido mais sublime.
Quanto às arremetidas dos descrentes e ironistas do mundo, não se prenda ao julgamento
que lhes é peculiar. São mais infelizes que perversos. Em todos os tempos, tanto riem como
choram, inconscientemente. Não emito semelhante conceito, para envolver-me em fumaças de
superioridade; é que também me demorei longo tempo entre eles, e conheço, de experiência
própria, os sorrisos e lagrimas do picadeiro da ignorância.
Siga, portanto, seu caminho, estudando com o Mestre Divino e ouvindo a própria consciência.
Não serei eu, pobre amigo do plano espiritual, quem lhe vá traçar diretrizes.
No fundo, o que você deseja é o encontro divino com o Senhor, o ideal que me impulsiona
agora o espírito de pecador.
Em vista disso, ouçamos juntos a advertência do Evangelho:
- “Negue cada qual a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.
Tem você suficiente disposição para satisfazer o sagrado apelo? Quanto a mim, esteja certo
de que, não obstante a condição de alma do outro mundo é o que estou procurando fazer com
toda a sinceridade do coração.
18 - MORRER PARA DESCANSAR
Desenvolvera-se Sérgio Mafra nos conhecimentos do Espiritismo cristão, tornara-se
elemento de valor entre os companheiros, colaborava atencioso, sempre que chamado a
serviço, mas apresentava um defeito grave: era demasiadamente triste e pessimista e vivia
em desacordo com todos os processos da experiência humana. Estimava a tarefa que lhe
fora cometida, não se negava ao concurso fraterno; contudo, desejava morrer, abandonar o
mundo para sempre e entregar-se ao descanso em convivência com as entidades amorosas
do plano invisível.
Ricardo, amigo de muito tempo, assistia-o do campo espiritual, desveladamente. Sérgio
observava-lhe a fisionomia iluminada, através da visão mediúnica e recordava,
imediatamente, a idéia de morte.
- Ah! Meu amigo – exclamava choroso, dirigindo-se ao benfeitor -, quanto desejava partir,
cooperar convosco na vida mais alta! A Terra asfixia o coração... em tudo a dor, o desalento,
a incompreensão!...
Ricardo sorria e, tomando-lhe o braço, escrevia atencioso:
- Sérgio, meu caro, extingue os pensamentos da morte, porque somente a vida persiste na
eternidade. Não desprezes o ensejo de servir no mundo. Todos temos para com o Planeta
imensos débitos que devemos resgatar, de espírito confortado e feliz. Ninguém renasce com
isenção de sérios compromissos. Teus propósitos são valiosos, és sincero nos sentimentos e
confias em nós; todavia, a idéia fixa, referente à morte do corpo, é uma obsessão perigosa
que te poderá arrastar a desenganos cruéis. Atende à vida, filho meu! Não te percas em
lastimar o desenvolvimento das criaturas; repara, acima de tudo, a zona de serviço que elas
te oferecem e dá-te ao trabalho com amor. Permaneces em aprendizado ativo. Não fujas à
lição. A tristeza dos criminosos é justificável por nascer de remorsos amargos,
proporcionando-lhes oportunidade a retificações; entretanto, constitui uma excrescência
deplorável nos servidores da fé. Semelhante angustia é um conjunto de vibrações
destruidoras, ao passo que a alegria sã vem de Deus e deve comunicar-se aos seus filhos. A
Criação inteira está palpitante de júbilo. Não te entregues, portanto, ao desequilíbrio.
Lembra-te de que permaneces no lugar de serviço a que o Senhor te destinou. Reflete nesta
profunda realidade e continua servindo à causa do bem.
Sérgio lia e relia as considerações desse teor e redargüia em lagrimas:
- A existência humana, todavia, me assusta. Pensar na morte é a minha consolação. Nada
me interessa na terra, onde o tempo demora terrivelmente a passar. Desejaria servir junto de
vós, amado amigo, a fim de descansar o coração e alcançar a paz.
Ricardo esboçava expressivo gesto e respondia com firmeza:
- Acreditarias, porventura, que possamos viver aqui sem atividades laboriosas? Nossos
trabalhos são enormes e nossas responsabilidades absorventes. O esforço que nos compete
irmãos encarnados; entretanto, Sérgio, os nossos deveres são bem pesados e dolorosos por
vezes. Não vivemos em paisagem aérea, exonerados de obrigações difíceis, Somos
compelidos a testemunhos que te assombrariam, por certo, e não seria aconselhável o teu
regresso à esfera invisível, sem uma preparação adequada. Zela os teus interesses eternos,
não te precipites, aproveita o tempo, construindo com a verdade e o bem. Se precisarmos
efetivamente do fruto, não será razoável destruir a flor. A existência carnal te oferece belos
períodos de repouso e observação. Vale-te dos tesouros de agora não de descuides.
- Observação? Repouso? – clamava Sérgio, desalento – não tenho oportunidades para
estudos eficientes e muito menos para descanso. A permanência na Terra é castigo
severíssimo, amargo degredo espiritual. Não me conformo com a paisagem escura do
mundo.
E o companheiro, embora em esforço normal, sem qualquer ato indigno da fé que abraça,
ardoroso, continuava chorando e lastimando o presente, através de queixas veladas e
amarguras indefiníveis.
Era, sem duvida, assíduo cooperador dos trabalhos espirituais e não se furtava ao
testemunho serio, mas continuava sempre viva aquela luta de argumentação entre ele e
Ricardo. Este erguia-lhe a mente para as elevadas concepções da vida eterna; no entanto,
aquela somente idealizava a morte repousante. E, no curso do tempo, face à lei que
determina a realização, conforme o ideal, Sérgio Mafra desencarnou de uma gripe sem
importância. O ardente desejo de morrer, para descansar, impediu-lhe o controle eficiente da
máquina orgânica; e, quando todos os amigos lhe aguardavam, esperançosos, o
restabelecimento físico, eis que Mafra lhes impôs a incompreensível surpresa.
Esperou-o Ricardo, pacientemente, abraçou-o, no limiar da vida nova e falou como quem
não encontrava outro remédio senão a conformação:
- Boa sorte, meu amigo! Planejaste a morte e abandonaste o corpo!...
- Sim, sim – replicou Sérgio, de olhos brilhantes -, sempre desejei colaborar ao vosso lado.
- Então sigamos ao serviço, não temos tempo a perder – acrescentou o benfeitor amável e
bem-humorado.
E aplicando-lhe forças magnéticas, para que Mafra não se deixasse dominar por
sensações de sono, fez-se acompanhar por ele, deliberadamente, ao seu campo de serviços
complexos.
Estava Sérgio encantado a principio, mas, aos poucos, reconheceu que Ricardo dispunha
de raríssimas horas para repouso, durante o dia. Não conseguiam nem mesmo ensejo os
mais longos entendimentos. O nobre amigo estava cheio de ocupações sacrificiais e o
recém-desencarnado viu-se na obrigação de acompanhá-lo em peregrinação através de
hospitais, creches orfanatos, necrotérios, oficinas, templos e instituições de caridade, em
serviço ativo de socorro a doente e a menos favorecidos da sorte, encarnados e
desencarnados.
Compelido a seguir-lhe o ritmo de serviço, Sérgio estava exausto, ao fim de duas
semanas.
Humilhado, vencido, dirigiu-se, em pranto, ao benfeitor, penitenciando-se:
- Ah! Meu nobre Ricardo, quantas exigências no trabalho espiritual! A experiência é para
mim muito dolorosa! Tente paciência, não suporto mais!...
Ricardo, porém, não sorriu, e considerou em tom grave:
- Não desejavas, em caráter prematuro, as tarefas reservadas ao homem, depois da morte
física? Não aproveitaste uma gripe benigna para facilitar o desequilíbrio orgânico? Na terra
maternal, erguias-te pela manhã, tomava o teu café reconfortador, trabalhavas algumas
horas no curso do dia, entregavas-te ao gosto das refeições bem-feitas, distraias o coração
na palestra afetuosa dos familiares queridos, recebias a cooperação de desvelados
benfeitores encarnados e desencarnados e dormias na calma do sono e nos
deslumbramentos do sonho... Todavia, não obstante a sinceridade de tua fé considerava a
existência um martírio execrável. Traduzias a benção do Eterno por incomodo ao coração.
Presentemente, porem, observa que os teus serviços terrenos eram bem suaves e
constituíam verdadeiro paraíso em comparação com os deveres de hoje.
Mafra contemplava-o de olhar ansioso, aguardando a dispensa de obrigações que lhe
pareciam tão duro. Ma, muito longe de programar o repouso, Ricardo fixou, nele os olhos
lúcidos e concluiu:
- Agora, Sérgio, não te posso desobrigar, porque meus avisos à tua alma foram reiterados
e veementes; e, não podendo olvidar meus deveres, também não te posso abandonar ao léu,
no caminho de sombras. É, portanto, de teu interesse que venhas comigo ao trabalho
áspero, para que não te suceda alguma coisa pior.
19 - ENTUSIASMO E RESPONSABILIDADE
Nos primeiros tempos da nova fé, Aureliano Correia não regateava as manifestações
entusiásticas.
- Sou espírita – exclamava convicto -, pertenço às fileiras dos discípulos sinceros da Nova
Revelação. Tenho a minha tarefa a cumprir.
O rapaz vivia embriagado de júbilio. Comparecia pontualmente às reuniões doutrinarias,
comentava ardoroso, os ensinamentos ouvidos. Ex punha projetos grandiosos, relativamente ao
futuro. Instituiria núcleos de fé viva, disseminaria fundações de amor fraternal. Afirmava, sem
medo, a nova atitude e prometia realizações seguras e generosas.
Não se contentava em estabelecer compromissos com a fé. Aureliano ia mais longe. Referiase
ao Espiritismo na política, na filosofia, nas artes, nas ciências. Trabalharia sem cessar, dizia
ele, e criaria diretrizes novas e edificações mais sólidas para o espírito humano.
Continuava atravessando a região do entusiasmo fácil, quando, certa noite, no parcial
desprendimento do sono, foi conduzido à presença de um de seus orientadores espirituais.
O companheiro exultava.
A entidade amiga falou carinhosamente, depois de abraçá-lo:
- Aureliano, que o Senhor te abençoe as esperanças de redenção. Teu caminho cobre-se,
agora de júbilos santos. Guardas, meu amigo, a divina lâmpada no coração. A benção do Eterno
Pai segue tuas aspirações de progresso. Sê bendito e feliz, filho meu! Teu ideal de crente
fervoroso será uma roseira florida no jardim do Mestre Generoso e o perfume de fé em teu
espírito idealista.
O rapaz chorava de contentamento e emoção.
E o sábio mentor prosseguiu calmo e bondoso:
- Atingirás a praia sublime da paz consoladora e, seguro na terra firme das convicções sadias,
observarás, espiritualmente, de longe, o oceano revolto do mundo, embora continues em serviço
de abnegação ativa a beneficio dos nossos irmãos encarnados, aflitos e vacilantes, na grande
jornada, através das ondas vorazes da ilusão. Receberás consolações celestes, ao contacto dos
amigos espirituais que te esperam, deste lado da vida. Conhecerás a profunda alegria da luz
eterna, no tabernáculo da alma crente. As dificuldades da terra surgirão aos teus olhos, na
qualidade de benfeitoras. No seio das lutas mais forte, sentirão o beijo caricioso da amizade dos
Servos Glorificados de Deus, invisíveis no mundo aos olhos mortais. Cada dia será uma taça de
oportunidades benditas ao teu coração e cada noite um parque de claridades compassivas, onde
meditarás nas Dádivas Celestes, entre a alegria e o reconhecimento. Alcançarás o bem-estar de
quem encontrou o amor universal, a compreensão de todos os seres e o respeito a todas as
coisas e, venturoso, estarás a caminho de esferas iluminadas, a distancia dos círculos inferiores
da carne, seguindo com Jesus, amparado por seu divino amor...
Enquanto a entidade fazia súbita parada, sentia-se Aureliano o mais feliz dos homens. Seria o
aprendiz superior, discípulo dileto do Cristo. Não cabia em si de satisfação. O orientador
devotado, porém, quebrou a pausa longa e tornou a falar:
- Mas, como sabes Aureliano, não existe concessão sem responsabilidade. Alguma coisa dará
de ti mesmo, para receberes tantas bênçãos. Para que te integres na posse definitiva de
semelhante tesouro, é necessário que abandones a caverna dos instintos inferiores e que sejas
um homem renovado em Cristo-Jesus. Não poderás perder o Mestre de vista, procurando seguirlhe
os passos, desde a manjedoura de submissão a Deus até o cuspo irônico povo de
Jerusalém, a fim de que o encontres no Calvário, a caminho da ressurreição. È indispensável
seguir Jesus e
Alcança-lo, no monte do testemunho, diante dos homens e da suprema obediência ao Eterno
Pai. Serás bafejado pelas harmonias celestes; entretanto, não te poderás esquivar aos sacrifícios
terrestres. Receberás a tranqüilidade que excede a compreensão das criaturas; todavia, para
que isto se verifique, é indispensável te arrependas do passado delituoso e creias na tua sublime
oportunidade de hoje, negando-te a alimentar o “homem velho” que ainda te domina o coração, e
suportando a luminosa cruz de teus serviços de cada dia, acompanhando Aquele que nos dirige
os destinos desde o principio. Ganharás a luz, Aureliano, mas é imprescindível que expulses as
sombras que te rodeiam. Atingirás a esfera superior; no entanto, é preciso que te retires das
zonas mais baixas dos vastos caminhos da vida. Não temas, porém, meu filho! Jesus não
desampara a boa-vontade dos homens!
Nesse instante, Aureliano acordou muito pálido. Aquela advertência calara-lhe fundo. Sentiase
desapontado. Estimava o entusiasmo, as vibrações festivas, os rasgos da palavra, mas não
se lembrara ainda do campo da responsabilidade e do serviço inevitáveis. Queria uma doutrina
para se proteger, mas nunca pensara na fé que exige trabalho, abnegação e testemunho no bem
ativo. Estava, portanto, decepcionado. Aureliano, tão expansivo nas afirmações fáceis, levantouse
da cama, profundamente amuado, arredio, nervoso. Sua mente recuava, a passos largos, nas
promessas feitas.
Mal não saíra de casa, a caminho do centro urbano, eis que quatro companheiros humildes lhe
surgem à frente, solicitando ansiosos:
- Aureliano amigo, fundamos ontem um núcleo modesto e contamos com você! Sentimo-nos
cercados de necessidades espirituais e precisamos cooperadores de sua envergadura. Venha
hoje à noite, não falte. Esperamos que aceite o nosso convite e que não desampare a nossa
confiança!
O interpelado, porém muito diferente da véspera, sem qualquer disposição ao serviço sério, e
positivamente em fuga ante a idéia de responsabilidade, respondeu com secura:
- Não, meus amigos, não posso dizer que sou espírita.
E, depois de uma pausa, ante o espanto dos companheiros, concluiu, como muita gente:
- Tenho muita vontade de ser.
20 - A SÚPLICA FINAL
Convencido de que o Mestre distribui as graças, de acordo com as solicitações dos
discípulos, o crente fervoroso e sincero, vivamente interessado na perfeita integração com o
Senhor, pediu-lhe dinheiro, alegando a necessidade de recursos materiais para atender-lhe
aos desígnios.
Ouvindo-lhe a rogativa, o Salvador mobilizou emissários para satisfazê-lo.
Em breve, a fortuna vinha ao encontro do aprendiz, enchendo-lhe os cofres e prestigiandolhe
a casa.
Multiplicaram-se-lhe, porém, as preocupações e surgiram desgostos graves. Longe de
elevar-se à espiritualidade superior, passava dias e noites vigiando a entrada e a saída do
ouro, assinalando os depósitos crescentes.
Distraído das obrigações mais humildes, perdeu a companhia da esposa e dos filhos,
desgarrados do lar pelas fascinações da vida fácil.
No fundo, entretanto, conservava a fé inicial e, quando lhe transbordaram as arcas,
reconheceu a dificuldade para alçar-se ao Cristo.
Prosternou-se em oração e implorou a Jesus lhe dessa autoridade, assegurando que
aguardava semelhante vantagem a fim de segui-lo.
O Senhor acolheu-lhe a suplica e expediu mensageiros que lhe garantissem a desejada
aquisição.
Quase de imediato, o discípulo foi guinado a nobre posição administrativa; todavia sem
bases na experiência, em pouco tempo se viu odiando e incompreendido incapaz de suportar
calunia e critica observações descabidas e advertências mordazes de subalternos e
superiores. Movimentava vultosos patrimônios materiais; contudo, não correspondia aos
imperativos do espírito.
Aturdido e desencantado, tornou à oração e implorou a Jesus a concessão de dons
maravilhosos, afiançando que somente assim poderia servi-lo.
O Divino Doador anotou-lhe a solicitação e recomendou aos assessores lhe confiasse o
poder de curar.
O aprendiz recebeu a dádiva e entregou-se ao trabalho.
Dentro de alguns dias, enormes fileiras de necessitados batiam-lhe à porta. A
popularidade absorveu-lhe as horas. Escasseou-lhe o tempo, até para alimentar-se. Sem
preparação para o delicado serviço, no decurso de alguns meses declarou-se em falência.
Faltavam-lhe forças para o ministério. Em face da multidão dos sofredores e dos ignorantes,
os familiares que lhe restavam no lar abandonaram o campo domestico. E o pobre, por sua
vez, não soube tratar com os desesperados da sorte. Quando não podia atender alguém,
depois de haver socorrido dezenas de aflitos, sentia-se crivado de acusações que não sabia
acolher com serenidade. Submeteu-se, desse modo, ao cansaço absoluto. Descontrolou-se.
Renegou o dom que o Céu lhe emprestara.
No entanto, porque a fé ainda lhe vibrava no intimo, regressou à petição, com sinceridade,
e renovou a súplica.
Em pranto, implorou a pobreza e a obscuridade. Desejava desfazer-se de todos os laços
com a posse terrestre. Seria trabalhador anônimo. Ligar-se-ia à Providencia, através do
esforço desconhecido.
Registrando-lhe os rogos, o Mestre enviou prepostos adequados à situação. O discípulo
foi conduzido à penúria. Esgotaram-se-lhe os recursos. A enfermidade visitou-o com
insistência. Desacertaram-se-lhe os negócios. Fugiram amigos e apareceram credores.
Sozinho e desamparado, viu-se igualmente inapto para aquele gênero de provação.
Sarcasmos e zombarias choviam-lhe na estrada. Foi apontado à conta de imprevidente e
relapso, sem o governo da própria existência. Debalde tentou colaborar em obras edificantes.
Mesmo ai encontrou gargalhadas por parte de alguns companheiros. Ninguém confiava nele.
Aos olhos alheios era relaxado e dissipador. Verificou o misero que a impaciência e a revolta
passaram a freqüentar-lhe o coração. Surpreendia-se, por vezes, irado e infeliz, ensaiando
reações.
Socorrido, porém, pela sublime claridade da fé, proclamou a incapacidade de suportar a
pobreza absoluta e, genuflexo, implorou ao Senhor:
- Mestre Amado, sei que me abres a porta sempre que bato confiante, mas, em verdade,
ignoro a essência de meus próprios desejos. Reconheço agora que dispensas a riqueza, o
poder e a gloria de teus dons, conforme os méritos e as necessidades dos aprendizes. Não
dás a escassez externa àquele que ainda não sabe utiliza-la para o bem, nem confias tuas
dádivas aos que não sabem como transporta-las, entre os homens ingratos e cruéis.
Conheces a posição de cada um de nos e medes, com sabedoria, a extensão de nossas
possibilidades. Não conferes o beneficio da lagrima ao coração endurecido, como não deixas
o cetro da direção, por muito tempo, nas mãos levianas ou inábeis; não concedes a pobreza
absoluta a quem não sabe aproveitar o sofrimento, como não permites que a riqueza se
demore na moradia dos insensatos!...
Emudece, Senhor, os pedidos de minha ignorância, não permitam que eu te suplique
situações que desconheço... Modifica minha vontade, para que meus desejos concordem
com os teus desígnios... Até hoje tenho sido cego! Não me negues tua misericórdia!... Faze
que eu veja!...
O Mestre ouviu-lhe a rogativa, mas, dessa vez, não mandou emissários para a
colaboração indireta. Veio, Ele mesmo, ao santuário interior do aprendiz.
O discípulo, em pranto, sentiu então que alguém lhe falava do centro dalma. Não era uma
voz semelhante às vozes que escutara no mundo...
Era um sopro divino, nascido da misteriosa cripta do coração, renovando-lhe todo o ser.
Extasiado e feliz, reconheceu a presença do Senhor que lhe falou á consciência desperta:
- Doravante, permanecerá em mim, como permaneço em ti. Estaremos unidos para
sempre!...
21 - O EMPRÉSTIMO
Rosalino Perneta alcançara os círculos da morte, em falência integral.
Extrema bancarrota.
Perdera todas as ricas possibilidades que o Senhor lhe colocara nas mãos.
Estava sozinho, sob o látego do remorso e do sofrimento.
Por anos longos viveu assim o desventurado, chorando os dias perdidos e implorando a
concessão de oportunidades novas.
Os lustros sucediam-se uns aos outros, quando Sizínio, velho amigo espiritual, veio ao
encontro dele, fazendo-se-lhe visível.
Rosalino caiu-lhe aos pés, em soluços.
- Meu abençoado amigo – clamou em lagrimas -, por que tamanha desdita? Vivo num
inferno de sombras e padecimentos incríveis. Onde está Deus que se não compadece de
minha miserabilidade?
Sizínio contemplou-o, paternalmente, e observou:
- Não, Perneta. Não te lastimes de semelhante modo. Antes de tudo, recorda os próprios
erro e lava o coração nas águas do arrependimento. Não atendeste aos deveres humanos,
não cultivaste o campo da espiritualidade enobrecida, mergulhaste a alma em verdadeiro
banho de lodo. Que fazer, agora, senão suportar a reparação com paciência? Tem confiança
e solidifica os bons propósitos.
O infeliz tentou enxugar o pranto copioso e, depois de outras considerações, alusivas ao
passado, interrompidas pelas advertências e frases consoladoras do amigo espiritual,
Rosalino terminou:
- Ah! Se eu pudesse voltar!... se eu pudesse renascer!...
E, fixando no benfeitor o olhar dorido, acentuava:
- Sizínio, meu grande irmão, não poderias obter-me a oportunidade nova? Auxilia-me, por
piedade...
Intensamente comovido, o interlocutor prometeu ajuda-lo no que estivesse ao seu alcance.
E, com efeito, em breve Sizínio regressou à sombria furna, trazendo esperanças novas.
Rosalino recebeu-o, radiante.
- Perneta – disse o amigo generoso -, sabes que o aval é ato grave para quem lhe assume
a responsabilidade.
- Sei, sim – respondeu o misero.
E o benfeitor prosseguiu:
- Não ignoras também que, por enquanto, não tens direito a reclamação alguma.
- Reconheço.
- Desconsideraste as oportunidades divinas, menosprezaste a família, o trabalho, o corpo
físico...
- Tudo é verdade – gemeu o infeliz.
- Pois bem – continuou a entidade amiga -, não encontrei nenhuma expressão valiosa em
tua existência ultima, na qual me pudesse basear, a fim de pedir alguma coisa em teu nome.
Em razão disso, não somente reforcei tuas suplicas, como também solicitei um empréstimo
para a tua experiência nova. Há na terra grande movimento de restauração do Evangelho,
renovando esperança e redimindo corações. Terás nele humilde e valiosa posição de
trabalhador e ensinarás, no plano dos encarnados o caminho justo aos necessitados da
esfera visível e invisível. Entretanto, meu caro, o serviço não será fácil, porque não se
resumirá a questão de palavras. Serás constrangido a viver o ensinamento em ti mesmo, não
atenderas aos caprichos próprios, não procuraras o contentamento da ilusão, mas sim,
atenderas a tudo o que representa interesse de Jesus, no circulo das criaturas. Deves muito
aos homens e encontraras no empréstimo a que me refiro os recursos indispensáveis ao
pagamento.
Rosalino ouvia feliz.
- Recomendo, com insistência – acentuou Sizínio, criterioso -, não esqueças a tua
condição de devedor. O lar, o carinho dos teus, a benção materna, a saúde física, o
ambiente de trabalho, o pão cotidiano, o campo de testemunho cristão e todas as demais
possibilidades constituirão o precioso deposito do Senhor em caráter experimental às tuas
mãos, porque não dispões ainda do justo merecimento. Recorda que vais movimentar um
patrimônio que te não pertence por direito e que receberás, por bondade de Jesus,
semelhante concessão a titulo precário. Vê como te comportas!...
Prometeu Rosalino fiel observância ao compromisso.
Fez cálculos, expôs o que pensava do futuro e até marcou o tempo de materializar no
mundo as promessas que formulava entusiasta, com o grande otimismo do devedor, à fonte
de recursos novos.
Sizínio mobilizou as medidas necessárias e o amigo teve a felicidade de renascer junto de
pais cristãos que, desde o berço, lhe forneceram sublimes noticias do Cristo.
Perneta, no entanto, nas primeiras recapitulações, demonstrou a maior teimosia e a antiga
má-vontade.
Não valiam lições de Jesus no Evangelho, conselhos paternais e sugestões superiores e
indiretas de Sizínio que o acompanhava, solicito, do plano espiritual. Apesar de advertido,
assistido e guiado, Perneta não queria saber de problemas fundamentais do destino.
Apossara-se novamente da vida terrestre, como o fauno sequioso de prazer na floresta
das emoções planetárias.
Convidado ao serviço de espiritualização, não respondeu à chamada, alegando que os
pais cometiam a loucura de se devotarem ao bem dos outros. Dizia-se incompreendido,
inadaptado e, se alguém o compelia a raciocínios mais lógicos, reportava-se à escassez de
tempo e à falta de oportunidade.
Voltou vagarosamente aos mesmos erros criminosos de outra época. Casou-se, foi
esposo e pai, mas nunca se rendeu, de fato, às obrigações do lar, junto da esposa e dos
filhos.
Borboleteava à procura de sensações que lhe saciassem a vaidade.
Quando alguma voz amiga se referia à espiritualidade, esquivava-se ao assunto,
apressado. Não pretendia cogitar de assuntos referentes à religião, à morte, ao “outro
mundo” – dizia, enfático e orgulhoso.
Sizínio, vigilante, desvelara-se no sentido de chamá-lo aos compromissos assumidos; no
entanto, tão grandes faltas perpetrara Rosalino, que, ao atingir ele os quarenta e cinco anos,
outros amigos espirituais da família que o recebera, generosamente, começaram a reclamar
providencias ativas. Em vão se movimentou o avalista, no propósito de acordá-lo para as
realidades essenciais. Perneta, porém, não respondia satisfatoriamente. Declarava-se muito
bem, desenvolvendo embora a longa serie de disparates.
A experiência, todavia, chegava ao fim.
Em virtude da rebeldia e da ingratidão de Rosalino, os superiores espirituais intimaram
Sizínio a retirar o empréstimo concedido. Não obstante a amargura, o velho amigo foi
obrigado a obedecer.
O avalista iniciou o trabalho, alimentando, ainda, a esperança de que o companheiro
despertasse.
Operou devagarinho, ansioso de observar-lhe alguma reação benéfica, mas o
desventurado não sabia revoltar-se e ferir.
Primeiramente, a esposa de Perneta foi chamada à vida espiritual; em seguida, os
filhinhos separaram-se de sua companhia. A casa em que se lhe situara o ninho domestico
foi a leilão paa pagamento de vultosas dividas. Perdeu, mais tarde, o emprego e a
consideração dos amigos. Os bens emprestados foram sendo recolhidos por Sizínio
lentamente.
Rosalino, porém, não mostrava qualquer sinal de renovação.
Foi irredutível na maldade, na ingratidão, na blasfêmia.
Por fim, o avalista retirou-lhe a ultima concessão, que era a saúde física.
No leito humilde de hospital, reconsiderou Perneta a situação, refletiu com mais clareza
nas bênçãos de Deus e meditou na eternidade, desejando voltar no tempo, mas ... era tarde.
Não valeram rogativas e prantos.
Em manhã muito fria, absolutamente isolado de todos, apartou-se do corpo de carne,
premido pelas exigências da morte.
Recomeçou para ele, então, o angustioso caminho.
Recordou o empréstimo, a dedicação do benfeitor, os compromissos anteriores, a
bondade que o cercara em todos os instante, no transcurso de sua experiência na terra.
Implorou a presença da esposa, nas densas trevas de que se rodeava, mas o silencio
inalterável era a única resposta às suas suplicas. Não obstante envergonhado, rogou a visita
de Sizínio, mas o benfeitor, agora, parecia inacessível.
Desdobraram-se muitos anos, quando, um dia, o amigo dedicado se fez visível,
novamente.
- Sizínio! Sizínio! – gritou Perneta, em lagrimas dolorosas – ajuda-me! Compadece-te de
mim! Estende-me as tuas mãos, nobre amigo! Perdoa-me e atende-me!
E, antes que o velho companheiro respondesse, desfiou o rosário das justificativas, das
reclamações, dos remorsos e desculpas.
Quando terminou, em soluços, o protetor fixou nele o olhar muito lúcido e asseverou:
Por enquanto, Rosalino, ainda não paguei todas as conseqüências do empréstimo que te
foi concedido e do qual fui espontaneamente avalista. Tuas lagrimas, agora, não me
sensibilizam tão fortemente o coração.
Ofereci-te o suor que salva, mas preferiste o pranto que lamenta. Pede, pois, ao Senhor
que te renove a esperança, porque, para voltar ao empréstimo contraído, é muito tarde!...
22 - O SEMEADOR INCOMPLETO
Conta-se que existiu um cristão inteligente e sincero, de convicções forte e maneiras
francas, que, onde estivesse, atento às letras evangélicas, não deixava de semear a palavra
do Senhor.
Excelente conversador, ocupava a tribuna com êxito invariável. As imagens felizes fluíamlhe
dos lábios quais arabescos maravilhosos de som. Ensinava sempre, conduzia com
lógica, aconselhava com acerto, espalhava tesouros verbais. No entanto, reconhecia-se
incompreendido de toda gente.
Em verdade, no fundo, exaltava o amor; todavia, acima de tudo, queria ser amado.
Salientava os benefícios da cooperação; contudo, estimava a colaboração alheia, sentindose
diminuído quando as situações lhe reclamavam concurso fraterno. Sorria, contente, ao
receber o titulo de orientador; entretanto, dificilmente sabia utilizar o titulo de irmão.
Habituara-se, por isso, ao patriarcado absorvente criado pelos homens na imitação do
patriarcado libertador de Deus.
Com a passagem do tempo, todavia, suas palavras perderam o brilho. Faltava-lhe a
claridade interior que somente a integração com Jesus pode proporcionar.
Servo caprichoso e rígido, insulou-se no estudo das letras sagradas e buscou situar-se
nos símbolos da Boa Nova, descobrindo para ele mesmo a posição do semeador
incompreendido.
As estações correram sucessivas e a luz de cada dia encontrou-o sempre sozinho e
distante...
Dizia-se enfastiado das criaturas. Semeara entre elas, afirmava triste, as melhores noções
da vida, recebendo, em troca, a ingratidão e o abandono. Sentia-se ausente de sua época,
desajustado entre os companheiros e descrente do mundo. E porque não desejava contrariar
a si mesmo, retirara-se das atividades sociais, a fim de aguardar a morte.
Efetivamente, o anjo libertador, decorrido algum tempo, veio subtraí-lo ao corpo físico.
Estranho, agora, durante muitos anos. Mantinha-se apagada a lâmpada de seu coração.
Não possuía suficiente luz para identificar os caminhos novos ou para ser visto pelos
emissários celestes.
O inteligente instrutor, por fim, valeu-se da prece. Afinal, fora sincero em seus pontos de
vista e leal a si próprio. E tanto movimentou os recursos da oração que o Senhor, ouvindolhe
as suplicas bem urdidas, desceu em pessoa aos círculos penumbrosos.
Sentindo-se agraciado, o infeliz alinhou frases preciosas que Jesus anotava em silencio.
Depois de longa exposição verbal do aprendiz, perguntou o Mestre, amável:
- Que missão desempenhaste entre os homens?
O interpelado fixou o gesto de quem sofre o golpe da injustiça e esclareceu:
- Senhor, minha tarefa foi semelhante à daquele semeador de tua parábola. Gastei varias
dezenas de anos, espalhando tuas lições na Terra. No entanto, não fui bem-sucedido no
ministério. As sementes que espargi a mancheias sempre caíram em terra sáfara. Quando
não eram eliminadas pelas pedras do orgulho, apareciam monstros da vaidade, destruindoas,
surgiam espinhos da insensatez sufocando-as, crescia o lodo do mal, anulando-me o
serviço. Nunca fugi ao esforço de oferecer teus ensinamentos com abundância. Atirei-os aos
quatro cantos do mundo, através da tribuna privada ou da praça livre. Todavia, meu salário
tem sido o pessimismo e a derrota...
Jesus fitava-o, condoído. E porque os lábios divinos nada respondessem, o aprendiz
acentuou:
- Portanto, é imperioso reconhecer que te observei as advertências... Fui sincero contigo e
fiel a mim mesmo...
Verificando-se novo intervalo, disse o Senhor com imperturbável serenidade:
- Se atiraste tantas semente a esmo, que fazias do solo? Acreditas que o Supremo Criador
conferiu eternidade ao pântano e ao espinheiro? Que dizer do lavrador que planta
desordenadamente, que não retira as pedras do campo, nem socorre o brejo infeliz? É fácil
espalhar sementes porque os principais sublimes da vida procedem originariamente da
Providencia Divina. A preparação do solo, porém, exige cooperação direta do servo disposto
a contribuir com o próprio suor. Que fizeste em favor dos corações que converteste em terra
de tua semeadura? Esperavas, acaso que o logo lodacento te procurasse as mãos para ser
drenado, que as pedras te rogassem remoção, que os carrascais te pedissem corrigenda?
Permaneceria a sementeira fora do plano educativo estabelecido pelo Pai Eterno para o
Universo inteiro?
Ante nova pausa que se fizera, o crente, desapontado, objetou:
- Contudo, tua parábola não se refere aos nossos deveres para com o solo...
- Oh! – tornou Jesus, complacente – estará o mestre obrigado a resolver os problemas dos
discípulos? Não me reportei a Vinha do Mundo, à charrua do esforço, ao trigo da verdade e
ao joio da mentira? Não expliquei que o maior no Reino dos Céus será sempre aquele que
se transformou em servo de todos? Não comentei, muitas vezes, as necessidades do
serviço?
O ex-instrutor silenciou em pranto convulso.
O Senhor, todavia, afagou-lhe pacientemente a fronte e recomendou:
- Volta, meu amigo, ao campo do trabalho terrestre e não te esqueças do solo, antes de
semear. Cada coração respira em clima diferente. Enquanto muitos permanecem na zona
fria da ignorância outros se demoram na esfera tórrida das paixões desvairadas. Volta e vive
com eles, amparando a cada um, segundo as suas necessidades. Aduba a sementeira do
bem, de conformidade com as exigências de cada região. Esse ministério abençoado
reclama renuncia e sacrifício. Atendendo aos outros, ajustarás a ti mesmo. Por enquanto, és
apenas o semeador incompleto. Espargiste as sementes, mas não consultaste as
necessidade de chão. Cada gleba tem as suas dificuldades, os seus problemas e percalços
diversos. Vai e, antes de tudo, distribuí o adubo da fraternidade e do entendimento.
Nesse instante, o ex-pregador da verdade sentiu-se impelido por vento forte. A lei do
renascimento arrebatava-o às esferas mais baixas, onde, novamente internado na carne,
trabalharia, não para ser compreendido, mas para compreender.
23 - GRANDE CABEÇA
O Dr. Abelardo Tourinho era, indiscutivelmente, verdadeira águia de inteligência.
Advogado de renome, não conhecia derrotas. Sua palavra sugestiva, nos grandes
processos, tocava-se de maravilhosa expressão de magnetismo pessoal. Seus pareceres
denunciavam apurada cultura.
Qual cientista isolado no laboratório para descobrir uma combinação química, Abelardo se
mantinha, horas e horas, no gabinete particular, surpreendendo as colisões das leis humanas
entre si.
Não obstante o talento privilegiado, caracterizava-se, contudo, por traço lamentável. Não
vacilava na defesa do mal, diante do dinheiro. Se o cliente prometia pagamento farto, o
causídico torturava decretos, ladeava artigos, forçava interpretações e acabava em triunfo
espetacular.
Chamavam-lhe “grande cabeça” nos círculos de convivência comum.
Temiam-no os colegas de carreira, que lhe não regateavam respeito e consideração.
Penetrando o “fórum”, provocava movimentos de singular interesse. Retraiam-se os
companheiros, enquanto os serventuários se atropelavam a fim de atendê-lo no que
desejasse.
O Doutor Abelardo era sempre requisitado a serviços inadiáveis, em razão da nomeada
fulgurante. Devia ser ouvido antes dos outros.
Muita vez, foi convidado a atuar, em posição destacada, nas esferas políticoadministrativas;
entretanto, esquivava-se, maneiroso. Que representavam as singelas
gratificações dum deputado, em confronto com os honorários que lhe cabiam? Verdadeiras
bagatelas. Seus clientes escorcháveis eram sempre numerosos. Sua banca era freqüentada
por avarentos transformados em sanguessugas do povo, por negociantes inescrupulosos ou
por criminosos da vida econômica, detentores de importante ficha bancaria.
Abelardo nunca foi visto lutando em causa humilde, defendendo os fracos contra os
poderosos, amparando infortunados contra os favorecidos da sorte.
Afirmavam não se interessar em questões pequenas.
- Grande cabeça! – asseveravam todos os conhecidos, sem restrições.
Alguém havia, porem, que acompanhava o grande interprete da lei, sem elogios
precipitados.
Era sua mãe, nobre velhinha cristã, que o alertava, de quando em quando, com
sinceridade e amor.
- Abelardo, meu filho – costumava dizer-lhe, prudentemente -, não te descuides na missão
do Direito. Não admitas que a idéia de ganho te avassale as cogitações. Creio que a tarefa
da justiça terrestre é muito delicada, alem de profundamente complexa. Ser advogado,
quanto ser juiz é difícil ministério da consciência. Por vezes, observo-te as inquietações na
defesa dos cliente ricos e guardo apreensões justas. Não te impressiones pelo dinheiro, meu
filho! Repara, sobretudo, o dever cristão e o bem a praticar. Sinto falta dos humildes, em
derredor de teu nome. Ouço os aplausos de teus colegas e conheço a estima que desfrutas,
no seio das classes abastadas, mas ainda não vi, em teu circulo, os amigos apagados de
que Jesus se cercava sempre. Nunca pensaste, Abelardo, que o Mestre Divino foi advogado
da mulher infeliz e que, na própria cruz, foi ardoroso defensor dum ladrão arrependido? Creio
que o teu apostolado é também santo...
O eminente homem da legalidade meneava a cabeça, em sinal de desacordo, e respondia:
- Mãezinha, os tempos são outros. Devo preservar as conquistas efetuadas. Não posso,
por isso, satisfazer-lhe as sugestões. Compreende a senhora que o advogado de renome
necessita cliente à altura. Alias, não desprezo os mais fracos. Tenho meu gabinete vasto,
onde dou serviço a companheiros iniciantes, junto aos quais os mesmos favorecidos do
campo social encontram os recursos que reclamam...
- Oh! Meu filho – retrucava a senhora Tourinho, afetuosa -, estimaria tanto ver-te a
sementeira evangélica!...
O advogado interceptava-lhe as observações, sentenciando:
- A senhora, porém, necessita compreender que não sou ministro religioso. Não devo ligarme
a preceituação estranha ao Direito. E é tão escasso o tempo para a leitura e analise dos
códigos que me não sobra ensejo para estudos do Evangelho. Ao demais – e fazia um gesto
irônico -, que seria de meus filhos e de mim mesmo se apenas me rodeasse de pobretões?
Seria o fim da carreira e a bancarrota geral.
A genitora discutia, amorosa, fazendo-lhe sentir a beleza dos ensinamentos cristãos, mas
Abelardo, que se habituara aos conceitos elogiosos de toda gente, não ser curvava às
advertências maternas, conservando mordaz sorriso ao canto da boca.
Se ele fosse amigo sincero dos afortunados da vida, personificando um conselheiro
caridoso, nenhum delito lhe assinalaria a atitude individual; no entanto, o causídico famoso
abeirava-se dos abastados, explorando-lhes as paixões e agravando-lhes o desequilíbrio
facial, anestesiando a consciência de qualquer modo. Iludira-se com a opinião publica que o
considerava “grande cabeça” e colocou todas as possibilidades de sua vigorosa inteligência
a serviço das aquisições menos dignas.
A experiência terrestre, contudo, foi passando, devagar, como quem não sentia pressa em
revelar a eternidade da vida infinita.
A Senhora Tourinho regressou à espiritualidade, muito antes do filho, persistindo,
entretanto, na mesma dedicação, inspirando-o e ajudando-o, através do pensamento.
Abelardo, todavia, jamais cedeu. Sentia-se a suprema cabeça em seu circulo, com a
ultima palavra nos assuntos legais.
E foi assim que a morte o recolheu, envolvido em extensa rede de compromissos.
Muito tarde, compreendeu o antigo lidador do Direito as tortuosidades perigosas que
traçara para si mesmo.
Muito sofreu e chorou nos caminhos novos.
Não conseguia levanta-se, achava-se caído, na expressão literal.
Crescera-lhe a cabeça enormemente, subtraindo-lhe a posição de equilíbrio normal.
Colara-se à terra, entontecido e freqüentemente atormentado pela vitimas ignorante e
sofredoras.
A devotada mãezinha visitava-o, variadas vezes, administrando os socorros ao seu
alcance.
Os anos, no entanto, deslizavam rápidos, sem que a Senhora Tourinho lograsse
resultados animadores.
Prosseguia o penitente, na mesma situação de imobilidade, deformação e sofrimento.
Reparando, certa feita, a ineficácia de seus carinhos, trouxe um elevado orientador de
almas à paisagem escura.
Pretendia um parecer, a fim de reformar diretrizes de ação.
O prestimoso amigo examinou o paciente, registrou-lhe as pesadas vibrações mentais,
pensou, pensou e dirigiu-se à abnegada mãe, compadecido:
- Minha irmã, o nosso amigo padece de inchação da inteligência pelos crimes cometidos
com as armas intelectuais. Seus órgãos da idéia foram atacados pela hipertrofia de amorpróprio.
Ao que vejo, a única medida capaz de lhe apressar a cura é a hidrocefalia no corpo
terrestre.
A nobre genitora chorou amargurada, mas não havia remédio senão conformar-se.
E, daí a algum tempo, pela inesgotável bondade do Cristo, Abelardo Tourinho podia ser
identificado por amigos espirituais numa desventurada criança do mundo, colada a triste
carrinho de rodas, apresentando um crânio terrivelmente disforme, para curar os desvarios
da “grande cabeça”.
24 - PROTEÇÃO EDUCATIVA
No jardim da residência confortável da família Torres, palestravam duas entidades
espirituais.
Ezequiel, esclarecido mensageiro e amigo desvelado, viera observar os serviços de
Antonio junto àquele núcleo familiar, que os dois haviam tomado sob dupla guarda, em razão
dos elos afetivos que os reuniam entre si, desde muitos séculos.
- Como seguem os nossos tutelados? – inquiriu o emissário que vinha de plano superior –
compreendem agora a proteção divina? Com que esperança vivo refletindo na situação
deles! Sabe você que muito devo a Malvina e a João, em face das minhas duras tarefas no
pretérito... Tive a felicidade de adiantar-me na senda evolutiva; no entanto, não me seria
possível esquece-los.
O companheiro ouvia-lhe as expressões sem ocultar a profunda melancolia que lhe
transparecia no rosto.
Ezequiel, todavia, dando curso às emoções sublimes do momento, prosseguiu:
- Congreguei meus velhos amigos com os adversários de outra época e espero que,
transformados em pais e filhos no cadinho domestico, possam agora avançar no rumo da
paz que excele o humano entendimento. A gratidão não olvida os bens recebidos.
- É o que acontece igualmente entre nós ambos, meu caro – murmurou Antonio, comovido
-, não posso apagar da lembrança o debito que me vincula à sua generosidade...
Como se não desejasse receber agradecimentos diretos, Ezequiel modificou a rota da
conversação acrescentando:
- Malvina comporta-se bem na luta redentora?
O interpelado mostrou sinais de amargura no semblante abatido e respondeu:
- Não tem sabido enfrentar a facilidade e a abundancia. Vive aflita sem causa e insatisfeita
sem motivo.
- Com tantos recursos que lhe são conferidos? – interrogou o superior admirado.
- Infelizmente assim é.
- Há alguma enfermidade grave atormentando a família?
Esboçou Antonio significativo gesto e acentuou:
- Segundo sabemos, o corpo ocupado pela doente não pode acomodar-se com a saúde
perfeita; mas, no circulo de minhas possibilidades, esforço-me, quanto possível, para que
Malvina, João e os filhos estejam equilibrados. Nunca se levantam, cada manhã, sem que eu
os assista com elementos fluídicos de medicação, e desse modo, tenho tido o prazer de vêlos,
no trabalho comum que edifica sempre.
- É, porventura, insuficiente o salário que recebem?
- Quanto a isso – elucidou Antonio -, marcham na Terra em carro confortável e precioso. O
chefe da casa dirige um escritório com remuneração excelente. José e Oscar, os dois filhos
mais velhos, soa altos empregados de uma oficina em Todos os Santos; Hermenegildo e
Paulo, os dois menores, trabalham no centro urbano, com vencimento compensador.
- Sofrem alguma perseguição descabida?
- Desfrutam geral estima e, além disso, incumbo-me de auxilia-los diariamente, conforme
suas recomendações, colaborando, indiretamente, na solução de todos os problemas que os
interessam de perto.
- Possuem razão seria para desgostos íntimos?
Antonio sorriu e obtemperou:
- Não contam com motivos quaisquer para contrariedades fortes; entretanto, procuramnos.
Vivem nervosos e exasperados. O espírito materno é sempre a fonte de inspiração para
o santuário domestico, e a posição atual de Malvina, nesse sentido, é das mais deploráveis.
Tanto se queixou a nossa amiga que o marido e os filhos andam hoje contagiados do mesmo
ma. Afirmam-se desprotegidos, cansados, desiludidos da sorte. Não há ensinamento que os
esclareça, alegria que os alente ou remuneração que os satisfaça.
Ezequiel, preocupado, considerou, depois de longa pausa:
- Observarei pessoalmente.
Demandaram o interior, em atitude fraterna.
Era manhã e Dona Malvina, muito distante do governo do lar, mantinha-se em prosa
comprida com uma senhora da vizinhança.
- Dona Amélia – comentava, gesticulando -, a senhora está muito enganada quanto à
nossa situação. Meu esposo recebe ordenado miserável. Meus filhos não ganham para viver
com decência. Já não sei como solucionar os presente enigmas financeiros. Estamos
empenhados em armazéns e lojas. Ocasiões aparecem nas quais, francamente, não sei
como me comportar.
- É estranho – clamava a interlocutora -, porquanto sempre supus a sua casa em ótimas
condições.
- Eu? Nós? – tornava a protegida de Ezequiel – vivemos atolados em débitos pesados...
Ah! Minha amiga, minha amiga! Enquanto João se esgota, morro aos bocadinhos, entre
aflições de toda sorte. Somos muito infelizes!
Lamentações alongaram-se pelas horas a dentro.
E tão logo se despediu a vizinha, outra amiga apareceu, continuando Malvina no mesmo
diapasão:
- Andava saudosa de sua palestra, minha boa Teresa! As pessoas atormentadas e
sofredoras, assim como eu, necessitam ouvi-la.
- No entanto, Dona Malvina – objetava a amiga bondosa -, o seu aspecto é outro. Creio
encontra-la muito forte e tranqüila...
- Eu, minha filha – respondia a senhora Torres, tornando a voz comovedora e mais tremula
-, nunca sofri tanto, quanto agora... Não sei o que será de nós. Tudo está negro em nossos
caminhos. No serviço, o esforço de João não é apreciado na devida conta e meus
desventurados filhos se esfalfam inutilmente entre exigências indébitas dos administradores
e vãs promessas de melhoria. Até onde iremos com as nossas provações amargas? Já não
sei orar e tão grandes tem sido os nossos padecimentos que a fé me parece vazia, sem
expressão...
Daí a instantes, enquanto Malvina desfiava o longo rosário de lagrimas verbais, entra o
marido para o almoço, seguido pelos filhos, com alguns minutos de espaço.
A visitante, atordoada, sem mais delonga despediu-se e a residência dos Torres
converteu-se num purgatório de imprecações. O chefe da casa insurgia-se contra os
políticos, contra os acionistas da empresa a que se ligara, reclamava quanto ao pão malfeito
e condenava o guardanapo mal-posto, fazendo larga ostentação de autoridade, ao passo
que os filhos lhe copiavam os gestos, excedendo-se em afirmações leviana ou insensatas.
Dona Malvina, no centro daquele desvairado parlamento doméstico, enxugava os olhos
inchados de chorar, proclamando-se a mais infeliz das mulheres.
Por duas horas consecutivas, ali esteve Ezequiel, observando discussões e reclamações.
O grupo não encontrava um minuto sequer para conversar edificando.
Aquela meia dúzia de corações reunidos semelhava-se a um poço de águas
envenenadas, expelindo lodo pelas bordas.
Fundamente consternado, o benfeitor dirigiu-se a Antonio, com amarga inflexão:
- É lastimável identificar a atitude de nossos velhos amigos. Infelizmente, não sabem
receber o concurso da amizade reconhecida. Não dispõem de suficiente educação para
registra as manifestações de nossa ternura. A beneficio de todos, porem, ficarão a sós, por
algumas semanas...
Antes que o mentor concluísse, perguntou Antonio, espantado:
- Que diz? Deixaremos Torres sem assistência? Que será dessa pobre família?
- Não aplicaremos remédio violento – elucidou Ezequiel, convencido -; a proteção aos
companheiros na carne é análoga à que se dá às plantas. De quando em quando, é preciso
retirar, mudar ou renovar. Malvina, João e os filhos permanecerão sem escoras, durante
trinta dias; você virá comigo para descansar, em férias, e verificaremos o proveito de
semelhante medida. Creio que nesse pouco tempo fará Malvina intensivo curso de
entendimento, serviço, gratidão e prece. Nossa amiga tem recebido até hoje a proteção
confortadora, mas, doravante, necessita receber a proteção educativa.
O programa traçado foi cumprido integralmente.
A breve trecho, a casa dos Torres experimentou enorme alteração.
Tão logo se ausentou Antonio, o silencioso amigo oculto, o desespero ali atingiu a
culminância.
Os filhos do casal, no dia imediato ao do afastamento dele, se empenharam em luta
corporal, no repasto da tarde, e Oscar teve o braço direito quebrado, recorrendo à
intervenção medica. No terceiro dia, Hermenegildo foi dispensado do trabalho, por
insubordinação. No quarto, José foi conduzido à Santa Casa em vista de inesperada
apendicite com supuração. No quinto dia, o chefe da família foi atropelado por automóvel, ao
sair do escritório, sendo transportado ao Pronto-Socorro e, no sexto dia, Paulo era trazido
para casa, em carro da Assistência Municipal, em razão de queda espetacular no serviço.
Dona Malvina não encontrou mais tempo para se queixar do mundo e da sorte, e, findos
os trinta dias do programa, quanto Ezequiel e Antônio lhe penetraram, de novo, o domicilio,
encontraram-na em oração, profundamente transformada.
25 - SIMEÃO E O MENINO
Dizem que Simeão, o velho Simeão, homem justo e temente a Deus, mencionado no Evangelho
de Lucas, após saudar Jesus criança, no templo de Jerusalém, conservou-o nos braços
acolhedores de velho, a distância de José e Maria, e dirigiu-lhe a palavra, com discreta emoção:
-Celeste Menino – perguntou o patriarca -, porque preferiste a palha humilde da Manjedoura? Já
que vens representar os interesses do Eterno Senhor na Terra, como não vestiste a púrpura
imperial? Como não nasceste ao lado de Augusto, o divino, para defender o flagelado povo de
Israel? Longe dos senhores romanos, como advogarás a causa dos humildes e dos justos?
Porque não vieste ao pé daqueles que vestem a toga dos magistrados? Então, podereis ombrear
com os patrícios ilustres, movimentar-te-ias entre legionários e tribunos, gladiadores e
pretorianos, atendendo-nos à libertação... Porque não chegaste, como Moisés, valendo-se do
prestígio da casa do faraó? Quem te preparará, Embaixador Eterno, para o ministério santo?
Que será de ti, sem lugar no Sinédrio? Samuel mobilizou a força contra os filisteus, preservandonos
a superioridade: Saul guerreou até a morte, por manter-nos a dominação; David estimava o
fausto do poder: Salomão, prestigiado por casamento de significação política, viveu para
administrar os bens enormes que lhe cabiam no mundo... Mas... tu? Não te ligaste aos príncipes,
nem aos juízes, nem aos sacerdotes... Não encontrarias outro lugar, além do estábulo singelo?...
Jesus menino escutou-o, mostrou-lhe sublime sorriso, mas o ancião, tomado de angústia,
contemplou-o, mais detidamente, e continuou:
- Onde representarás os interesses do Supremo Senhor? Sentar-te-ás entre os poderosos?
Escreverás novos livros da sabedoria? Improvisará discursos que obscureçam os grandes
oradores de Atenas e Roma? Amontoarás dinheiro suficiente para redimir os que sofrem?
Erguerás novo templo de pedra, onde o rico e o pobre aprendam a ser filhos de Deus? Ordenará
a execução da lei, decretando medidas que obrigam a transformação imediata de Israel?
Depois de longo intervalo, indagou em lágrimas:
- Dize-me, ó Divina Criança, onde representarás os interesses de nosso Supremo Pai?
O menino tenro ergueu, então, a pequenina destra e bateu, muitas vezes, naquele peito
envelhecido que se inclinava já para o sepulcro...
Nesse instante, aproximou-se Maria e o recolheu nos braços maternos. Somente após a morte
do corpo. Simeão veio, a saber, que o Menino Celeste não o deixara sem resposta.
O infante Sublime, no gesto silencioso, quisera dizer que não vinha representar os interesses do
Céu nas organizações respeitáveis, mas efêmeras da Terra. Vinha da Casa do Pai justamente
para representá-Lo no coração dos homens.
26 - A SERVA NERVOSA
A Senhora Mercedes Nunes, desde muito chamada à tarefa espiritual, não se adaptara aos
serviços mediúnicos, aos quais fora conduzida para o trabalho de redenção.
Os companheiros de Doutrina esforçavam-se para despertar-lhe a noção de
responsabilidade e os benfeitores desencarnados rodeavam-na de apelos e incentivos.
Dona Mercedes, porém, não obstante as nobres qualidades que lhe exornavam o caráter,
não se conformava:
-Sou extremamente nervosa – costumava dizer-, não me resigno a determinadas
situações!...
-Mas, a senhora não vê as entidades espirituais, não lhes ouve as advertências diretas? –
perguntava um amigo bem-intencionado.
-Sim, sim... – respondia, confundida – não alimento qualquer dúvida.Os Espíritos
conversam comigo naturalmente. Ouço-lhes a palavra sábia e amiga, registro-lhes os convite
generosos.Explicam-me os impositivos de trabalho, salientam a tarefa depositada em minhas
mãos; no entanto, vejo-me incapacitada, em vista do sistema nervoso deficiente. A visão de
almas sofredoras e de pessoas doentes me apavora. Causa-me incoercível mal-estar e
indizível temor.E, por outro lado, caso se operasse o meu desenvolvimento mediúnico de que
modo poderia eu satisfazer as filas intermináveis de mendigos, aflitos e desesperados da
sorte que realmente, não posso, não me sinto preparada...
Perante afirmativas tão peremptórias, os melhores amigos se recolhiam ao silêncio,
desapontados.
Se Dona Mercedes, guardando valores medianímicos tão extensos, se declarava incapaz
de movimentar o patrimônio espiritual com que fora agraciada pelo Alto, que fazer senão
aguardar a renovação de atitudes, por parte dela própria?
O marido, sumamente devotado aos serviços da caridade cristã, rogava-lhe, com
insistência:
-Mercedes, por que não nos consagramos à missão da fraternidade e da luz? Não
concordas, querida, que a inexistência de filhos em nosso jardim conjugal é forte argumento
a favor de minha interrogação? Estamos quase sós, dispomos de belas oportunidades de
tempo e expressivos recursos materiais. Por que não nos dedicarmos à sementeira do bem?
Quantas dores poderemos aliviar, quanto consolo a distribuir!...Além de tudo, Mercedes, a
vida pede idealismo criador.
-Ora, Joaquim – acentuava a esposa, ferida no amor-próprio -, e meus nervos?
E denunciando a recôndita má-vontade, acrescentava:
-Receio, igualmente, as mistificações, as contrariedades...Abertas as portas de nossa casa
às incursões públicas, não teríamos sossego...não pertenceríamos ao lar, que passaria, de
imediato,à condição de propriedade alheia...a pretexto de praticar o bem, seríamos
fatalmente arrastados a escuro turbilhão..
.-Não tanto objetava o companheiro, previdente, aprenderíamos a aproveitar os minutos,
atrairíamos grande família pelos laços do coração e estaríamos, sem dúvida, adquirindo a
preciosa ciência do controle próprio.
A esposa, entretanto, revidava, irritadiça:
-E meus nervos doentes? Impossível!...
Joaquim sorria, algo desencantado, e continuava observando:
-Não transformes pequenos dissabores em fantasmas. Assinalemos a obra de nossa
própria elevação, ainda por fazer; vejamos, antes de tudo, as necessidades de cooperação
com o Cristo!
Dona Mercedes, no entanto, interceptava-lhe as palavras, clamando, intempestiva:
-Minha saúde não permite. Não disponho de enfibratura nervosa para tolerar a
contemplação de entidades desiqüilibradas do outro mundo, nem resistência para acomodarme
com os enfermos deste... Positivamente, não posso...
Como o esposo a fitasse serenamente, sem reprovação e sem desalento, concluía,
enfadada;
-É assunto para outra reencarnação...
Nas reuniões doutrinárias era amparada por advertências sublimes.
-Mercedes, minha filha-escrevia-lhe a mãezinha carinhosa, que desde muito, a procedera
no túmulo-,vale-te da presente oportunidade para a renovação em Jesus. A reforma interior
reclama trabalho, sacrifício e constantes demonstrações de boa-vontade.Lembra-te de que o
Senhor foi altamente magnânimo para contigo, abrindo-te as portas a soberanas edificações
espirituais.Acalma os impulsos nervosos e coopera com os teus irmãos na fé, alicerçando o
futuro divino.Ninguém trai, impunemente, os deveres essências a cumprir.Por que a
irritabilidade perante a dor? Porventura dela estaríamos isentos? O obstáculo é serviço
educativo para aquele que o encontra e para quem ajuda a soluciona-lo.Grandes sofrimentos
significam grandes e abençoadas renovações.É indispensável sondar o segredo da
tempestade, para que possamos receber-lhe a mensagem divina.Tremer ante as paisagens
dolorosas não representa sensibilidade construtiva.Precisamos firmeza no desempenho das
obrigações mais justas.Admitiras, acaso, a concessão celestial sem responsabilidade
terrestre ou as dádivas do Alto sem objetivo sagrado? Se enxergas aqueles que já
penetraram o país da morte e se lhes ouve a voz, é imperioso recordar que não deterias
semelhantes possibilidades sem fins valiosos.Colabora, pois, nas edificações do bem,
aproveitando o melhor tempo.
Dona Mercedes, no entanto,apesar de receber as mensagens maternais,sentindo-lhes o
conteúdo superior,não se rendia à verdade.
Afirmava-se esgotada,abatida,exausta.
E como a Sabedoria Divina não pode esperar pelos caprichos humanos,a fim de que se
processe a obra do aperfeiçoamento geral,os recursos mediúnicos da serva imprevidente
minguaram,pouco a pouco,fazendo-se cada vez mais imprecisos, até que desapareceram
completamente, com a passagem dos anos
Rolavam os dias, devagarinho, e Dona Mercedes prosseguia atenta aos caprichos
pessoais.
Continuava crente, recordava os fenômenos observados por ela mesma,mas enquanto
Joaquim se dedicava, quanto lhe era possível ao bem dos outros,a esposa refugiava-se nos
pontos de vista que lhe eram peculiares.
Não desejava preocupar-se nem responsabilizar-se, para não agravar os padecimentos do
corpo demasiado sensível.
O tempo ,entretanto,encarregou-se de transforma-lhe a concepção doentia.
Quando a velhice lhes bateu a porta,Joaquim partiu em primeiro lugar,com a paz do
trabalhador fiel ao campo até ao fim do dia.
Começou, então, a rude prova de Dona Mercedes,
A saudade amortalhou-lhe a alma na viuvez imprevista.
Onde se ocultava, agora, o companheiro carinhoso? Sentia-se amargurada, sem
ninguém.Estava em repouso físico,no lar silencioso,adornado e calmo, como sempre
desejara;no entanto,não conseguia pacificar o íntimo.A solidão assustava-a. Suspirava pela
companhia de alguma afeição anônima que lhe mitigasse a fome de fraternidade, pretendia
ver o esposo e receber-lhe a palavra amorosa e conselheiral...
Como retomar as possibilidades mediúnicas de outra época? – inquiria, tristonha.
Faces engelhadas, sob rala cabeleira de neve, muito trêmula e esperançosa, dirigiu-se ao
velho grupo doutrinário, na ânsia de ouvir a mãezinha, de novo, já que se lhe fizera
inacessível a palavra do companheiro.
Reuniu-se apenas com a médium da casa e mais duas irmãs.Pedia mensagens mais
íntima, em renovada orientação materna, de modo a solver o seu problema mediúnico.
Finda a sentida prece, a genitora prestimosa tomou a palavra com saudações afáveis e
doces.
Dona Mercedes, em pranto, expôs o martírio do coração atormentado.Queria reapossar-se
da clarividência. Aguardava, anciosa, o instante de rever o esposo inolvidável e contribuir na
missão da verdade e da luz.
A entidade afetuosa, em terna quietude, deixou que a filha derramasse todo o fel que se lhe
represava na alma ulcerada e respondeu, por fim, em voz triste:
-Ah! Mercedez; por mais de vinte anos, convidei teu coração à redentora tarefa! Por que te
demoraste tanto na decisão? Agora, filha, o dia está quase findo...enferrujou-se a enxada,
sem a necessária e bendita utilização. Não quiseste nem mesmo combater as impressões
nervosas, vagas e infantis, acreditando mais na moléstia que na saúde.O tempo não podia
esperar por ti agora, é necessário que esperes pelo tempo!...
-Deus meu! – exclamou a viúva, amargurada – será mesmo impossível?
E ante as lágrimas convulsas, respondeu a mãezinha, angustiadamente:
-Sim, minha filha, não te posso enganar com o falso conforto, agora, é assunto para outra
reencarnação.
27 - ESPIRITISMO CIENTÍFICO APENAS ?
Grande contingente de estudiosos das teses espiritistas pleiteia agora uma situação especial
de evidência para o Espiritismo estritamente científico, pugnando pelo esquecimento dos
tesouros evangélicos.Alguns vão ao extremo de condenar a prática da prece.Outros apontam
as tarefas de consolação com uma pontinha de ridículo na observação impensada e mordaz.
A invocação dos ensinamentos do Cristo provoca-lhes estranheza no coração.São discípulos
que esqueceram suas origens, olvidando o carinho das mãos dedicadas que lhes guiam os
passos vacilantes do princípio.
Querem fenômenos e prosélitos.
Seria interessante para os novos trabalhadores do Evangelho povoarem seus centros de
oração e de estudo com balanças, agulhas, trenas e máquinas elétricas.No meio de todo
esse aparelhamento, haveria uma cátedra para o estranho Colombo, disposto à maravilhosa
descoberta do plano espiritual, sentado calmamente em sua cadeira.A operação mais difícil
seria encontrar o Espírito verdadeiramente sábio e amigo, que viesse de sua adaptação aos
desígnios de Deus para tocar o botão misterioso da maquinaria humana, como o pequeno
vagabundo contratado repentinamente, nos palcos improvisados, para os toques da mágica
imprevista.
É certo que ninguém poderá excluir as características científicas no exame transcendente
do intercâmbio entre os vivos da Terra e os vivos do Infinito.Toda indagação séria é justa e
toda análise conscienciosa produzirá os frutos doces da verdade.Charles Richet, com toda a
sua impertinência de pesquisador, prestou grande serviço à divulgação dos novos
ensinamentos; suas perquirições desapaixonadas e incessantes impuseram respeito aos
valores psíquicos, entre os espíritos mais empedernidos de nossa época.
Mas, entre a mentalidade indagadora e a mentalidade leviana existe considerável distância.
A grande questão de todos os tempos não é propriamente a de conhecer, mas a de
entender a finalidade do conhecimento.
O Espiritismo constitui a porta da esperança para um mundo melhor.Seus fenômenos
representam chamamentos comuns para uma compreensão mais elevada dos valores da
vida.O intercâmbio entre a natureza visível e a invisível conduz a profundas ilações de ordem
moral, que é necessário não esquecer.Sua expressão religiosa com o Cristo tem de ser
essencial.Sua mensagem permanente tem no Evangelho os primórdios eternos. Nada
poderá realizar de substancialmente útil,sem aquele Divino Amigo dos homens.
Instalar mais uma ciência puramente intelectual, onde todas as expressões científicas de
cérebro sem o coração já faliram desastradamente, no capítulo da elevação real da criatura,
não constituiria uma leviandade de conseqüências fatais?
A plataforma espiritista, em todos os lugares, será, antes de tudo, uma aleluia dos
corações. Suas vozes deverão reviver as lições incompreendidas daquele Mestre amoroso e
sábio que veio salvar os pecadores.
O Evangelho está repleto das expressões “subir ao monte”.Jesus pregava no
“monte”.Comumente, os discípulos iam encontra-lo ali, de modo a lhe ouvirem o
ensinamento.
Nós, entretanto, os espíritos pobres e endividados, que nos encontremos em esforços de
auto-reajustamento sobre a Terra, na carne ou fora de seus liames, constituímos a pesada
multidão de seres indecisos no vale sombrio da morte, da enfermidade, do sofrimento.Para
encontrarmos o Cristo, é indispensável a viagem difícil da montanha.É preciso alçar o
coração, no sacrifício, e marchar, marchar, não obstante todos os apelos das ambições
desvairadas, vencendo as sugestões do egoísmo e da tentação do bem-estar,que, por
vezes, se manifestam, inesperadamente, nas observações afetuosas, de timbre familiar.
A realização cristã, que é o primeiro programa do Espiritismo santificante, não se conquista
tão-só coma s rotulagens científicas e deduções filosóficas, mais ou menos brilhantes. Os
antepassados dos discípulos atuais, nas diversas famílias religiosas do Cristianismo,
adquiram os valores da fé com a própria vida.Para conduzirem um mundo que se perdia na
destruição e na indiferença, a tomar conhecimento do Cristo, nunca se vestiram com a túnica
da inconstância.Padeceram e morreram. Deram-se em holocausto, imolando-se a si próprios
A inquietação tem sido um mal de todos os séculos.Mas, seria justo perguntarmos ao
homem dos tempos que correm, quando os problemas da profundidade submarina e da
estratosfera o preocupam, porque se espanta consigo próprio, entre as muralhas dos livros
de paz e as ruínas fumegantes das guerras.
Enquanto o Espiritismo se constitui em fonte de alívio para a compacta fileira de infelizes
que buscam ansiosamente as suas águas confortadoras e claras, alguns de seus estudiosos
se deixam empolgar pela mania das novidades, ansiosos pela atenção balofa dos publicistas
sem consciência dos valores sentimentais.
De nossos núcleos, temos de afirmar que, sem a sintonia com o Cristo,qualquer edificação
será inútil.
Taunay, em suas “Reminiscências”, conta que o conselheiro Paulino José Soares de Souza
era o provedor da Santa Casa de Misericórdia, no Rio de Janeiro, quando as autoridades
republicanas, logo após a queda do Império, o intimaram a eliminar o “Deus guarde” dos
seus expedientes oficiais, nas relações com o Governo.
Mas o Conselheiro experiente respondeu sem titubear;
-Não me é possível aceder às indicações de V.Exª, porquanto, neste estabelecimento,
ainda há Deus e nem se pode dispensa-lo, entre tantos sofrimentos e misérias dos homens.
E prosseguiu com as mesmas expressões.
Aos que nos disseram de um Espiritismo científico apenas, tomados pelo entusiasmo fácil
dos jogos de palavras, responderemos igualmente:
-Não nos seria lícito seguir em vossas águas, porque, entre nós, antes de tudo, prevalecem
os fundamentos da verdade com Jesus Cristo e, considerando a extensão de nossas
necessidades, não sabemos daqui a quantos séculos poderemos pensar em modificação das
velhas fórmulas.
28 - A PARÁBOLA DO RICO
Na pequena assembléia espiritual, estudávamos a Parábola do Rico.
Alguns intelectuais, brilhantes no mundo, inclinavam-se comovidos ante a necessidade de
penetrarem a luz dos capítulos simples do Evangelista.
Na cátedra das lições costumeiras, a figura de Pedro Richard nos acompanhava com
atenção generosa e sincera.
O quadro não era muito diferente das circunstâncias em que se poderia realizar sobre a
Terra.
A esfera espiritual próxima do planeta é uma figura de transição, em que o gosto terrestre
tem quase absoluta predominância.
O amplo recinto oferecia o aspecto de um parlamento singelo e acolhedor e, como ponto
central, aquele velhinho, amigo de Ismael e de Jesus, com os cabelos nevados, parecendo
feitos com a luz prateada das mais dolorosas experiências, ensinava o sentido oculto das
preciosas lições do Cristo.
– Afinal – exclama um dos meus amigos –, existem realmente os grandes usurários e os
ricos infelizes no mundo. São os dilapidadores dos bens coletivos, porque a movimentação
do dinheiro poderia incentivar o trabalho, atenuando as dificuldades dos mais infortunados.
– Entretanto – atalha um dos presentes –, temos as fortunas dos grandes beneméritos da
Humanidade. Um Rockefeller, um Carnegie, que estimulam as grandes iniciativas, em favor
do bem público, não serão ricos amados de Deus? E os Henry Ford, que transformam os
pântanos em parques industriais, onde milhares de criaturas ganham honestamente o pão da
vida, não merecem o respeito amoroso das multidões?
A apreciação sobre os ricos da Terra prosseguia animada, quando alguém se lembrou de
submeter a Richard o assunto, em sua feição substancial.
O generoso velhinho, no entanto, replicou judiciosamente:
– Antes de tudo, só Deus pode julgar em definitivo as suas criaturas; mas, como considero o
planeta terrestre uma abençoada escola de dor que conduz à alegria e de trabalho que
encaminha para a felicidade com Jesus, devo assinalar que, na carne, não conheço senão
Espíritos cheios de débitos pesados, com as mais vastas obrigações, perante a obra de
Deus, que é o país infinito das almas. Quem será o Senhor das riquezas, senão o próprio Pai
que criou o Universo? Onde estão os bancos infalíveis, ou os milionários que possam dispor
eternamente dos bens financeiros que lhes são confiados? As expressões cambiais do
mundo são convenções que outras convenções modificam. Basta, às vezes, um sopro leve
das marés sociais para que todos os quadros da riqueza humana se transformem. Tenho de
mim para comigo que, no mundo, o dinheiro a gastar, como a dívida financeira a resgatar são
também oportunidades que o Senhor de Todas as Coisas nos oferece, para que sejamos
dignos dele. O crédito exige a virtude da ponderação com a bondade esclarecida e o débito
reclama a virtude da paciência com o amor ao trabalho.
A essas palavras justas, que nos conduziam a um campo de novas especulações
sentimentais, um dos nossos irmãos de esforço, antigo socialista extremado na Terra,
entusiasmando-se, talvez em excesso, com as elucidações do generoso mentor, exclamou
efusivamente:
– Muito bem! sempre encontrei no capital um fantasma para a felicidade humana.
Pedro Richard endereçou-lhe o olhar, cheio de mansuetude, e explicou com bondade:
– Quem te afirmou que o capital no mundo é um erro?
E depois de uma pausa, dando a conhecer que desejava acentuar suas palavras,
acrescentou:
– Podemos assinalar a dedo os raríssimos homens da Terra que conseguem trabalhar sem o
aguilhão. O capital será esse aguilhão, até que as criaturas entendam o divino prazer de
servir. Para os mais abastados, ele tem constituído a preocupação bendita da
responsabilidade, e para a generalidade dos homens, o estímulo ao trabalho. O capital é um
recurso de sofrimento purificador, não somente para os que o possuem, mas para quantos
se esforçam pelo obter. É o meio através do qual o amor de Deus opera sobre toda a
estruturação da vida material no globo; sem sua influência, as expressões evolutivas do
mundo deixariam a desejar, mesmo porque os Espíritos encarnados estariam longe de
compreender os valores legítimos da vida, sem a verdadeira concepção da dignidade do
trabalho.
O nosso amigo quedou-se em meditação.
Aqueles esclarecimentos generosos e simples profundamente nos surpreendiam.
O mentor benévolo e sábio continuou as suas elucidações evangélicas. Explicações
desconhecidas e inesperadas surgiam de seus lábios, derramando-se em nossos espíritos,
como jatos de luz. Eram novas claridades sobre a figura incompreendida e luminosa do
Cristo, revelações de sentimentos que nos conduziam ao máximo de admiração.
Grande número de literatos desencarnados no Brasil, filiados às mais diversas escalas,
escutavam-lhe os conceitos simples e profundos.
Foi então que, ao fim dos estudos, e nas derradeiras observações, um velho conhecedor das
letras evangélicas adiantou-se para o velhinho bom, interrogando:
– Richard, as tuas explicações são judiciosas e derramam novas claridades em nosso íntimo.
Mas, sempre ponderei uma questão de essencial interesse, nessa parábola do Evangelho.
Por que motivo o santificador Espírito de Abraão, personificando a Providência Divina junto
de Lázaro redimido, não atendeu às súplicas do Rico desventurado? Não era este também
um filho de Deus? Observando os teus esclarecimentos de agora, sinto esta interrogação
cada vez mais forte em minh'alma, porque, afinal, o homem rico do mundo pode ser, muitas
vezes, uma criatura indigente na aspereza das provas. Como esclarecer esse problema que
nos induz a supor certa insensibilidade nas almas gloriosas que já se redimiram das
vicissitudes da existência material?
O esclarecido comentador da palavra de Jesus replicou com veemência e brandura:
– Insensibilidade nos mensageiros do bem? Esse conceito nasce da nossa deficiência de
verdadeira compreensão. Abraão e Lázaro viram nos sofrimentos do Rico a misericórdia
inesgotável do Pai Celestial que, dos nossos erros mais profundos, sabe extrair a água
amargosa que nos há de curar o coração. Ambos compreenderam que seria contrariar os
desígnios divinos levar ao irmão torturado uma água mentirosa que lhe não mataria a sede
espiritual. Quanto ao mais, que pedia o Rico ao Espírito generoso de Abraão? Rogava-lhe
que Lázaro voltasse ao mundo para dar a seus pais, a sua mulher, a seus filhos e irmãos as
verdades de Deus, a fim de que se salvassem. Como não se lembrou de pedir a difusão
dessas mesmas verdades, entre todas as criaturas? Por que razão somente pensou nos
seus amados pelo sangue, quando todos os homens, nossos irmãos, têm necessidade da
paz de Deus, que é a água viva da redenção? A solicitação do Rico é muita semelhante à
maioria das súplicas que partem dos caminhos escuros da Terra, filhas do egoísmo
ambicioso ou do malfadado espírito de preferência das criaturas, orações que nunca chegam
a Deus, por se apagarem no mesmo círculo de sombra e ignorância em que foram geradas
pela insensatez dos homens indiferentes!...
O nosso amigo religioso recebera também a sua lição.
As elucidações evangélicas do dia estavam terminadas.
No recanto silencioso, a que me recolho com as heranças tristes da Terra, intensifiquei as
minhas reflexões sobre a grandeza desconhecida do Cristo e, contemplando as perspectivas
angustiosas dos quadros sociais da existência terrestre, comecei a meditar, com mais
interesse, na profunda Parábola do Rico.
29 - O QUINHÃO DO DISCÍPULO
Cercado de potências angélicas, o Mestre dos mestres recebia a longa fileira de almas
necessitadas, a chegarem da Terra, trazidas pelas asas veludosas do sono.
Rogativas particulares sucediam-se ininterruptas. E o Divino Dispensador as acolhia
afavelmente. Para as solicitações mais disparatadas, oferecia a ternura do benfeitor e o
sorriso do sábio. Jovens e velhos, adultos e crianças eram admitidos à Augusta Presença,
um a um, expando cada qual sua necessidade e sua esperança.
– Senhor – implorava carinhosa mãe, de olhos súplices –, meus filhos aguardam-te a
complacência vigilante!
E prosseguia, aflita, enumerando intrincados problemas domésticos, destacando projetos
para o futuro, na experiência carnal.
O Mestre ouviu e recomendou aos cooperadores atendessem a súplica, na primeira
oportunidade.
Seguiu-se-lhe linda jovem que rogou, ansiosa:
– Oh! Jesus, atende-me! socorre meu noivo que sucumbe... Livra-o da morte, por piedade!
sem ele, não viverei!...
O Benfeitor Divino ouviu, atento, e ordenou que os emissários restituíssem o dom da
saúde física ao doente grave.
Logo após, entrou velho e simpático lavrador, de gestos confiantes, que se prosternou,
suplicando :
– Doador da Vida, abençoa meu campo! Peço-te! Amo profundamente a terra que me
confiaste. R celeiro do meu pão, recreio de meus olhos, esperança de minha velhice!...
O Pastor Divino sorriu para ele, abençoou-o, afetuosamente, e determinou aos auxiliares
santificassem o ritmo das estações sobre o campo daquele trabalhador devotado, para que
ali houvesse flores e frutos abundantes.
Em seguida, cavalheiro respeitável penetrou o recinto de luz, evidenciando nobre posição
intelectual, e solicitou, reverente:
– Protetor dos Necessitados, o ideal de realizar algo de útil na Terra inflama-me o espírito...
Dá-me possibilidades materiais, concede-me a temporária mordomia de teus infinitos bens!
Quero combater o pauperismo, a fome, a nudez, entre os homens encarnados... Auxilia-me
por compaixão!
O Embaixador do Sumo Bem contemplou-o, satisfeito, aquiesceu com palavras de estímulo e
designou adjuntos para a articulação de providências, quanto à satisfação do pedido.
Minutos depois, entrou um filósofo que implorou:
– Sábio dos sábios, dá-me inspiração para renovar a cultura terrestre!...
O Cristo aprovou a petição, concedendo-lhe vasto séqüito de instrutores.
E a legião dos suplicantes prosseguia sempre, movimentada e feliz, valendo-se da visita
providencial do Celeste Benfeitor às sombrias fronteiras da carne. Jesus atendia sempre,
ministrando incentivos e alegrias, graças e consolações, determinando medidas aos
assessores diretos.
Em dado instante, porém, o círculo foi penetrado por um homem diferente. Seu olhar lúcido
falava de profunda sede interior, seus gestos respeitosos traduziam confiança e veneração
imensas.
Ajoelhou-se, humilde, estendeu os braços para o Emissário do Eterno Pai e, ao contrário de
quantos lhe haviam precedido na súplica, explicou-se com simplicidade :
– Senhor, eu sei que sempre dás, conforme nossos rogos.
Ante a estupefação geral, continuou :
– Há quase vinte séculos, ensinaste-nos que o homem achará o que procura e receberá o
que pede...
O Divino Orientador ouvia, comovido, enquanto os demais seguiam a cena com admiração.
O visitante reverente deixou cair lágrimas sinceras e prosseguiu :
– Vezes inúmeras, tenho lidado com o desejo e a posse, com a esperança e a realização,
nos círculos transitórios da existência carnal. Estou pronto para cumprir-te os desígnios
superiores, seja onde for, quando e como quiseres, mas, se permites, rogo-te luz divina do
teu coração para o meu coração, paz, alegria e vigor imortais de tua alma para minh’alma!...
Quero seguir-te, enfim!...
Com doçura admirável, o Mestre tocou-lhe a fronte e indagou :
– Queres ser meu discípulo?
– Sim! – respondeu o aspirante da luz.
Calou-se o Cristo. Verificando-se intervalo mais longo, e considerando que todos os pedintes
haviam recebido gratificações e júbilos imediatos, o aprendiz perguntou:
– Que me reservas, Senhor?
O Doador das Bênçãos contemplou-o com ternura e informou :
– Volta ao campo de teus deveres. Entender-me-ei contigo diretamente.
E depois de um silêncio, que ninguém ousou interromper, o Mestre concluiu:
– Reservar-te-ei a lição.
30 - O AMIGO CHAVES
Logo após a desencarnação de Belmiro Chaves, os companheiros do grupo efetuaram
verdadeira consagração à memória dele.
Sem dúvida, fora excelente pai de família, generoso amigo e abnegado irmão.
Desde o instante em que se aproximou do Espiritismo evangélico, convertera-se em vigilante
sustentáculo dos sofredores. Não obstante a condição de alfaiate humilde e sem reservas
materiais, conquistara a confiança e a amizade de todos.
Integrava o quadro de médiuns curadores da casa e, em razão disso, o seu afastamento
trouxera incalculável pesar. Retirava-se com ele vigorosa coluna do serviço cristão.
O louvável colaborador, contudo, se era realmente bondoso e devotado à Doutrina, não
havia ainda logrado alcançar realizações espirituais decisivas em si próprio. Precisaria
esforçar-se muitíssimo para desenvolver com a amplitude desejável as qualidades
santificadoras que assinalam os pioneiros da elevação. Por haver estudado o Evangelho,
durante alguns anos, na Terra, não se exonerara dos grandes e indiscutíveis deveres
referentes à suprema edificação interior da alma para a vida eterna. Qual ocorre à maioria
dos desencarnados, em posição mais digna, Chaves necessitava intensificar os valores
evolutivos e consolidar o aprendizado e a iniciação com Jesus, através de experiências e
obrigações novas.
Os companheiros que ficaram na carne, todavia, deixavam perceber enorme
desconhecimento quanto a semelhante imperativo da Natureza.
Começou o mal-entendido, desde o momento em que voltavam, acabrunhados e choroso, do
cemitério distante. Reuniram-se, em prece, pelo amigo prestimoso que os antecedera no
túmulo. Mas, longe de se circunscreverem ao amor, ao reconhecimento e à saudade,
internaram-se pelo terreno da súplica direta, como se Belmiro houvesse atingido a galeria
dum semideus. Rogaram-lhe que os não abandonasse, que os atendesse nas necessidades
e problemas da luta humana. Alguns dos irmãos, menos avisados, enxertavam pedidos
particulares na solicitação coletiva, agindo mentalmente, segundo auto-sugestões
perniciosas.
O colega desencarnado, apesar de enfraquecido, no natural abatimento de grande transição,
achava-se presente, ouvindo as orações, em companhia do venerável Benigno, um dos
mentores espirituais do núcleo de serviço em função.
Terminados os trabalhos, Belmiro sentia-se tocado nas fibras mais intimas. Aquela ternura
dos companheiros sensibilizava-o. Nunca fizera idéia do amor que lhe dedicavam. Como não
esforçar-se por eles e sacrificar-se, gostosamente, por todos?
Mergulhado nessas reflexões, foi acordado por Benigno, que o notificou afetuosamente:
- Amigo, é chegado o tempo de tua renovação. Busquemos a Vida Maior, onde te aguardam
outros dons iluminativos e novos ensinamentos.
Chaves, porém, contemplou aquelas paredes singelas, detendo-se na paisagem interior tão
estreitamente unida ao seu coração, e antecipada saudade estrangulou-lhe a alma sensível.
- Benigno, amado benfeitor – pediu, em pranto -, não me afastes daqui!... Gostaria de poder
continuar ajudando aos amigos queridos, permanecendo nesta casa, a serviço deles,
amparando-os nas atividades edificantes de cada dia. Quem poderá escutar o que ouvimos
agora, sem prender-se ao justo reconhecimento? Todos confiam em mim, imperfeito servo
embora. Se possível, digna-te, devotado Instrutor, auxiliar-me para que eu prossiga
beneficiando, de alguma sorte, os que ainda ficam...
O mentor fixou uma expressão facial de surpresa, e, como quem modificava de atitude, falou,
muito calmo:
- Belmiro, creio que não sabes o que pedes; no entanto, não te posso violentar os
sentimentos. A morte física, em qualquer circunstância, deve ser interpretada como elemento
transformador, que nos cabe aproveitar, intensificando o conhecimento de nós mesmos e a
sublimação de nossas qualidades individuais, a fim de atendermos, com mais segurança,
aos desígnios de Deus. Acredito que no meu convite coloquei toda a substancia de meu
convite coloquei toda a substância de meu pensamento amigo, mas, se pretendes demorar
neste circulo, não tenho direito a qualquer objeção. Virás comigo para o trabalho de
assistência ao organismo espiritual e, logo que te refaças, satisfarás aos próprios desejos.
Belmiro mostrava-se contentíssimo, longe de entender toda a extensão da advertência
preciosa.
Vigorizado em grande instituição de auxilio, regressou, incontinenti, à velha tenda de
trabalho, embora continuasse sob a esclarecida orientação Belmiro.
Iniciou-se, então, para o ex-alfaiate, esmagadora tarefa. Porque Belmiro desencarnara, na
posição de homem bondoso e honesto, a maioria dos companheiros dispôs-se a convertê-lo
em verdadeiro escravo, tomando-o para mediador de todas as solicitações justas e injustas.
Transformando no “amigo Chaves”, desde a primeira semana foi convocado pelas mais
estranhas exigências.
Era procurado mentalmente para toda espécie de serviço. Rogava-se-lhe a assistência
fraterna nas mais disparata das situações. Era recordado insistentemente nas cozinhas, nos
balcões, nas salas de costura, nos trabalhos de enfermagem, nas lutas mais vulgares de
cada dia. Até aí, porém, as suplicas eram razoáveis e compreensíveis. Mas Belmiro era
também instado na esfera da insensatez.
Exigiam-lhe a cooperação em assuntos de baixa classe e o trabalhador era obrigado a
comparecer espiritualmente para lidar com o material menos digno das paixões desregradas.
Além disso, ainda era compelido a atender no campo de frivolidades inúmeras. Criaturas
ociosas chamavam-no para a corrigenda em crianças vadias, à busca de objetos perdidos e
à obtenção de noticias prematuras. O ex-alfaiate não conhecia descanso. Enquanto outras
entidades se desligavam naturalmente dos afazeres, em pausas necessárias de repouso, era
ele forçado a contínua movimentação para atender a todos, porquanto o pensamento em
súplica, de quantos lhe recorriam ao nome, agia como forte rede mental, enlaçando-o a
caprichos e propósitos inferiores.
Ao fim de seis meses, afirmava-se exausto.
Impossível continuar.
Desanimado, dirigiu-se a Benigno, rogando aflitivamente.
- Meu amigo, meu generoso amigo, compadece-te de meu pobre espírito, prisioneiro de
sombras e dificuldades. Não posso mais!... As solicitações da preguiça e da má fé, as
exigências dos vícios e dos caprichos humano me atormentam o coração!...
- Não precisas prosseguir – respondeu o benfeitor, sorridente -, providenciaremos nova
situação para o teu urso fraternal. Não julguei pudesses ir tão longe na tarefa imprópria que
abraçaste. São poucos os trabalhadores que se encontram habilitados a ouvir todos os
pedintes, com bondade e tolerância, de maneira a satisfazê-los pelo padrão da vontade de
Deus. Somente depois de longas e porfiadas experiências, aprendemos a beneficiar sem
estabelecer algemas e a servir sem a vaidade de nos sentirmos em plano superior...
E, enquanto Belmiro chorava de alegria, na expectativa de renovação e liberdade, Benigno
concluiu:
- Para colaborares exclusivamente junto às inteligências encarnadas, não podes prescindir
de adequada preparação. Tomarei as medidas justas, a teu respeito; entretanto, meu caro,
no curso de outros problemas, jamais olvides que os nossos trabalhos no Planeta, por mais
belos e proveitosos, pertencem a Jesus em primeira mão. Por menosprezares semelhante
verdade, é que se verifica grande atraso em eu evolutivo.
31 - MAU APRENDIZ
Bonifácio Pessanha nunca se furtou ao vício das perguntas ociosas. Onde estivesse,
mobilizava interrogações despropositadas e inoportunas. Não sabia dar um passo sem
escorar-se nos outros e semelhante característico desfigurara-lhe a personalidade.
Quando atravessou os portais do Espiritismo Cristão, sentiu-se muito a gosto. Em seu
parecer.de então em diante poderia indagar quanto quisesse. Vários médiuns, nos mais
diversos grupos, estariam à disposição dele, tanto quanto as entidades invisíveis que,
segundo acreditava, deveriam vaguear, em disponibilidade franca, sem métodos regulares
de vida e sem programa de obrigações construtivas.
Os companheiros do núcleo que passou a freqüentar notaram-lhe, de imediato, a
extravagância; todavia, calavam-se, caridosos e tolerantes.
Bonifácio era novo na Doutrina. Com o tempo recolheria experiências, retificaria atitudes
incertas. Contudo, tantas interrogações dirigia ele ao plano invisível através de grandes
laudas de papel, que Juliano, o orientador devotado da esfera espiritual, lhe escreveu, certa
feita, de modo direto:
- “Pessanha, meu irmão, não olvides que o mundo é também uma escola ativa. É preciso
cautela para não perdermos as lições. Cada dia é uma página que preencherás com as
próprias mãos, no aprendizado imprescindível. Os ensinamentos da véspera, em boa lógica,
devem ser assimilados. O aluno que não se vale da experiência vivida, não pode aguardar o
êxito desejado. Penetraste, em renascendo, a grande universidade terrestre e vives, por
alguns anos, no internato do corpo físico. E onde está, meu amigo, o instituto de ensino, em
que a cátedra deve descer satisfazendo aos caprichos da carteira? Que a existência carnal é
um curso educativo, de proporções vastas, cheio de probabilidades milagrosas para o
discípulo de boa-vontade, prova-o a morte, que nos convida a todos para exame e seleção.
Crês, porventura, que o aprendiz obterá o atestado de mérito, exclusivamente pelo hábito de
perguntar? Desengana-te, meu amigo! Vai ao serviço diário, rogando a luz divina para o
entendimento. Mãos e pés não usados paralisam-se no caminho. Olhos e ouvidos que não
iluminam nem esclarecem a inteligência, apagam-se, mais tarde, à maneira de candeia inútil,
ou adormecem, na incapacidade, quais ruínas de uma casa em abandono. Não temas
sofrimentos ou decepções. Aprende e age sempre. A dor e o obstáculo guardam para nós a
função de legítimos instrutores. É um erro interpretar dificuldades à conta de punições ou
pesadelos, quando nelas devemos encontrar recursos de aprimoramento e provas
abençoadas. A lei é de evolução comum e de perfeição final para todos, ainda mesmo
considerando a necessidade de expiação para o crime e corrigenda para o mal. Como
habilitar-se o aluno sem o livro de lições? Que seria do Espírito encarnado sem a
oportunidade de experimentar, atuar, lapidar-se e conhecer? É razoável que o estudante
indague das finalidades do educandário a que pertence, dos regulamentos, do horário e das
condições que lhe dizem respeito, mas, subtrair-se ao processo de burilamento e preparação
através de indagações sistemáticas, é perigoso para si mesmo, porque o curso tem um fim,
de renovar-se em outros setores da vida, e as demonstrações de aproveitamento serão
exigidas a cada aluno em particular. Desse modo, não desprezes caminhar,
desassombradamente, confiando em Jesus e em ti mesmo!”
Bonifácio, no entanto, parecia plenamente desentendido.
Invadia o círculo dos irmãos de ideal, com larga ofensiva de indagações, já que os
benfeitores desencarnados não se mostravam dispostos à quebra intempestiva da lei.
Inquiria sempre, a propósito de tudo e de todos, figurando-se verdadeiro maníaco, não
obstante afirmar-se homem de fé.
Em todas as reuniões trazia longa relação de assuntos para verrumar a paciência dos
companheiros.
- Senhor Macedo – dirigia-se ao diretor dos trabalhos doutrinários -, qual o seu modo de ver,
relativamente à minha profissão? Não considera que estou prejudicado? Poderia estudar
mais, aplicar-me à Boa Nova, com outro ânimo, se minhas atividades fossem diferentes.
Como entende o meu caso?
O interpelado, esboçando embora um gesto de estranheza, respondi, calmo:
- De mim mesmo, Pessanha, estou convencido de que a criatura pode atender ao Senhor,
em qualquer parte. A boa-vontade, quando aliada à paciência, faz verdadeiros milagres no
aproveitamento dos minutos.
Antes, todavia, de ponderar o valioso conteúdo da observação, transferia Bonifácio o assunto
a um terceiro:
- Mas você, Tinoco – dirigia-se, inquieto, a outro companheiro -, não considera o meu tempo
muito escasso? Torna-se muito difícil atender à Doutrina em minhas condições. Meus chefes
de serviço são extremamente rigorosos. Imagine que não disponho de ocasião para
compulsar um livro. Que conclui você de meus obstáculos?
Tinoco sorria e observava:
- Pessanha, nada posso acrescentar ao parecer do nosso amigo. Não devemos forçar as
situações entendendo a necessidade da experiência pessoal. Estamos neste mundo para
aprender algo de útil e nada conheceremos realmente, sem agir por nós mesmos.
Pretendia Bonifácio estender as indagações; no entanto, os trabalhos espirituais foram
declarados abertos e era necessário manter atenção e silêncio.
Terminada a reunião, prosseguia ele, firme, interrogando sempre, quanto a todos os
problemas corriqueiros do dia e se alguém lhe recordava os conselhos do orientador
espiritual, costumava responder que precisava perguntar por prudência, desse modo
acobertando a preguiça mental com expressões de virtude.
Na sessão seguinte, voltava desatento, dirigindo-se ao diretor da casa:
- Senhor Macedo, que me diz do tratamento de minha filha Zina? Acho-me em dúvida se
prossigo com a homeopatia ou se me decido pela alopatia. Que pensa o senhor de minha
situação?
- Ora, Pessanha – esclarecia o confrade, pacientemente -, isto é questão de foro íntimo, de
preferência individual. No capitulo da assistência à saúde, cada um tem o seu campo de
confiança.
Bonifácio, irrequieto, voltava-se para D.Eponina, médium do grupo, inquirido:
- E a senhora? Que me diz? Não concorda em que eu deva mudar a medicação?
A interpelada, num gesto fraternal, atendia, solícita:
- Meu amigo, creio que nos constitui uma obrigação perseverar até ao fim, no que respeita a
qualquer serviço médico. Entretanto, sou constrangida a reconhecer que todos nós
solucionamos os nossos problemas, de modo particular.
Bonifácio, contudo, parecendo impermeável, em razão do vicio de apoiar-se nos outros, não
assimilava as lições de toda hora, ao contacto de companheiros encarnados e
desencarnados. E não curou a mente enfermiça. Até que a morte se lhe abeirou do leito de
aflitiva expectação.
No círculo das últimas provas, agravou-se-lhe a mania. Enredava os companheiros que
comparecessem à visitação afetuosa, em extensos inquéritos, cheios de enigmas insolúveis.
Quase todos os amigos lhe recomendavam o uso da oração ou lhe pediam procurasse o
socorro de Juliano, o abnegado mentor espiritual.
A mente do enfermo vagava, apressada, num torvelinho de indagações, mas a morte
trabalhava, serena, arrebatando-o, devagarzinho, da esfera material.
Em certo instante, compreendeu Pessanha que não mais se achava no aposento corpóreo.
Todavia, não conseguiu discernir a paisagem circundante.
Tinha agora os olhos enevoados, os pés inertes, as mãos imóveis.
Perdera, sobretudo, a noção de equilíbrio.
Acabrunhado, começou a orar, com uma espontaneidade e firmeza que antes conhecera.
Rogava a Juliano lhe esclarecesse o coração, lhe curasse as dores e lhe restituísse os
movimentos. Quando terminou a prece fervorosa, a voz do prestimoso amigo se fez ouvir,
nas sombras que o rodeavam, murmurando com lamentosa entonação:
- Ah! Pessanha, Pessanha! Agora é muito difícil mobilizar-te os pés, as mãos e a cabeça que
teimaste em não usar. Fugiste à ginástica da luta humana que adestra a alma para as
esferas mais altas. Não peças, por enquanto, as emoções da Espiritualidade Superior: roga o
regresso ao livro do mundo, retornando às lições benditas da experiência necessária. Quanto
ao mais, conserva a paciência e a coragem, nas aflições de hoje, porque, em verdade, o
homem que não percorre os roteiros justos, no aprendizado da vida, esbarra, fatalmente, nos
labirintos da morte.
32 - A LIÇÃO DE ARITOGOGO
Examinávamos a paisagem das ambições humanas, quando um amigo considerou:
- Que o homem atenda aos conselhos da prudência, armazenando em bom tempo,
como a formiga, para os dias de necessidade e inverno forte, é compreensível e razoável. A
vigilância não exclui a previdência, quando é possível amealhar com o bem; mas, explorar o
quadro das misérias alheias, embebedar-se na preocupação de ganhar, escravizar-se ao
dinheiro, é criar um inferno de padecimentos intraduzíveis.
- Quantos precipícios cavados pelo egoísmo conquistador?! – disse outro – é
lastimável observar as angustias semeadas nos caminhos humanos. As guerras não
constituem senão o desdobramento das ambições desmedidas. E dizer-se que toda essa
marcha de loucuras demanda as zonas da morte! Quão incompreensível a nossa cegueira,
nos círculos carnais! Quantos pesadelos desnecessários e quanta ilusão para se desfazer na
sepultura!...
Um dos companheiros presentes sorriu a acrescentou:
- Nesse capitulo, recebi inolvidável lição, há mais de trezentos anos, por intermédio
de um chefe indígena em nosso país.
- Como assim? – perguntei, sumamente interessado.
- Em princípios do século XVII – esclareceu o interlocutor – participava dos serviços
de uma embarcação francesa, em transporte de pau-brasil. Periodicamente, dávamos à
costa, onde fizéramos agradável camaradagem com os silvícolas, e, naquela época,
envergando a qualidade de português do Alentejo, não tive dificuldades para aprender alguns
rudimentos da língua aborígine, ao contacto dos nossos. Em razão disso, o chefe da tribo
litorânea, que respondia pelo nome de Aritogogo, dedicava-me especial atenção. Na sexta
viagem de nosso barco, o velho bronzeado chamou-me em particular, ministrando-me uma
das mais belas lições de filosofia que já recebi em toda a minha vida. Observando-nos a
afoiteza em carregar o navio com a madeira preciosa, perguntou-me ele, na linguagem que
lhe era familiar:
- Escute, meu amigo, não há lenha em sua terra? É preciso enfrentar o abismo das
águas para alimentar o fogo no lar distante?
- Não, aritogogo – respondi, esboçando um sorriso de pretensa superioridade -, a
madeira não se destina a fogão. O pau-brasil fornece tinta para a industria da Europa.
- Mas, para que tanta tinta? – tornou ele, assombrado.
- Para tingir a roupa dos brancos – expliquei.
- Ah! Ah! Vêm buscar a lenha para repartir com o povo – exclamou o cacique -, assim
como nós buscamos remédio para os que adoecem e comida para os que têm fome!...
-Não, não – esclareci -; somos empregados de um industrial. Toda a carga pertence a
um só homem. Trata-se de poderoso negociante de tintas, em França.
Aritogogo arregalou os olhos, espantado, e indagou:
- Que deseja esse homem com tantos paus e tanta tinta?
- Fazer fortuna – respondi -, alcançar muito dinheiro, ter muitas casas e muitos
servidores...
O chefe índio sacudiu a cabeça e tornou a perguntar:
- Mas esse homem nunca morrerá?
Ri-me francamente da interrogação ingênua e observei:
- Morrerá, por certo.
- Então? – disse o índio – se ele vai morrer, como nós todos, deve ser tolo em
procurar tanto peso para o coração.
Tentei corrigi-lhe a concepção, obtemperando:
- Esse homem, Aritogogo, está preparando o futuro da família. Naturalmente pretende legar
aos filhos uma grande herança, cercá-los de fortuna sólida...
Foi aí que o cacique mostrou um gesto singular de desânimo, e falou em tom grave:
- Ah! Meu branco, meu branco, vocês estão procurando enganar a Deus. as tribos
pacíficas, quando começam a cogitar desse assunto, esbarram nas guerras em que se
destroem umas às outras. O único ser, que pode legar uma herança legítima aos nossos
filhos, é o dono invisível da Terra e do Céu. O sol, a chuva, o ar, o chão, as pedras, as
árvores, os rios são a propriedade de Deus que, por ela, nos ensina as suas leis. Retirar os
nossos filhos do trabalho natural é pretender enganar o Eterno. Como podem os brancos
pensar nisso?
- Nesse momento, porém – continuou o amigo espiritual -, 0 comandante chamou-me
ao posto e despedi-me de Aritogogo, para não mais tornar a vê-lo naquela recuada
existência.
O companheiro espraiou o olhar pelo céu azul, como a procurar a imagem distante do
cacique filósofo e conclui:
Desde então, modifiquei minha idéia de ganho, compreendendo onde estão o
supérfluo e o necessário, a previdência e o desperdício, a sobriedade e a avareza, a reserva
justa e a ambição criminosa. A lição de Aritogogo incorporou-se ao meu espírito para
sempre. Com ela, aprendi que dominar o dinheiro e aproveitá-lo a bem de todos, socorrendo
necessidade e distribuindo bom ânimo, é obra do homem espiritualizado; mas, deixar-se
dominar pelo ouro, na preocupação de ganho transitório, não reparando meios para atingir os
fins, açambarcando direitos de outrem e valendo-se de todas as situações para rechear os
cofres e multiplicar os lucros, tão somente para manter a superioridade convencional, em
prejuízo da consciência, é obra do homem vulgar, escravizado aos gênios perversos da
tirania.
33 - A DISSERTAÇÃO INACABADA
Depois de certa pregação de Jesus, em Cafarnaum, encontrou o Mestre, em casa de
Pedro, quatro cavalheiros de luzente aspecto, a lhe aguardarem a palavra.
Vinham de longe, explicaram atenciosos. Judeus prestigiosos da Fenícia, moravam
em Sidon. Já haviam bebido a cultura egípcia e grega, tanto quanto a filosofia dos persas e
babilônios. O anúncio da Boa Nova chegara-lhes aos ouvidos. Desejavam servir nas fileiras
do Novo Reino, combatendo a licenciosidade dos costumes, na avareza dos ricos e na
revolta dos pobres. Aceitavam o Deus único e pretendia, consagrar-lhe a vida.
De quando em quando, os recém-chegados retificavam as dobras das irrepreensíveis
túnicas de linho alvo ou acentuavam, de leve, o apuro das sandálias.
O Senhor ouviu-lhes as informações com admirável benevolência.
Cada qual falou, por sua vez, comentando as angústias do problema social na
poderosa cidade de que provinham e, após encarecerem a necessidade de transformações
políticas no cenário do mundo, esperaram, curiosos, a palavra do Cristo, que lhes afirmou,
bondoso:
- Está escrito: - Amarás o Senhor, Nosso Deus e Nosso Pai, de todo o coração, e não
farás dEle imagens abomináveis; eu, porém, acrescento – fugi igualmente à idolatria de
vossos próprios desejos, aniquilai o exclusivismo e não vos entronizeis na mentira, porque
estaríeis lesando a Sublime Divindade.
Recomenda Moises: - Não tomarás o nome do Todo-Poderoso em vão; esclareçovos,
contudo, que ninguém deve menoscabar o nome do próximo na maledicência, na
calúnia, no verbo inútil ou desleal.
Determina o Decálogo: - Santificarás o dia de sábado; exorto-vos, entretanto, a não
converterdes semelhante artigo em escora da ociosidade sistemática. Respeitando a pauta
necessária da natureza, não a transformeis em hosanas à preguiça dissolvente.
Manda o texto antigo: - Venera teu pai e tua mãe nos laços consangüíneos; todavia, é
imperioso reconhecer a necessidade de respeito a todos os homens dignos, onde estiverem,
olvidando-se no bem geral as fronteiras de raça, família, cor e religião, compreendendo-se
que acima dos limites impostos pelo sangue, na Terra, prevalecem os imperativos sagrados
da Família Universal.
Reza a lei do passado: - Não matarás; eu, porém, vos digo que não se deve matar
em circunstância alguma e que se faz indispensável a vigilância sobre os nossos impulsos de
oprimir os seres inferiores da Natureza, porque, um dia, responderemos à Justiça do Criador
Supremo pelas vidas que consumimos.
Pede o venerável testamento: - Não cometerás adultério; asseguro-vos, no entanto,
que o adultério não atinge somente o corpo de nossas irmãs em Humanidade, mas também
a carne e a alma de todos os homens que se esqueceram de caminhar retamente.
Aconselha o grande legislador: - Não furtarás; digo-vos, contudo que não se deve
roubar, não somente objetos valiosos e valores em dinheiro, mas também não nos cabe
furtar o tempo do Senhor, nem distrair os minutos dos servos aplicados de suas obras.
Consta na velha aliança: - Não dirás falso testemunho conta o teu próximo; declarovos,
porém, que é imprescindível guardar boa-vontade e amor no coração, irradiando-os em
pensamento.
Assinala a revelação antiga: - Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem desejarás a
sua mulher, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento; eu, porém, vos afianço que
nos compete a obrigação de procurar a luz, o bem e felicidade, trabalhando sem desânimo e
servindo a todos sem descanso,inacessíveis à peçonha do ódio, da inveja, do ciúme, do
despeito e da discórdia, portadores que são de veneno e treva para o Espírito.
Fez o Mestre pequeno intervalo na prelação, reparando que os visitantes da Fenícia
se mantinham pálidos e confundidos.
Nesse ínterim, a sogra de Pedro reclamou-lhe a presença num quarto próximo: e
Jesus, rogando ligeira licença, prometeu prosseguir nos ensinamentos novos, por mais
alguns instantes; todavia, em voltando pressuroso aos ouvintes, debalde procurou os
consulentes, movimentado os olhos ternos e lúcidos.
Na sala silenciosa não havia ninguém...
34 - FILHA REBELDE
- Minha filha – dizia Dona Matilde à Emilinha -, é preciso atender ao problema
espiritual, orientar o sentimento à luz do Cristo. A existência terrestre oferece surpresas
inúmeras e almas desprevenidas costumam cair, desastradamente. Não podemos prescindir
da vigilância.
A jovem, depois de gargalhar ironicamente, replicava:
- Ora, mamãe, não necessito de sermões encomendados. Esteja tranqüila. Seus
conselhos são muito antiquados e talvez desconheça a senhora as reviravoltas do mundo.
Suas observações são descabidas e, além disto, sou dona de minha vontade, faço o que
entendo.
- Sim, Emilinha – tornava a mãe paciente -, sei que você é senhora de si, mas o
cuidado materno obriga-me a esclarecê-la, ainda que você, presentemente, não me possa
aceitar as opiniões. Quem é mãe sofre muito por desvelar-se junto dos filhos...
- Por que teima em sofrer? – exclamava a interlocutora, cortando-lhe a palavra –
estamos na época de aniquilamento do passadismo.
Como a nobre genitora enxugasse os olhos em pranto, observava, rebelde:
- Não precisará desfiar o rosário de lágrimas. Para quê?
Era assim a situação entre Dona Matilde e a moça altaneira. A generosa senhora,
dedicada servidora do Cristo, já não sabia como proceder. Viúva, com três filhas solteiras,
desvelava-se, carinhosa, para que lhes não faltasse o necessário. Sacrificava-se
continuadamente pelo bem-estar delas. Privava-se de satisfações próprias, sujeitava-se ao
trabalho mal remunerado, desequilibrava a saúde pelo excesso de atividade nas obrigações
diárias, substituindo a falta do esposo e atendendo ao próprio dever. Se Eulália e Cassilda,
as duas filhas mais novas, de alguma sorte lhe compreendiam os sacrifícios, Emilinha, a
mais velha, tratava-a rudemente, sem a menor consideração. Criticava-lhe os mínimos
gestos. Dona Matilde raramente se dava ao prazer de palestrar com as visitas. Eram tão
ásperas as intromissões da filha, tão grosseiros os modos, ante a presença de estranhos,
que a nobre senhora se mantinha em silêncio, humilhada. Se comentava o dever, referia-se
Emilinha a conceitos modernos da vida; se aventurava uma opinião inocente em qualquer
assunto, tratava a filha de se mostrar superior.
Quando voltava Dona Matilde das reuniões evangélicas, reportando-se às
consolações e ensinamentos recolhidos, convertia-se a jovem num elemento escarnecedor.
- Ora, mamãe – dizia, sarcástica -, com que então a senhora se consagrou à
teologia? Já não fala senão em assuntos de religião...
- Ah! Minha filha – replicava a genitora, cuidadosa na fé -, não sorrias da verdade
para que ela, mais tarde, não venha a sorrir de ti. Lembra-te de nossos imperiosos deveres
para com Jesus!
Após o riso mordaz, a filha revidava:
- A senhora adquiriu maneiras de sacerdote. Não concordo com as suas teorias de
sobrevivência e reencarnação.
E lembrando, enfática, as revistas cientificas que costumava compulsar, por vaidade,
concluía presunçosamente:
- Não passamos de experiência biológica da Natureza no campo da racionalidade
humana. O resto é ilusão, que devemos relegar ao fanatismo religioso.
A viúva, a principio, discutia e argumentava, esclarecendo-a com a verdade espiritual,
mas observando o endurecimento da filha, retraiu-se, pouco a pouco, dando-lhe o exemplo
da própria ação e abstendo-se de muitas palavras.
E Emilinha fez no mundo o que lhe pareceu melhor, nos domínios do capricho e da
irreflexão criminosa, contraindo pesados débitos e agravando responsabilidades, surda às
advertências maternas.
O tempo, a dor e a morte, todavia, são os cobradores da realidade. Ao influxo desse
trio implacável, tanto Dona Matilde quanto as filhas foram reconduzidas à vida nova, além do
túmulo.
Emilinha, porém, agora afastada do grupo familiar, experimentava rudes provações
em círculo de sombras. Era freqüentemente visitada pela mãezinha generosa, mas lhe
identificava a presença, nem lhe ouvia a voz encorajadora, por trazer a mente absorvida por
negras visões e vozes angustiadas.
Anos correram, quando Dona Matilde deliberou voltar à esfera carnal, em
continuação do seu plano de serviço redentor. A filha penitente ficaria, doravante, sem o seu
amparo direto. Meditando a situação, a devotada genitora implorou recursos novos. Não
desejava mostrar-se insensível e, além do mais, Emilinha, sempre desajuizada, era a filha
que mais necessitava dos desvelos maternais. E, ali, na paisagem tenebrosa, ante os
padecimentos da ingrata, a nobre criatura intercedeu, fervorosa, empenhando o coração.
A resposta divina não se fez esperar. Emilinha, deslumbrada, reviu a mãezinha pela
primeira vez. Indescritível o contentamento de ambas. Beijaram-se com júbilo das profundas
ansiedades, longamente reprimidas.
Após confortar-lhe a alma ulcerada, Dona Matilde deu-lhe a conhecer o projeto em
organização. Regressaria à Terra, recomeçaria as tarefas inacabadas do processo de
redenção que lhe dizia respeito. Emilinha ouviu, inquieta, e considerou:
- Mamãe, a senhora me aceitaria, de novo, ao seu lado?
- Como não, minha filha? – replicou a entidade amorosa – se permitir o Senhor,
reconstituiremos o nosso velho lar, voltando à paisagem de ouro tempo.
- Prometo compreendê-la – acrescentou a filha em pranto.
- Rogaremos essa bênção – falou a genitora, beijando-a, carinhosa.
Nesse instante, fez-se visível o generoso diretor espiritual daquela região de sofrimento
retificador. Cumprimentou Dona Matilde atenciosamente, enquanto Emilinha se lhe rojava
aos pés, rogando, comovida:
- Emissário de Jesus, que me conheceis os padecimentos, ajudai-me para que eu possa
voltar à Terra, em companhia de minha mãe. Regressará ele aos círculos da carne e, se
concordardes, poderei segui-la, prontificando-me a permanecer em serviço, até que ela me
possa receber, novamente, nos braços maternais... Pelo amor de Deus, permiti a minha
volta!
A sábia entidade contemplou-a, fraternalmente, e falou:
- No momento, minha irmão, não lhe será possível retirar-se daqui. Ainda precisará
desgastar, por alguns anos, os envoltórios inferiores que criou em torno de si mesma. Seus
atuais veículos de manifestação não lhe permitem, por enquanto, a vida em zona menos
pesada que esta. No entanto, mais tarde, poderá voltar, viver ao lado de Matilde, receber-lhe
o verbo carinhoso e ouvir-lhe os conselhos cristãos.
Emilinha, que não cabia em si de contente, elevou as mãos ao céu e exclamou:
- Graças a Deus!
O diretor espiritual, contudo, retomou a palavra e terminou:
- Não poderá, todavia voltar à situação de parentesco que já passou. Não tem títulos de
serviço prestado que a autorizem, agora, a regressar como filha de Matilde, mas retornará
você ao mundo, como criada humilde da sua residência, para que, na verdadeira condição
de obediência, aprenda a valorizar o tesouro que Deus lhe concedeu.
35 - NAS PALAVRAS DO CAMINHO
Conta-se que Tiago, o velho apostolo que permaneceu em Jerusalém, demandava Betânia,
junto de Matias, o sucessor de Judas, no colégio dos continuadores do Cristo, quando foi
lembrada, repentinamente, a figura do Iscariotes.
Contemplando um pomar vizinho, Tiago comentou, em resposta às observações do
companheiro:
- Este sítio lembra o horto em que o Mestre foi traído. As árvores próximas parecem esperá-Lo,
às lições do crepúsculo, quando o Senhor estimava as meditações mais profundas. Recordo-me
ainda do instante inesperado, não obstante os seus avisos. Judas vinha à frente de oficiais e de
soldado que empunhavam lanternas, varapaus e espadas. Contavam encontrá-lo à noite, porque
Jesus muitas vezes se alegrava em ministrar-nos ensinamentos, à doce claridade noturna. O
Mestre, porém, vinha ao encontro dos adversários e estava sorridente e imperturbável.
Olhos mergulhados nas reminiscências, o apóstolo relembrava:
- Adiantou-se o infame e beijou-o na face. Estabeleceu-se o tumulto e consumou-se a prisão do
Messias, começando, desde então, o nosso martírio.
- Que insolência! Que homem caviloso esse Judas terrível! – replicou Matias, inflamado no zelo
apostólico – dói-me evocar o vulto hediondo do ingrato. Como não vacilou ele no crime
ignominioso?
- Será Judas, para sempre, a nossa vergonha – exclamou Tiago, arrimando-se ao bordão rústico
-, muitas vezes ouço a argumentação de Pedro, que busca defendê-lo. Ouço e calo-me, porque,
para mim, não existem palavras que o escusem. Esse traidor, será um réu diante da
Humanidade. Foi ele quem entregou o Mestre aos sacerdotes criminosos e provocou a tragédia
do Gólgota. Não tem advogados, nem desculpas. Foi perverso, positivamente infame.
- como se abalançou a semelhante absurdo? – indagou o interlocutor – tudo lhe dera o Senhor,
em bênçãos eternas!
- Foi o espírito diabólico da ambição desregrada – tornou Tiago, em voz firme -, Judas queria
absorver a direção de nosso grupo, ombrear com os rabinos do Templo, cativar a simpatia dos
romanos dominadores, criar uma organização financeira, submeter o próprio Senhor à sua
vontade. Pedro costuma afirmar que o celerado não previa as conseqüências do ato de traição,
nem alimentava o propósito de eliminar o Messias amado; contudo, não posso admitir a
suposição. Judas, por certo, condenou o Senhor deliberadamente à morte, e talvez fosse ele o
inspirador sutil dos tormentos na cruz. João e Pedro asseveram que o infeliz se arrependeu e
chorou; entretanto, chego a duvidar. Um traidor como aquele não encontraria pranto nos olhos.
Era demasiadamente perverso para sofrer por alguém.
-Com efeito – observou Matias -, não devia passar de criminoso vulgar. A sua memória inspirame
compaixão e vergonha...
Depois de ligeira pausa, indagou:
- Chegou a vê-lo antes da morte?
- Não – replicou Tiago, de maneira significativa -, e não sei se me comportaria fraternalmente se
ainda o tivesse ante os olhos. O traidor morreu nos laços diabólicos que teceu com as próprias
mãos. Devia aos infernos, como desceu, envolvido em trevas densas. Era um perverso gênio das
potências inferiores.
- E os familiares desse homem cruel? – interrogou Matias, curioso – porventura lhe aprovaram a
conduta satânica?
Tiago ia responder, mas alguma coisa lho impediu. O velho apóstolo arregalou os olhos,
interrompeu a marcha e perguntou ao companheiro:
- Quem é aquele que vem lá, vestido em luz resplandecente?
Assombrado, Matias retargüiu
- Também vejo, também vejo!...
Banhado, agora, em lágrimas Tiago reconheceu o Messias. Lembrou a narrativa dos discípulos,
a caminho de Emaús, ajoelhou-se reverente, e falou baixinho:
- É o Senhor!
Aproximou-se Jesus com a majestosa beleza da espiritualidade sublime e parou, por instantes,
ao lado dos companheiros. Contemplou-os, compassivamente, como Mestre afetuoso junto a
dois aprendizes humildes. Matias chorava, sem força para erguer os olhos. Tiago, em pranto,
ousou fixá-lo e rogou:
- Senhor, abençoai-nos!
Jesus estendeu a destra em sinal de amor e, como nada dissesse, o velho Galileu considerou:
- Senhor, podemos voltar par Jerusalém, a fim de receber a vossa vontade e cumpri-la!
- Não, Tiago – respondeu o Cristo, doce e firmemente -, não vou agora, sigo em missão de
auxilio a Judas.
E sem acrescentar coisa alguma, continuou a excursão solitária,em sublime silêncio.
Nessa noite, quando voltou a Jerusalém, o velho Tiago insulou-se da comunidade, e, tomando os
pergaminhos onde começara a escrever sua bela epístola à cristandade, anotou, em lágrimas,
suas famosas considerações sobre a língua humana.
36 - O ADVERSÁRIO INVISÍVEL
À frente do Senhor, nos arredores de Sídon, quatro dos discípulos, após viagem longa por
diferentes caminhos, a serviço da Boa Nova, relatavam os sucessos do dia, observados pelo
Divino Amigo, em silêncio:
- Eu – dizia Pedro sob impressão forte -, surpreendido por quadro constrangedor. Impiedoso
capataz batia, cruel, sobre o dorso nu de três mães escravas, cujos filhinhos choravam,
estarrecidos. Um pensamento imperioso de auxílio dominou-me. Quis correr, sem detença, e,
em nome da Boa Nova, socorrer aquelas mulheres desamparadas. Certo, não entraria em
luta corporal com o desalmado fiscal de serviço, mas poderia, com a súplica, ajudá-lo a
raciocinar. Quantas vezes, um simples pedido que nasce do coração aplaca o furor da ira?
O apostolo fixou um gesto significativo e acentuou:
- No entanto, tive receio de entrar na questão, que me pareceu intrincada...Que diria o
perverso disciplinador? Minha intromissão poderia criar dificuldades até mesmo para nós...
Silenciando Pedro, falou Tiago, filho de Zebedeu:
- No trilho de vinda para cá, fui interpelado por jovem mulher com uma criança ao colo.
Arrastava-se quase, deixando perceber profundo abatimento... Pediu-me socorro em voz
pungente e, francamente, muito me condoí da infeliz, que se declarava infortunada viúva
dum vinhateiro. Sem dúvida, era dolorosa a posição em que se colocara e, num movimento
instintivo de solidariedade, ia oferecer-lhe o braço amigo e fraterno, para que se apoiasse;
mas, recordei, de súbito, que não longe dali estava uma colônia de trabalho ativo...
O companheiro interrompeu-se, um tanto desapontado, e prosseguiu:
- E se alguém me visse em companhia de semelhante mulher? Poderiam dizer que ensino os
princípios da Boa Nova e, ao mesmo tempo, sou motivo de escândalo. A opinião do mundo é
descaridosa...
Outro aprendiz adiantou-se.
Era Bartolomeu, que contou, espantadiço:
- Em minha jornada para cá, não me faltou desejo à sementeira do bem. Todavia, que
querem? Apenas lobriguei conhecido ladrão. Vi-o a gemer sob duas figueiras farfalhudas,
durante longos minutos, no transcurso dos quais me inclinei a prestar-lhe assistência
rápida... Pareceu-me ferido no peito, em razão do sangue e porejar-lhe da túnica; mas tive
receio de inesperada incursão das autoridades pelo sítio e fugi... Se me pilhassem, ao lado
dele, que seria de mim?
Calando-se Bartolomeu, falou Filipe:
- Comigo, os acontecimentos foram diversos... Quase ao chegar a Sídon, fui cercado por
uma assembléia de trinta pessoas, rogando conselhos sobre a senda de perfeição.
Desejavam ser instruídas quanto às novas idéias do Reino de Deus e dirigiam-se a mim,
ansiosamente. Contemplavam-me, simples e confiantes; todavia, ponderei as minhas
próprias imperfeições e senti escrúpulos... Vendo-me roído de tantos pecados e escabrosos
defeitos, julguei mais prudente evitar a critica dos outros. A ironia é um chicote inconsciente.
Por isso, emudeci e aqui estou.
Continuava Jesus silencioso, mas Simão Pedro caminhou para ele e indagou:
- Mestre, que dizes? Desejamos efetivamente praticar o bem, mas como agir dentro das
normas de amor que nos traças, se nos achamos, em toda parte do mundo, rodados de
inimigos?
O Amigo Celeste, porém, considerou, breve:
- Pedro, todos os fracassos do dia constituem a resultante da ação de um só adversário que
muitos acalentam. Esse adversário invisível é o medo. Tiveste medo da opinião dos outros,
Tiago sentiu medo da reprovação alheia, Bartolomeu asilou o medo da perseguição e Felipe
guardou o medo da crítica...
Aflito, o pescador de Cafarnaum interrogou:
- Senhor, como nos livraremos de semelhante inimigo?
O Mestre sorriu compassivo e respondeu:
- Quando o tempo e a dor difundirem, entre os homens, a legítima compreensão da vida e o
verdadeiro amor ao próximo, ninguém mais temerá.
Em seguida, talvez porque o silêncio pesasse em excesso, afastou-se sozinho, na direção do
mar.
37 - NATAL SIMBÓLICO
Harmonias cariciosas atravessam a paisagem, quando o lúcido mensageiro continuou:
— Cada Espírito é um mundo onde o Cristo deve nascer...
Fora loucura esperar a reforma do mundo, sem o homem reformado. Jamais conheceremos
povos cristãos, sem edificarmos a alma cristã...
*
Eis por que o Natal do Senhor se reveste de profunda importância para cada um de nós em
particular.
Temos conosco oceanos de bênçãos divinas, maravilhosos continentes de possibilidades,
florestas de sentimentos por educar, desertos de ignorância por corrigir, inumeráveis tribos
de pensamentos que nos povoam a infinita extensão do mundo interior. De quando em
quando, tempestades renovadoras varrem-nos o íntimo, furacões implacáveis atingem
nossos ídolos mentirosos.
*
Quantas vezes, o interesse egoístico foi o nosso perverso inspirador?
Examinando a movimentação de nossas idéias próprias, verificamos que todo princípio nobre
serviu de precursor ao conhecimento inicial do Cristo.
*
Verificou-se a vinda de Jesus numa época de recenseamento.
Alcançamos a transformação essencial justamente em fase de contas espirituais com a
nossa própria consciência, seja pela dor ou pela madureza de raciocínio.
*
Não havia lugar para o Senhor.
Nunca possuímos espaço mental para a inspiração divina, absorvidos de ansiedades do
coração ou limitados pela ignorância.
*
A única estalagem ao Hóspede Sublime foi a Manjedoura.
Não oferecemos ao pensamento evangélico senão algumas palhas misérrimas de nossa
boa-vontade, no lugar mais escuro de nossa mente.
*
Surge o Infante Celestial dentro da noite.
Quase sempre, não sentimos a Bondade do Senhor senão no ápice das sombras de nossas
inquietações e falências.
*
A estrela prodigiosa rompe as trevas no grande silêncio.
Quando o gérmen do Cristo desponta em nossas almas, a estrela da divina esperança
desafia nossas trevas interiores, obscurecendo o passado, clareando o presente e indicando
o porvir.
*
Animais em bando são as primeiras visitas ao Enviado Celeste.
Na soledade de nossa transformação moral, em face da alvorada nova, os sentimentos
animalizados de nosso ser são os primeiros a defrontar o ideal do Mestre.
*
Chegam pastores que se envolvem na intensa luz dos anjos que velam o berço divino.
Nossos pensamentos mais simples e mais puros aproximam-se da idéia nova, contagiandose
da claridade sublime, oriunda dos gênios superiores que nos presidem aos destinos e que
se acercam de nós, afugentando a incompreensão e o temor.
*
Cantam milícias celestiais.
No instante de nossa renovação em Cristo, velhos companheiros nossos, já redimidos,
exultam de contentamento na esfera superior, dando glória a Deus e bendizendo os Espíritos
de boa-vontade.
*
Divulgam os pastores a notícia maravilhosa.
Nossos pensamentos, felicitados pelo impulso criador de Jesus, comunicam-se entre si,
organizando-se para a vida nova.
*
Surge a visita inesperada dos magos.
Sentindo-nos a modificação, o mundo observa-nos de modo especial.
*
Os servos fiéis, como Simeão, expressam grande júbilo, mas revelam apreensões justas,
declarando que o Menino surgira para a queda e elevação de muitos em Israel.
Acalentamos o pensamento renovador, no recesso d’alma, para a destruição de nossos
ídolos de barro e desenvolvimento dos germens de espiritualidade superior.
*
Ferido na vaidade e na ambição, Herodes determina a morte do Pequenino Emissário.
A ignorância que nos governa, desde muitos milênios, trabalha contra a idéia redentora,
movimentando todas as possibilidades ao seu alcance.
*
Conserva-se Jesus na casa simples de Nazaré.
Nunca poderemos fornecer testemunho à Humanidade, antes de fazê-lo junto aos nossos,
elevando o espírito do grupo a que Deus nos conduziu.
*
Trabalha o Pequeno Embaixador numa carpintaria.
Em toda realização superior, não poderemos desdenhar o esforço próprio.
*
Mais tarde o Celeste Menino surpreende os velhos doutores.
O pensamento cristão entra em choque, desde cedo, com todas as nossas antigas
convenções relativas à riqueza e à pobreza, ao prazer e ao sofrimento, à obediência e à
mordomia, à filosofia e à instrução, à fé e à ciência.
Trava-se, então, dentro de nosso mundo individual, a grande batalha.
A essa altura, o mensageiro fez longa pausa.
Flores de luz choviam de mais alto, como alegrias do Natal, banhando-nos a fronte. Os
demais companheiros e eu aguardávamos, ansiosos, a continuação da mensagem sublime;
entretanto, o missionário generoso sorriu paternalmente e rematou:
— Aqui termino minhas humildes lembranças do Natal simbólico. Segundo observais, o
Evangelho de Nosso Senhor não é livro para os museus, mas roteiro palpitante da vida.
38 - OS ESTRANHOS CREDORES
Poucas vezes, tive ao meu lado entidade tão bela.
Tratava-se da nobre Diana que, desde muito, segundo me informaram, se consagrara ao
ministério de iluminação das almas cegas e infelizes.
Demorava-se longas semanas no abismo.
Acendia luz evangélica entre gemidos e sombras.
Ao contrário de muita gente envolvida, resistia, heróica, ao peso da atmosfera baixa e
espessa.
Inúmeros criminosos impenitentes rendiam-se-lhe à palavra persuasiva e maternal.
Jamais falava como quem reprova condenando, mas como quem esclarece amando, em
nome de Deus.
Certo dia, visitou-nos o grupo em elevada tarefa.
Ouvi-a dissertar sobre grandes teses humanas, deslumbrando-me com a sabedoria que lhe
vibrava em cada definição.
O que mais impressionava, contudo, em sua venerável figura feminina, era a luz que a
rodeava inteiramente. Parecia viver num ambiente maravilhoso, exclusivamente seu, tão
sublime era o halo radioso que a circundava, isolando-a das influências exteriores.
Asseverou-me um amigo que a abnegada mensageira possuía direito indiscutível para
desfrutar semelhante situação, não só por trabalhar em círculos de criaturas positivamente
inferiores a ela, como também porque vencera, em si mesma, as deficiências mais rudes da
condição animal.
Alma divina, Diana reunia beleza e a bondade, a ciência e a expressão.
Quando terminou a palestra encantadora que a trouxera ao nosso núcleo de serviço,
aproximei-me, curioso e enlevado. Outros companheiros imitaram-me o gesto. A singular
posição luminosa daquela mulher arrebatava-nos o espírito. A emissária, no entanto, muito
simples, parecia desconhecer a própria elevação. Sorria fraternalmente e comentava os
problemas terrestres, como se estivesse ainda envolta na roupagem carnal. Soberano
entendimento de todas as coisas lhe transparecia das mínimas expressões.
Emocionado, em lhe observando a renúncia a favor das almas embrutecidas, indaguei do
porquê de seu sacrifício, retendo-lhe as respostas surpreendentes.
— Sim, meu amigo — respondeu sem afetação —, num impulso espontâneo de minha
própria consciência, ofereci cinqüenta anos de trabalho aos nossos irmãos das zonas mais
baixas da vida e não me envergonho de explicar-lhe a razão de meu gesto.
E sorridente, ante o interesse geral, prosseguiu delicada:
— Não sei se conhecem as extremas dificuldades do Espírito para alijar as vestes
animalizadas do sentimento.
Sorrimos, de modo significativo, dando-lhe a entender a nossa inferioridade.
— Pois bem — continuou a embaixatriz da caridade e da sabedoria —, confesso que
pertenci à classe das piores mulheres que já existiram nos círculos do Planeta. O ciúme, o
egoísmo e a vaidade eram o meu trio de verdugos cruéis. Voltei à carne, numerosas vezes.
Somente para atacar o ciúme fulminante, recebi a oportunidade de nove existências
sucessivas, sem resultado eficiente. Para combater o egoísmo e a vaidade, regressei ao
corpo físico muitas vezes, falhando nas mais insignificantes promessas. Sempre a
recapitulação do momento vicioso. Envenenava meu companheiro pelo ciúme, destruía o lar
pelo egoísmo e perdia os filhos, através da vaidade. Amigos desvelados seguiam-me,
carinhosos, de esferas mais altas, estendendo-me braços fraternais; entretanto, fracassei, de
modo invariável. Valia-me da bênção do esquecimento na reencarnação, para perpetrar
novos erros e espezinhar as sagradas leis. O tempo, contudo, ia passando, implacável, e os
meus antigos benfeitores espirituais se foram distanciando, elevados a regiões menos
densas. Despediam-se, afetuosos, estimulando-me ao desempenho dos deveres cristãos,
permanecendo, assim, relegada a mim mesma, entre problemas inquietantes e complicados.
Por fim, o esposo amigo, sócio abençoado de experiências e empresas inúmeras, foi
convocado à esfera superior, em virtude dos méritos adquiridos, e, dos Espíritos amados que
me foram pais e filhos, em várias estações evolutivas, não existia nenhum ao lado de minha
pequenez.
Quando me vi irremediavelmente sozinha, experimentei intraduzível pavor e amargoso
desânimo. Abandonei-me, então, a propósitos menos dignos, demorando-me nos recantos
abismais qual trapo inútil, embora consciente, vencida pelo trio nefasto. Muitos anos partilhei
o desencanto da soledade quase absoluta.
Dia houve, no entanto, em que fui visitada por nobre missionária do bem, que me contou,
carinhosamente, o romance que lhe dizia respeito.
Estivera em minha posição degradante, mas superara os obstáculos, utilizando o concurso
de entidades infelizes. Depois de aventuras extravagantes, no curso das quais fora
invariavelmente derrotada, voltou à Terra, na qualidade de mãe de filhos monstruosos, e tão
rijos lhe foram os testemunhos de abnegação que chegou ao admirável triunfo sobre a tríade
tenebrosa, dominando o ciúme, o egoísmo e a vaidade no decurso de setenta anos de
sacrifício incessante.
Aconselhou-me, assim, a visitar as furnas do sofrimento purgatorial e a rogar a colaboração
dos dirigentes daqueles que estacionam nas províncias da angústia, candidatando-me à
maternidade dolorosa na Terra.
Aceitei o alvitre, jubilosa.
Que representavam setenta anos de esforço e paciência para conseguir uma realização que
me escapara durante milênios?
A presença amiga conduziu-me às retaguardas das trevas e, horrorizada, percebi a
existência de infortunados irmãos nossos, em estágios longos de loucura, cegueira e
deformação. Agitavam-se em torvelinho de padecimentos indescritíveis. Acovardei-me ante o
quadro triste, mas a piedosa mensageira que me custodiava reanimou-me e, afinal, solicitei a
concessão.
Quando meu fervor se exteriorizou em lágrimas de esperança, fez-se visível um dos
vigilantes da atormentada região, acolhendo-me a súplica. Aceitar-me-ia o compromisso e
designou-me quatro crianças monstruosas que me caberia adotar.
Reunir-se-iam à minh’alma, dentro de algum tempo, nos círculos carnais.
Foi assim que, entre o pavor e ansiedade, regressei ao renascimento terrestre.
Vi-me, desde cedo, em condições dolorosas e precárias.
Nos rudimentos da infância, observei que meu corpo estava em formal desacordo com meus
sentimentos íntimos.
A princípio, vigorosa rebeldia dominou-me o coração, mas fui lavando as manchas da revolta
com lágrimas benfazejas e, porque a orfandade me colhera nos primeiros anos, fui
compelida a desposar um homem terrivelmente disforme, que me impôs quatro filhos
desventurados. Logo após o nascimento do último deles, meu infeliz esposo, companheiro
de quedas noutra época, veio a desencarnar, legando-me pobreza e viuvez irremediáveis.
Tentei a conquista do trabalho digno; entretanto, o infortúnio dos filhos não mo permitiu. Um
era cego, outro leproso e dois aleijados.
Muita vez, a vaidade me inclinou à prostituição, mas o instinto de mãe não me separava dos
filhinhos e toda gente me evitava a presença com manifesta repugnância. O egoísmo
procurou vendar-me os olhos, sugerindo os enjeitasse; contudo, a maternidade sofredora me
ajudava a vencer no combate do coração. O ciúme alvitrava o desespero e o crime,
mormente quando surgiam as mães tranqüilas e afortunadas, ao meu olhar; todavia, o beijo
de minhas pobres crianças atormentadas convidava-me à gratidão pela caridade pública, a
humildade e ao entendimento. Nunca tive pouso certo, como nunca dispus de parentes que
me solucionassem as necessidades. Vagueei mendigando nos caminhos, errando sem
direção, invariavelmente acompanhada pelos quatro meninos desditosos, que se
transformaram em sentenciados adultos, cheios de necessidades.
Ambos os aleijados partiram mais cedo para o sepulcro, o leproso desencarnou algum tempo
depois e o cego andou comigo, por mais de quarenta anos. Suportei sede, fome, privações e
conheci de perto a enfermidade e a aflição, com os filhos amargurados, agonizantes ou
insepultos...
Ao completar, porém, os setenta anos, achava-me liberta do trio maldito. A morte
surpreendeu-me totalmente renovada e, com as bênçãos divinas, pude entoar o meu cântico
de vitória.
Silenciou a nobre Diana, sob a nossa viva emoção.
A sublime narrativa revelava nova interpretação da luta terrestre.
Ante a quietude que nos assaltara, concluiu a mensageira do bem, com vibrante expressão:
— Segundo verificam, sou devedora insolvável para com os nossos irmãos do purgatório
escuro. Em companhia deles, na reencarnação terrestre, aprendi lições que muitos séculos
de aprendizado pacífico não me puderam ensinar, à vista de minha rebeldia e viciação; E tão
grande é a minha alegria e tão bela a minha noção de vitória individual que, se rastejasse
nas trevas, por alguns milênios, a fim de servi-los, não lhes pagaria, em hipótese alguma,
quanto lhes fiquei a dever para a eternidade.
Poucas vezes, tive ao meu lado entidade tão bela.
Tratava-se da nobre Diana que, desde muito, segundo me informaram, se consagrara ao
ministério de iluminação das almas cegas e infelizes.
Demorava-se longas semanas no abismo.
Acendia luz evangélica entre gemidos e sombras.
Ao contrário de muita gente envolvida, resistia, heróica, ao peso da atmosfera baixa e
espessa.
Inúmeros criminosos impenitentes rendiam-se-lhe à palavra persuasiva e maternal.
Jamais falava como quem reprova condenando, mas como quem esclarece amando, em
nome de Deus.
Certo dia, visitou-nos o grupo em elevada tarefa.
Ouvi-a dissertar sobre grandes teses humanas, deslumbrando-me com a sabedoria que lhe
vibrava em cada definição.
O que mais impressionava, contudo, em sua venerável figura feminina, era a luz que a
rodeava inteiramente. Parecia viver num ambiente maravilhoso, exclusivamente seu, tão
sublime era o halo radioso que a circundava, isolando-a das influências exteriores.
Asseverou-me um amigo que a abnegada mensageira possuía direito indiscutível para
desfrutar semelhante situação, não só por trabalhar em círculos de criaturas positivamente
inferiores a ela, como também porque vencera, em si mesma, as deficiências mais rudes da
condição animal.
Alma divina, Diana reunia beleza e a bondade, a ciência e a expressão.
Quando terminou a palestra encantadora que a trouxera ao nosso núcleo de serviço,
aproximei-me, curioso e enlevado. Outros companheiros imitaram-me o gesto. A singular
posição luminosa daquela mulher arrebatava-nos o espírito. A emissária, no entanto, muito
simples, parecia desconhecer a própria elevação. Sorria fraternalmente e comentava os
problemas terrestres, como se estivesse ainda envolta na roupagem carnal. Soberano
entendimento de todas as coisas lhe transparecia das mínimas expressões.
Emocionado, em lhe observando a renúncia a favor das almas embrutecidas, indaguei do
porquê de seu sacrifício, retendo-lhe as respostas surpreendentes.
— Sim, meu amigo — respondeu sem afetação —, num impulso espontâneo de minha
própria consciência, ofereci cinqüenta anos de trabalho aos nossos irmãos das zonas mais
baixas da vida e não me envergonho de explicar-lhe a razão de meu gesto.
E sorridente, ante o interesse geral, prosseguiu delicada:
— Não sei se conhecem as extremas dificuldades do Espírito para alijar as vestes
animalizadas do sentimento.
Sorrimos, de modo significativo, dando-lhe a entender a nossa inferioridade.
— Pois bem — continuou a embaixatriz da caridade e da sabedoria —, confesso que
pertenci à classe das piores mulheres que já existiram nos círculos do Planeta. O ciúme, o
egoísmo e a vaidade eram o meu trio de verdugos cruéis. Voltei à carne, numerosas vezes.
Somente para atacar o ciúme fulminante, recebi a oportunidade de nove existências
sucessivas, sem resultado eficiente. Para combater o egoísmo e a vaidade, regressei ao
corpo físico muitas vezes, falhando nas mais insignificantes promessas. Sempre a
recapitulação do momento vicioso. Envenenava meu companheiro pelo ciúme, destruía o lar
pelo egoísmo e perdia os filhos, através da vaidade. Amigos desvelados seguiam-me,
carinhosos, de esferas mais altas, estendendo-me braços fraternais; entretanto, fracassei, de
modo invariável. Valia-me da bênção do esquecimento na reencarnação, para perpetrar
novos erros e espezinhar as sagradas leis. O tempo, contudo, ia passando, implacável, e os
meus antigos benfeitores espirituais se foram distanciando, elevados a regiões menos
densas. Despediam-se, afetuosos, estimulando-me ao desempenho dos deveres cristãos,
permanecendo, assim, relegada a mim mesma, entre problemas inquietantes e complicados.
Por fim, o esposo amigo, sócio abençoado de experiências e empresas inúmeras, foi
convocado à esfera superior, em virtude dos méritos adquiridos, e, dos Espíritos amados que
me foram pais e filhos, em várias estações evolutivas, não existia nenhum ao lado de minha
pequenez.
Quando me vi irremediavelmente sozinha, experimentei intraduzível pavor e amargoso
desânimo. Abandonei-me, então, a propósitos menos dignos, demorando-me nos recantos
abismais qual trapo inútil, embora consciente, vencida pelo trio nefasto. Muitos anos partilhei
o desencanto da soledade quase absoluta.
Dia houve, no entanto, em que fui visitada por nobre missionária do bem, que me contou,
carinhosamente, o romance que lhe dizia respeito.
Estivera em minha posição degradante, mas superara os obstáculos, utilizando o concurso
de entidades infelizes. Depois de aventuras extravagantes, no curso das quais fora
invariavelmente derrotada, voltou à Terra, na qualidade de mãe de filhos monstruosos, e tão
rijos lhe foram os testemunhos de abnegação que chegou ao admirável triunfo sobre a tríade
tenebrosa, dominando o ciúme, o egoísmo e a vaidade no decurso de setenta anos de
sacrifício incessante.
Aconselhou-me, assim, a visitar as furnas do sofrimento purgatorial e a rogar a colaboração
dos dirigentes daqueles que estacionam nas províncias da angústia, candidatando-me à
maternidade dolorosa na Terra.
Aceitei o alvitre, jubilosa.
Que representavam setenta anos de esforço e paciência para conseguir uma realização que
me escapara durante milênios?
A presença amiga conduziu-me às retaguardas das trevas e, horrorizada, percebi a
existência de infortunados irmãos nossos, em estágios longos de loucura, cegueira e
deformação. Agitavam-se em torvelinho de padecimentos indescritíveis. Acovardei-me ante o
quadro triste, mas a piedosa mensageira que me custodiava reanimou-me e, afinal, solicitei a
concessão.
Quando meu fervor se exteriorizou em lágrimas de esperança, fez-se visível um dos
vigilantes da atormentada região, acolhendo-me a súplica. Aceitar-me-ia o compromisso e
designou-me quatro crianças monstruosas que me caberia adotar.
Reunir-se-iam à minh’alma, dentro de algum tempo, nos círculos carnais.
Foi assim que, entre o pavor e ansiedade, regressei ao renascimento terrestre.
Vi-me, desde cedo, em condições dolorosas e precárias.
Nos rudimentos da infância, observei que meu corpo estava em formal desacordo com meus
sentimentos íntimos.
A princípio, vigorosa rebeldia dominou-me o coração, mas fui lavando as manchas da revolta
com lágrimas benfazejas e, porque a orfandade me colhera nos primeiros anos, fui
compelida a desposar um homem terrivelmente disforme, que me impôs quatro filhos
desventurados. Logo após o nascimento do último deles, meu infeliz esposo, companheiro
de quedas noutra época, veio a desencarnar, legando-me pobreza e viuvez irremediáveis.
Tentei a conquista do trabalho digno; entretanto, o infortúnio dos filhos não mo permitiu. Um
era cego, outro leproso e dois aleijados.
Muita vez, a vaidade me inclinou à prostituição, mas o instinto de mãe não me separava dos
filhinhos e toda gente me evitava a presença com manifesta repugnância. O egoísmo
procurou vendar-me os olhos, sugerindo os enjeitasse; contudo, a maternidade sofredora me
ajudava a vencer no combate do coração. O ciúme alvitrava o desespero e o crime,
mormente quando surgiam as mães tranqüilas e afortunadas, ao meu olhar; todavia, o beijo
de minhas pobres crianças atormentadas convidava-me à gratidão pela caridade pública, a
humildade e ao entendimento. Nunca tive pouso certo, como nunca dispus de parentes que
me solucionassem as necessidades. Vagueei mendigando nos caminhos, errando sem
direção, invariavelmente acompanhada pelos quatro meninos desditosos, que se
transformaram em sentenciados adultos, cheios de necessidades.
Ambos os aleijados partiram mais cedo para o sepulcro, o leproso desencarnou algum tempo
depois e o cego andou comigo, por mais de quarenta anos. Suportei sede, fome, privações e
conheci de perto a enfermidade e a aflição, com os filhos amargurados, agonizantes ou
insepultos...
Ao completar, porém, os setenta anos, achava-me liberta do trio maldito. A morte
surpreendeu-me totalmente renovada e, com as bênçãos divinas, pude entoar o meu cântico
de vitória.
Silenciou a nobre Diana, sob a nossa viva emoção.
A sublime narrativa revelava nova interpretação da luta terrestre.
Ante a quietude que nos assaltara, concluiu a mensageira do bem, com vibrante expressão:
— Segundo verificam, sou devedora insolvável para com os nossos irmãos do purgatório
escuro. Em companhia deles, na reencarnação terrestre, aprendi lições que muitos séculos
de aprendizado pacífico não me puderam ensinar, à vista de minha rebeldia e viciação; E tão
grande é a minha alegria e tão bela a minha noção de vitória individual que, se rastejasse
nas trevas, por alguns milênios, a fim de servi-los, não lhes pagaria, em hipótese alguma,
quanto lhes fiquei a dever para a eternidade.
39 - PROVAS DE PACIÊNCIA
Quando se dispôs Leonarda à nova reencarnação, Lucinda, a nobre amiga espiritual que
permaneceria na esfera superior, recomendou:
— Leonarda, minha irmã, grandes tesouros tem conseguido você, nos caminhos da vida, e
suas aquisições de virtude prosseguem no ritmo desejado. No entanto, sua provisão de
paciência é muito escassa. Seu atraso, nesse terreno, é particularmente lamentável,
provocando enorme desarmonia no admirável conjunto de suas qualidades pessoais. Faça o
possível por elevar o padrão de sua resistência pela intensificação do autodomínio. As
realizações do Espírito não são gratuitas. Constituem patrimônio eterno, adquirido a preço
alto, em esforço e experiência. Tenha coragem nessa edificação. Quando na Terra,
olvidamos freqüentemente a real significação do desassombro. Aplaudimos a impulsividade
animal, esquecendo a sabedoria da prudência. Agora, porém, minha amiga, felicitadas pelas
bênçãos de Jesus, busquemos o entendimento necessário, aprendendo a vencer sem armas
visíveis, nos combates silenciosos do coração, no recinto do lar, onde o sacrifício é sempre
mais vivo e mais proveitoso. Em voltando presentemente à carne, não olvide que a renúncia
é a mestra da paciência.
Leonarda ouvia com interesse, revelando no olhar a preocupação indisfarçável do aprendiz
que regressa à escola terrena.
Transcorrida ligeira pausa, a amiga continuou:
— Sabemos que existe alimentação e assimilação, estudo e aproveitamento, dor e
renovação. Esgota-se o corpo físico, quando se alimenta e não assimila. Entrega-se o
estudante a muitos disparates, quando lê e não medita. Precipita-se a alma em regiões
infernais, quando sofre e não recolhe os valores da lição. Lembre-se de semelhantes
verdades na Terra. Para nós, que muitas vezes fomos injustas para com o próximo, o melhor
método de adquirir a paciência é o de sermos justas para com os outros, sem exigir que
outros o sejam para conosco. Essa indicação, aliás, vem de Jesus, desde o processo que o
conduziu à crucificação. O Mestre foi sumamente bom para com todos; entretanto, não
reclamou qualquer manifestação de justiça para consigo mesmo, nos grandes momentos. E
Ele era puro, Leonarda! Não desejo, de modo algum, induzi-la a desconsiderar a retidão.
Examino apenas o aproveitamento da oportunidade. Tolo é o doente que despreza o
remédio. E já que somos antigas enfermas, não fujamos à medicação adequada. Tenha
cuidado e dê a cada um o que indiscutivelmente lhe pertença. Contudo, se houver atraso na
recepção do que lhe couber, não descreia do Equilíbrio Divino, valendo-se do ensejo para
enriquecer a sua capacidade de resignação para o bem. Isso representa negócio espiritual
de grande importância para o futuro. Quanto ao mais, saiba você que estaremos ao seu lado,
assistindo-a com amor. De seu concurso, depende a realização.
Leonarda prometeu observância aos conselhos ouvidos, e assumiu compromissos graves e
tornou à Terra.
No entanto, apesar dos ajustes havidos, desde criança revelou extrema inquietude e
freqüente indisciplina.
No fundo, era bondosa e sensível, mas navegava facilmente da calmaria à tormenta.
Chegada à juventude, o plano espiritual convocou-a, pouco a pouco, às provas de paciência
de que necessitava.
Leonarda casou-se, mas no aparecimento do primeiro filhinho começaram os serviços mais
duros. Cristóvão, o marido, na condição de espiritualista, proporcionava-lhe o melhor quinhão
de assistência; no entanto, a companheira parecia surda a todas as advertências alusivas à
conformação e à tolerância. Não obstante a sua nobre dignidade de esposa e mãe,
descontrolava-se ao primeiro sinal de luta mais forte. Cessada e borrasca doméstica, lavavase
em pranto de arrependimento, reconsiderando atitudes; mas, quantas vezes fosse visitada
pela contrariedade ou pela tentação, quantas caía Leonarda em desespero e revolta, em
razão da invigilância.
Convertia as moléstias mais simples em fantasmas horríveis e transformava os mínimos
dissabores em tragédias comoventes. Dentro de semelhante clima sentimental, os filhos
andavam enfermiços, o esposo, inquieto, e a residência, menos cuidada.
Leonarda, conquanto bondosa, não sabia trabalhar nem descansar. No serviço, mantinha-se
impaciente; no repouso, vivia atormentada. Agia muito longe da tranqüilidade operosa que
produz a segurança íntima. O companheiro, por sua vez, não conseguia torná-la em
confidente de suas naturais aventuras e questões. Leonarda não sabia como analisar
serenamente os problemas. Contrariava sistematicamente tudo o que lhe não
proporcionasse bem-estar.
Nas reuniões evangélicas, ouvia importantes preleções sobre humildade e coragem,
costumando observar:
— As pessoas infelizes quanto eu não podem ser conformadas.
E, como se a virtude fosse algo insustentável, repetia sempre:
— Muito consoladores são os elementos da fé, mas perco a paciência todos os dias. Se a
dor, no entanto, vale alguma coisa para a melhoria da alma, estou sinceramente confortada,
porque os meus sofrimentos têm sido infindáveis.
Nessa diretriz prejudicial, atravessou o estágio terrestre.
Sem dúvida, efetuou louváveis aquisições nos sacrifícios do lar; todavia, quanto à
resignação, nunca obteve o mais leve traço. Chorou, reclamou, protestou e reagiu, sempre
que assediada pelos dissabores comuns. A pior característica em seu caso, porém, é que
Leonarda jamais se inquietou com o bem dos outros, mas, sim, com a satisfação de si
mesma, incapaz de suportar o menor espinho.
Ao terminar a tarefa terrena, Lucinda esperava-a com a mesma serenidade dos outros
tempos.
Abraçaram-se comovidas, logo que a memória de Leonarda recuperou as recordações,
permutando os júbilos de amizade sincera.
Depois das primeiras impressões afetuosas, falou a amiga espiritual:
— É lamentável tenha você demorado tanto tempo na oficina, sem melhorar a obra.
— Como assim? — indagou a interlocutora, assombrada.
— Refiro-me à paciência — comentou Lucinda, carinhosa —; cada vez que a Bondade
Infinita aproximava o seu coração do precioso manancial das oportunidades, você recuava
apressada, recusando-me o auxílio. Tentei quinhoar-lhe a senda com inestimáveis recursos
educativos, mas, infelizmente...
Espantou-se Leonarda, ao ouvir as inesperadas considerações, e, com inexcedível
desencanto, acentuou, triste:
— Que diz? Fui excessivamente provada!...
— Mas não foi aprovada — explicou a amiga, serena.
— Vivi com a pobreza e a dificuldade...
— Entretanto, não as aproveitou convenientemente.
— Experimentei muitas dores...
— Todavia não guardou os ensinamentos.
— Sofri muito!
— Mas não aprendeu...
E, porque a interlocutora emudecesse desapontada, Lucinda concluiu:
—Você falhou nas provas de paciência que o aprendizado humano lhe ofereceu, mas não
desespere de novo... Haverá recurso para recomeçar.
40 - OLÁ, MEU IRMÃO
— A disposição amiga — acentuava Cipriano Neto — é verdadeiro tônico espiritual. Não
raro, envenenamos o coração, à força de insistir na máscara sombria. Má catadura é
moléstia perigosa, porquanto as enfermidades não se circunscrevem ao corpo físico.
Quantos negócios de muletas, quantas atividades nobres interrompidas, em virtude do mau
humor dos responsáveis? Claro que ninguém se deixe absorver pelos malandros de esquina,
mas o respeito e a afabilidade para com as criaturas honestas, seja onde for, constituem
alguma coisa de sagrado, que não esqueceremos sem ferir a nós mesmos.
À frente da pequena assembléia, toda ouvidos, Cipriano, com a graça de sua privilegiada
inteligência, continuou, após leve pausa:
— Na Terra, o preconceito fala muito alto, abafando vozes sublimes da realidade superior.
Nesse capítulo, tenho a minha experiência pessoal, bastante significativa.
Meu amigo calou-se, por alguns momentos, vagueou o olhar muito lúcido, através do
horizonte longínquo, como a vasculhar o passado, e prosseguiu:
— É quase inacreditável, mas o meu fracasso em Espiritismo não teve outra causa. Não
ignoram vocês que meu coração de pai, dilacerado pela morte do filho querido, fora
convocado à Doutrina dos Espíritos, ansioso de esclarecimento e consolação. Banhado de
conforto sublime, senti que minhas lágrimas de desesperação se transformaram em orvalho
de agradecimento à bondade de Deus. Meu filho não morrera. Mais vivo que nunca,
endereçava-me carinhosas palavras de amor. Identificara-se de mil modos. Não havia lugar à
dúvida. Inclinei-me, então, à Doutrina renovadora. Saciado pela água viva de santas
consolações, não sabia como agradecer à fonte. Foi aí que recordei as minhas
possibilidades intelectuais. Não seria justo servir ao Espiritismo, através da palavra ou da
pena? Poderia escrever para os jornais ou falar em público. Profundamente reconhecido à
nova fé, atendi à primeira sugestão de um amigo e dispus-me a fazer uma conferência.
Anunciou-se o feito e, no dia aprazado, compacta assistência esperou-me a confissão.
Seduzido pela beleza do Espiritismo Evangélico, discorri longamente sobre a caridade.
Aplausos, abraços, sorrisos e felicitações. No círculo dos meus companheiros de literatura,
porém, o assunto fizera-se obrigatório. Voltando à Avenida, no dia imediato ao
acontecimento, meu esforço foi árduo para convencer os confrades de letras de que não me
achava louco. Infelizmente, porém, minha decisão não se filiava senão à vaidade.
Pronunciara a conferência como se o Espiritismo necessitasse de mim. Admitia, no fundo,
que minha presença honrara, sobremaneira, o auditório e que a codificação kardequiana em
mim encontrara prestigioso protetor. Desse modo, alardeava suma importância em minhas
palestras novas. Citava a antigüidade clássica, recorria aos grandes filósofos, mencionava
cientistas modernos. Quando nos encontrávamos, meus colegas e eu, no ápice das
discussões preciosas, eis que surge o Elpídio, velho conhecido meu e antigo tintureiro em
Jacarepaguá. Sapatos rotos, calças remendadas, cabelos despenteados, rosto suarento,
abeirou-se de mim e estendeu-me a destra, exclamando alegre:
— Olá, meu irmão! Meus parabéns!... Fiquei muito satisfeito com a sua conferência!
Entreolharam-se os meus amigos, admirados.
E confesso que respondi à saudação efusiva, secamente, meneando levemente a cabeça e
sentindo-me deveras humilhado.
Em vista do meu silêncio, o tintureiro despediu-se, mostrando enorme desapontamento.
— “É de sua família?” — indagou um companheiro mais irônico.
— “Estes senhores espiritistas são os campeões da ingenuidade!” — exclamou outro
circunstante.
Enraiveci-me. Não era desaforo semelhante homem do povo chamar-me “irmão”, ali, em
plena Avenida, diante dos colegas de tertúlias acadêmicas? Estaria, então, obrigado a
relacionar-me com toda espécie de vagabundos? Não seria aquilo irmanar-me a rebotalhos
de gente, na via pública?
O incidente criou em mim vasto complexo de inferioridade.
Cegavam-me, ainda, velhos preconceitos sociais e a ironia dos companheiros calou-me
fundo, no espírito. A ausência de afabilidade e a incompreensão grosseira dominaram-me
por completo. O fermento da negação trabalhou-me o íntimo, levedando a massa de minhas
disposições mentais. Resultado? Voltei à aspereza antiga e, se cuidava de doutrina,
confinava-me a reduzido círculo doméstico. Não estimava a companhia ou a intimidade
daqueles que considerava inferiores. Os anos, todavia, correm metodicamente, alheios à
nossa vaidade e ignorância, e impuseram-me a restituição do organismo cansado ao seio
acolhedor da terra. Sabem vocês, por experiência própria, o que nos acontece a essa altura
da existência humana. Gritos estentóricos de familiares, pavor de afeiçoados, ataúde a
recender aromas de flores das convenções sociais. Em meio da perturbação geral, senti que
sono brando se apoderava de mim. Nunca pude saber quantos dias gastei no repouso
compulsório. Despertando, porém, debalde clamei por meu filho bem-amado. Sabia
perfeitamente que abandonara a esfera carnal e ansiava por reencontrar-lhe o carinho.
Deixei a residência antiga, ferido de amargosas preocupações. Atravessei ruas e praças, de
alma opressa. Atingi a Avenida, onde me dava ao luxo de palestrar sobre ciência e literatura.
E ali mesmo, junto ao aristocrático Café, divisei alguém que não me era estranho às relações
individuais. Não tive dificuldades no reconhecimento. Era o Elpídio, integralmente
transformado, evidenciando nobre posição espiritual, trocando idéias com outras entidades
da vida superior. Não mais os sapatos velhos, nem o rosto suarento, mas singular aprumo,
aliado a expressão simpática e bela, cheia de bondade e compreensão.
Aproximei-me, envergonhado. Quis dizer qualquer coisa que me revelasse a angústia, mas,
obedecendo a impulso que eu jamais soube explicar, apenas pude repetir as antigas
palavras dele:
— “Olá, meu irmão! Meus parabéns!”
Longe, todavia, de imitar-me o gesto grosseiro e tolo de outro tempo, o generoso tintureiro de
Jacarepaguá abriu-me os braços, contente, e exclamou com sincera alegria:
— Ó meu amigo, que satisfação! Venha daí, vou conduzi-lo ao seu filho!
Aquela bondade espontânea, aquele fraternal esquecimento de minha falta eram por demais
eloqüentes e não pude evitar as lágrimas copiosas!...
Nossa pequena assembléia de desencarnados achava-se igualmente comovida. Cipriano
calou-se, enxugou os olhos úmidos e terminou:
— A experiência parece demasiadamente humilde; entretanto, para mim, representou lição
das mais expressivas. Através dela, fiquei sabendo que a afabilidade é mais que um dever
social, é alguma coisa de Deus que não subtrairemos ao próximo, sem prejudicar a nós
mesmos.
41 - A TAREFA RECUSADA
Atanásio, o devotado orientador espiritual de grande grupo doutrinário, admitido à presença
de nobre mentor dos planos elevados, explicou-se comovido:
— Nobre amigo, venho até aqui solicitar-vos providência inadiável.
— Diga, irmão — respondeu carinhoso o interpelado —, a Bondade Divina nunca nos faltará
com recursos necessários aos serviços justos.
— É que o nosso grupo na esfera do Globo — esclareceu o mensageiro, evidenciando
sublimes esperanças — precisa estabelecer tarefa curativa, com a cooperação dos
companheiros encarnados. Nossos trabalhos são visitados diariamente por enormes fileiras
de criaturas necessitadas de amor e consolação. Como não ignorais, generoso amigo, há na
Terra corações esterilizados pelo sofrimento, espíritos endurecidos pelas desilusões, almas
cristalizadas na amargura... Permiti-me integrar alguns dos irmãos na posse dos bens de
curar. Semelhante concessão seria motivo de enorme contentamento entre os operários
espirituais da casa de serviço confiada ao meu coração.
A entidade superior refletiu alguns instantes e considerou:
— A tarefa, tal qual você a solicita, não pode dispensar a contribuição de cooperadores
humanos. E dispõe você de auxiliares dispostos às dificuldades e tropeços do princípio e
sinceramente interessados em servir o Senhor, na atividade de assistência aos que
padecem?
Atanásio deixou perceber enorme confiança a lhe vibrar nos olhos muito lúcidos e
sentenciou:
— Oh!!! temos numerosos cooperadores, dos quais devo esperar a melhor compreensão. É
incrível não se rejubilem todos com a dádiva tão honrosa! Entenderão o sagrado objetivo,
colocando sobre todas as atividades os divinos interesses do Senhor.
— Pois bem, aceitando-lhe as afirmativas, não tenho qualquer objeção aos seus bons
desejos.
E, num gesto significativo, o nobre mentor determinou que se lhe apresentassem dois
companheiros de trabalho.
Dirigindo-se a ambos, observou generosamente:
— Abel e Jonas, ficam vocês incumbidos de se encaminharem à Terra, junto a Atanásio, na
qualidade de portadores dos recursos necessários ao estabelecimento de tarefa curativa no
grupo doutrinário que lhe recebe orientação. Como responsável pela providência, indicará ele
quais os irmãos a quem se deverão entregar as dádivas do nosso plano.
Após ligeira confabulação afetuosa, voltou o orientador, esperançoso e otimista, em
companhia de ambos os embaixadores das novas bênçãos.
Chegados ao grupo terrestre, desdobravam-se os serviços de uma das sessões semanais.
Ao término dos trabalhos, o velho Augusto Pena, que dirigia a assembléia, comentou sob a
inspiração direta do condutor espiritual da casa:
— Meus amigos, findas as preleções evangélicas, cumpre-me recordar a necessidade
premente de instituirmos serviços de assistência fraternal, em nossa tenda de atividades
espirituais. Em vista de trazer o Senhor tantos famintos, enfermos e aflitos às nossas portas,
creio chegado o instante de multiplicarmos energias para atender ao trabalho justo de
socorro àqueles que o Mestre nos envia. Entretanto, neste particular, não temos
organizações mediúnicas definidas. Esta realidade, porém, não nos exime da obrigação de
entender as sagradas palavras “batei e abrir-se-vos-á”. Necessitamos, por nossa vez, bater à
porta da realização, não com impertinência, mas com o sincero desejo de atender aos
propósitos divinos. Não devemos tentar a colheita de fruto que não amadureceu; mas,
devemos adubar a árvore, proteger-lhe as flores e oferecer-lhe condições adequadas à
frutificação. Estou certo de que as faculdades curadoras não chegarão milagrosamente;
contudo, precisamos começar nosso esforço, oferecendo sentimento e possibilidades ao
Senhor Jesus. Se é verdade que ainda não dispomos de elementos para subtrair a
inquietação ao aflito ou a doença ao enfermo, é possível, pelo menos, amá-los e ajudá-los.
Uma faculdade superior é a síntese de grande conjunto de experiências e note-se que me
refiro à faculdade superior, porquanto, no terreno comum, as faculdades naturais pertencem
a todos. Ora, um médico de valor não se forma em alguns dias e é indispensável recordar
que o Senhor nos concedeu na Terra não só uma esfera de purificação, mas também vasta
universidade de trabalho, onde toda criatura pode preparar-se para o Mais Alto, desde que
não desdenhe a luz da boa-vontade.
Depois de longa pausa, na qual observava o efeito de suas palavras, o orientador concluiu:
— Desejaria, pois, conhecer quais os companheiros que estarão dispostos a iniciar
semelhante serviço. O trabalho constará de aproximação afetuosa, aqui no grupo, de todos
os doentes ou necessitados, no sentido de se lhes proporcionar o conforto possível.
Distribuiremos passes magnéticos, remédios, água efluviada e, sobretudo, conversações
sadias. Creio que a palestra sã, inspirada em Jesus, pode ser muito mais eficaz nos
enfermos do que a própria medicação. Esses trabalhos, porém, deverão ser ininterruptos.
Precisamos de companheiros que perseverem no bem, sem idéia de vantagens, consolações
próprias ou recompensas individuais. Convencido estou de que a Celestial Bondade virá ao
encontro dos que insistirem fielmente nas obras do amor, coroando-lhes o espírito de serviço
com os mais sublimes patrimônios para a eternidade.
Silêncio inesperado seguiu-se ao apelo do orador.
Necessitando sondar o ânimo da assembléia, o velhinho começou a interrogar
individualmente:
— A senhora, D. Joaquina, que me diz?
A interpelada exibiu sorriso vago e respondeu:
— Ora, Sr. Pena, quem sou eu? Não presto para coisa alguma.
O doutrinador fez um gesto de resignação e continuou:
— Qual a sua opinião, Sr. Tavares?
Mas o Sr. Tavares, fazendo desagradável carantonha, explicou-se, sem preâmbulos:
— Sou um miserável, meu amigo, sou indigno e nem mereço a atenção da pergunta.
— Como interpreta o plano de serviço, Sr. Ferreira? — inquiriu Pena a outro amigo.
— Sou um desgraçado pecador — replicou o interpelado —, não tenho qualidades para
pensar nisto.
O velhinho prosseguiu, sem desânimo:
— E a senhora, D. Bonifácia?
— Eu? eu? — exclamou aflita uma velhota que se mantinha em funda concentração — não
posso, não posso... Sou uma ré de outras existências, minhas misérias são intermináveis...
— Sr. Antonio — continuou o velho, paciente —, que me fala do projeto exposto?
— Sou muito imperfeito, sou um criminoso! — respondeu Antonio, amedrontado —, sou
indigno de assistir alguém em nome de Jesus.
E, no mesmo diapasão, não houve ali quem aceitasse a incumbência espiritual. Alguns
estavam ocupados com o trabalho, outros com a família. A maioria declarava-se miserável.
Ninguém possuía dez minutos por dia, nem um centímetro de bondade para o serviço
proposto. Todos se afirmavam por preocupações ou totalmente indignos.
O doutrinador decepcionado encerrou o assunto, prometendo voltar ao caso em breves dias.
Na esfera invisível, todavia o quadro era mais comovente. Enquanto Abel e Jonas sorriam,
Atanásio fazia o possível por dissimular as lágrimas.
— Como vemos — disse Abel ao orientador, com grande bondade —, parece que a casa
ainda não se encontra disposta a receber a tarefa. Todos os componentes se declaram
ocupados, miseráveis, imperfeitos ou criminosos.
— Sim, sim — tentou Atanásio, triste —, meus companheiros, por vezes, são
demasiadamente humildes.
Nesse instante, porém, fez-se visível, entre os três, a nobre figura do benfeitor espiritual que
determinara a concessão, exclamando:
— Não sofra, meu caro Atanásio; mas também não fuja à verdade dos fatos. Seus tutelados
são fracos, porém não humildes. Onde está a humildade, há disposição para servir fielmente
a Jesus. O verdadeiro humilde, embora conheça a insuficiência própria, declara-se escravo
da vontade do Senhor, para atender-lhe aos sublimes desígnios, seja onde for. Aqui, como
acontece na maioria das instituições terrestres, todos querem colher, mas não desejam
semear. Gozam direitos e regalias; no entanto, fogem a deveres e eximem-se a qualquer
compromisso mais sério. E por exibirem títulos falsos, antes de conhecerem as
responsabilidades e os esforços que lhes são conseqüentes, terminam sempre as lutas
pessoais entre sombra e confusão!...
Vendo que Atanásio chorava, mais comovedoramente, o elevado mentor concluiu:
—Não se inquiete, contudo, desse modo, meu caro amigo. Por termos sido frágeis,
ignorantes ou piores no passado, o Mestre Divino nunca nos abandonou. As afirmativas de
seus tutelados não são filhas da humildade, nem demonstram firmeza de conhecimento de si
mesmos; mas, enquanto a tarefa permanece adiada por eles, continuemos trabalhando.
42 - O HOMEM QUE MATAVA O TEMPO
Aquelas respostas de Anselmo Figueiredo eram invariáveis.
Convocado à fé religiosa, o rapaz se desviava de qualquer consideração mais grave
relativamente à vida. Filhos de pais devotados ao Espiritismo cristão, apesar da assistência
carinhosa do genitor e dos comoventes apelos maternais, Anselmo afirmava sempre não
haver atingido ocasião adequada.
No seu parecer, o pensamento religioso quadrava tão-somente a pessoas avançadas em
idade. Entendia que era preciso desperdiçar a mocidade, gastar energias, estontear-se no
prazer e, depois, quando chegasse a perspectiva da morte do corpo, resolveria os problemas
da fé. Considerava indispensável aproveitar a saúde, para atender a caprichos inferiores.
Não permanecia na Terra? Que fazia a maior parte dos homens? Atendiam a desejos,
através de comidas e bebidas, com os jogos e prazeres do tempo.
Falava-lhe o pai amoroso, de quando em quando:
— Anselmo, já não és mais uma criança frágil. Creio que deves refletir maduramente quanto
ao nosso destino eterno.
— Ora, meu pai — replicava contrafeito —, lá vem o senhor com as histórias de religião.
Tenha paciência, não lhe pedi conselhos. Quando tiver sua idade, talvez pense nisto. Este
mundo é bastante miserável para que se não aproveitem os dias tão curtos da mocidade.
E, depois de gesto irritante, arrematava:
— É necessário matar o tempo.
De outras vezes, comparecia a generosa mãezinha no concerto:
— Meu filho, meu filho, repara que estamos na Terra, de passagem somente. Vamos
aprender as lições da fé. Jesus espera-nos sempre com o perdão aos nossos erros.
Anselmo, meu querido, porque não freqüentas conosco a escola de iluminação espiritual?
Seria isto prazer tão grande para tua velha mãe!... Encontraríamos juntos a fonte das águas
eternas...
O moço esboçava um sorriso irônico, explicando-se:
— Mamãe, não sou eu criminoso, nem desviado. Creio sinceramente na existência de Deus;
mas que quer a senhora? Estou jovem, preciso viver a única ocasião de alegrias na Terra. A
senhora e papai estimam os estudos evangélicos, enquanto que eu dou preferência aos
cassinos. Que fazer? Não temos culpa, no que concerne às diferenças de predileções. Além
disso, como não pode deixar de reconhecer, o período aproveitável da existência é muito
enfadonho. É necessário matar o tempo, mamãe!
A pobre matrona suspirava triste e a luta continuava.
Bancário, com remuneração excelente, Anselmo dissipava os vencimentos entre o jogo e os
prazeres alcoólicos, comprometendo-se, por vezes, em vultosos empréstimos que o genitor
era compelido a resgatar com sacrifícios. Se faltava dinheiro para as extravagâncias,
flagelava o coração materno com observações ingratas. E, se os amigos da casa, em visita à
família, recordavam ao imprevidente a solução dos problemas da fé, respondia irredutível:
— Que desejam vocês? Observo-lhes o esforço, mas não estimo as tendências religiosas.
Admito que semelhantes impulsos chegam com a idade avançada, ou com a moléstia
imprevista. Em sã consciência, coisa alguma exige de mim a manifestação religiosa
propriamente dita. Não sou velho, nem sou enfermo. Conseqüentemente, minha conduta é
outra. O homem normal e tranqüilo sabe matar o tempo. É o que faço sem perturbar a
cabeça.
Após fitar a reduzida assembléia de amigos, como se enfrentasse multidões do mundo, de
olhar dominador, Anselmo dirigiu-se ironicamente para uma velhinha simpática, exclamando:
— Que me diz a senhora, Dona Romualda? Acaso, não se aproximou do Espiritismo, em
virtude de suas velhas cólicas? Teria pensado em religião antes disto?
A anciã humilde replicava, bondosa:
— Ah! sim, Anselmo, talvez tenhas razão.
— E o senhor, “seu” Manuel — dirigia-se o moço, atrevidamente, a um negociante idoso —,
teria buscado o Espiritismo, se não lhe aparecessem as varizes e o reumatismo?
O interpelado, entretanto, que não tinha a paciência de Dona Romualda, respondia firme:
— Mas, meu amigo, é o caso de abençoar as enfermidades. Se é que está esperando por
elas a fim de renovar atitudes mentais, formulo votos para que a Providência Divina o atenda
breve.
O rapaz esboçava gesto de aborrecimento e dava-se pressa em sair para a rua, murmurando
entre os dentes:
— Estou muito distante de tais perturbações e, até que venha ocasião apropriada, matemos
o tempo.
De nada valiam observações dos genitores, conselhos amigos, convites fraternais. A
qualquer aborrecimento comum, desdobrava-se Anselmo em palavras blasfematórias. Se
advertido, mostrava enorme fecundidade por evitar raciocínios nobres, declarando-se em
época inoportuna a qualquer cogitação de natureza espiritual. O bilhar, o pano verde, as
aventuras do desejo menos digno lhe empolgavam a mente. Convidado inúmeras vezes pela
bondade divina a traçar diretrizes superiores, com ao destino sagrado, Anselmo Figueiredo
fugira a todas as oportunidades de iluminação íntima. Preferira as sombras espessas da
ignorância a qualquer pequenino serviço de auto-educação. Sua ficha individual na Terra
estava cheia de anotações inferiores: ociosidade, libertinagem, negação de atividades úteis.
A qualquer interpelação carinhosa, vinha à baila o velho estribilho: não havia atingido o
tempo próprio, sentia-se distante da realização espiritual, aceitava as verdades eternas;
entretanto, declarava-se sem a madureza necessária ao trabalho da própria edificação. E
assim, o filho do casal Figueiredo atingiu os quarenta e oito anos, sempre se sentindo
demasiadamente jovem para aproximar-se do conhecimento divino. Vivera à moda de
borboleta distraída, sumamente interessado em matar o tempo.
Contudo, a morte não podia esperar por Anselmo, como os amigos do mundo, e chegou o
dia em que o imprevidente não conseguiu abrir as pálpebras do corpo, ingressando em
trevas densas, que lhe pareciam infinitas. Percebeu sem dificuldade que não mais
participava do quadro terrestre. Sentia-se de posse dos olhos, mas figuravam-se-lhe agora
duas lâmpadas mortas. Chorou, pediu, praguejou. Não mais entes amorosos a convidá-lo
para o banquete do amor. Não mais a ternura maternal. Todavia, quando o silêncio absoluto
não lhe balsamizava as dilacerações da mente em febre, ouvia gargalhadas irônicas,
indagações maliciosas e ditos perversos. Nada valiam lágrimas e rogativas. Semelhava-se a
um cego perdido em região ignorada, sem família, sem ninguém. Nunca pôde retomar o
caminho de casa, ansioso por ouvir agora a palavra dos pais, a observação dos amigos
carinhosos. Anos passaram sobre anos, sem que o arrependido pudesse contar o tempo de
amarguras.
Houve, porém, um dia em que, após angustiosa prece, entre lágrimas, se fez claridade súbita
em sua longa noite. O penitente ajoelhou-se, deslumbrado. Alguém lhe visitava a caverna
escura. De repente, na doce luz que se formara em torno, apareceu-lhe a amada genitora a
fitá-lo, com extrema doçura.
— Mãe! minha mãe! — bradou o infeliz — socorre-me por piedade!...
Anselmo, em pranto, tentou alcançar a figura luminosa que o contemplava entristecida, mas
debalde. A senhora Figueiredo, não obstante se fazer visível, parecia distante. O
desventurado procurou correr para atingi-la, ansioso por se retirar das trevas para sempre. A
mãezinha devotada, contudo, alçou a destra compassiva e falou emocionada:
— É inútil, por enquanto, meu filho! — Estamos separados pelo abismo que cavaste com as
próprias mãos. Há mais de dez anos aguardava ansiosamente este encontro; mas, em que
estado lastimável te vejo, filho meu!...
— Querida mãe! — clamou o mendigo de luz —, por que me esqueceu o Senhor do
Universo? Abandonado de todos, sou um fantasma de dor, sem o auxílio de ninguém. Por
que tamanho padecimento? Por quê?
Enquanto o desditoso arquejava em soluços convulsivos, a genitora esclareceu, triste:
— Deus nunca te esqueceu, foste tu que lhe esqueceste as bênçãos no caminho do mundo.
Cuidaste apenas de matar o tempo e o teu tempo agora permanece morto. Trabalha para
ressuscitá-lo, meu filho, procurando obter nova oportunidade de serviço, perante a bondade
do Senhor. As lutas do coração desfazem as trevas que rodeiam a alma. Não esqueças a
longa estrada que ainda tens a percorrer...
E, antes que Alselmo pudesse formular novas interpelações, a luz espiritual apagou-se
devagarinho, voltando a paisagem de sombras, a fim de que o imprudente do passado
conseguisse acender a luz da própria alma, com vistas ao porvir.
43 - A RESPOSTA DE ENÉIAS
Enquanto se esperava o médium Palhares, o velho Azevedo Cruz, doutrinador das sessões,
confiava o bigode longo, comentando mordaz:
— Não reparam a ausência do Guilhermino? Desde muito tempo, não comparece.
— Que terá acontecido? — indagou D. Amália, piscando os olhos.
— Não sabem? — tornou o orientador do grupo — o nosso amigo caiu fragorosamente. Não
sai do pano verde, nem se afasta do mau caminho.
— Que diz? interrogou Dona Margarida, fisgando o interlocutor por cima dos óculos — o
Guilhermino desviou-se tanto? será possível?
— Ora, ora — aventurou uma senhora na turma, sussurrando —, a esposa dele é uma
infortunada. Guilhermino é bastante pervertido para entender o que sejam obrigações do lar.
Azevedo, olhar transbordante de malícia, acrescentou:
— Nunca me enganou o patife. Velho malandro, o Guilhermino! Simples lobo na pele de
ovelha. Conheço-lhe as patranhas, desde o primeiro dia em que me buscou, pedindo
socorro.
E a conduta do ausente foi ali examinada, minúcia por minúcia.
Chamavam-lhe irmão de quando em quando, classificando-o de velhaco, alguns instantes
depois.
Quando a pequena assembléia apareceu desinteressada, alguém recordou que Palhares
estava demorando. Bastou isso para que se concentrasse a atenção geral do retardatário.
Após verificar que ninguém se encontrava à escuta nas vizinhanças, a Senhora Fagundes
começou:
— Nosso médium já não é mais o mesmo... Nunca chega à hora, nada recebe de útil nas
sessões e vive sempre desapontado...
— Não sabe o que vem acontecendo? — perguntou uma companheira irrequieta — Palhares
anda agora bebericando... Por três vezes, senti-lhe pronunciado cheiro de vinho. Como
poderá ele, desse modo, receber mensagens elevadas? Quando o médium esquece a
responsabilidade própria, tudo vai por água abaixo...
O doutrinador fixou um gesto de puritano e considerou:
— Enquanto permanece ele no bar, demoramos aqui, aguardando reuniões improdutivas.
Palhares, presentemente, é um fracasso. Estou cansado de orar e rogar inutilmente...
Decorridos alguns instantes, entra a vítima, identificando sorrisos acolhedores.
Modifica-se a conversação.
Ao passo que o companheiro relaciona os atropelos havidos no lar, comenta-se a laboriosa
missão dos médiuns. A maledicência de minutos antes converte-se em observações de
suposto entendimento fraternal.
Palhares chega a sentir-se reconfortado e feliz.
Reúne-se à assembléia, em derredor da mesa.
Azevedo ora longamente, rogando a presença de Enéias, o sábio mentor dos trabalhos
espirituais.
Silêncio profundo.
Enéias, contudo, não aparece.
Encerrada a sessão, os companheiros fixam o médium, quase irritados, como se fora ele
exclusivamente o responsável pela ausência de comunicações com o plano superior.
Azevedo não consegue sopitar os pensamentos íntimos e exclama:
— Não posso compreender. Há mais de oito meses, estamos como que abandonados. Orase
com fervor, pedimos humildemente; entretanto, Enéias não responde aos nossos apelos.
Todos concordam desapontados.
Na semana seguinte, reúnem-se de novo.
Nessa noite, Palhares está a postos, na hora convencional, mas espera-se pelo velho
Azevedo.
Dona Amália, depois de comentar as desilusões sofridas com os vizinhos, afirmando-se
perseguida de Espíritos das trevas, começa a tagarelice venenosa da noite. Baixando o tom
de voz, sussurrou:
— Disseram-me no bairro que “seu” Azevedo não está procedendo como quem reconhece
os deveres próprios. Meu primo afirmou que estamos redondamente enganados, que o
nosso doutrinador perdeu o juízo, logo após a viuvez. Notificou-me, confidencialmente, tê-lo
encontrado, por mais de uma vez, em situação equívoca, desfazendo talvez a felicidade de
um lar honesto.
Palhares inclinou-se, esboçou um sorriso brejeiro e acentuou:
— Não costumo comentar os defeitos dos outros e, mormente, em se tratando dum irmão na
fé; sempre estimei o silêncio da verdadeira caridade, mas, aqui para nós, a situação é de fato
alarmante. Há no episódio muita coisa a lamentar. Inspira pena o companheiro infeliz.
E como o velho Arantes provocasse uma informação sólida, para conhecer a procedência da
acusação, o médium deu de ombros e respondeu:
— Pelo menos é o que me disse um colega da repartição.
— Absurdo! — bradou o Sr. Siqueira, exasperado — onde chegaremos com semelhantes
disparates? Azevedo não passa de miserável hipócrita.
Continuavam a operar as línguas venenosas, quando o companheiro penetrou o recinto.
Efusivas e calorosas saudações.
Nem parecia que se comentava tão escabroso assunto.
Durante meses a fio, a situação do grupo mantinha-se inalterada.
Acusavam-se as outras escolas religiosas, apontavam-se os infelizes que a provação atirava
ao escárnio público, discutia-se a posição de lares alheios. E, quando faltavam indivíduos
para o pasto da maledicência, maldiziam as instituições da época, criticavam os homens de
responsabilidades do tempo, duvidavam de todos, espalhando-se leviandades e
estabelecendo contradições.
Antes das preces de abertura, era necessário retirar os cinzeiros pletóricos, abrindo-se
janelas para melhorar as condições do ambiente.
Decorrido mais de um ano, que se caracterizara pela excessiva conversação dos
encarnados, com absoluto silêncio da esfera invisível, Azevedo se revelou, certa noite, mais
preocupado e mais emotivo.
Estabelecido o círculo de companheiros, o velho doutrinador começou a orar, sentidamente,
entre lágrimas.
Salientava o tempo de doloroso mutismo dos mentores espirituais, rogava esclarecimentos,
pedia socorro, implorando auxílio dos protetores benevolentes. Lamentando a ausência de
Enéias, o generoso orientador invisível que tantas vezes se manifestara noutros tempos, o
chefe do grupo terminava a súplica:
— Oh! bem-amados amigos da esfera superior, não nos abandoneis... Se estamos em
caminho errado, esclarecei-nos! por que permaneceis distantes há tanto tempo?! Por quem
sois, atendei-nos! Ouvi as nossas rogativas, reaproximai-vos de nós, por amor de Deus!...
A essa altura, o pranto embargou-lhe a voz.
A pequena assembléia chorava também, igualmente comovida.
Quando a meditação séria empolgou a maioria dos corações, incorporou-se Enéias, valendose
de Palhares, e exclamou para todos, pronunciando cada expressão em tom enérgico e
amigo:
— Hoje, não iniciamos a palavra espiritual, rogando ao Senhor vos conceda paz e, sim,
pedindo-vos, com interesse, guardeis a paz que o Senhor já nos concedeu. Vossa prece
comoveu-nos a alma; entretanto, estais equivocados. Nunca estivemos ausentes do trabalho
nobre. Aqui nos conservamos invariavelmente no cumprimento do dever, que é fonte de
alegrias. Há mais de um ano, porém, utilizais todo o tempo no comentário venenoso e cruel.
Quando não criticais as nações, as coletividades, os lares e as reputações alheias, costumai
ferir-vos uns aos outros. Como vedes, meus irmãos, estamos a esperar por vós, que tanto
vos distanciastes da obrigação justa. Recordai que é necessário empregar o verbo, no
sentido da criação superior. Falai, construindo com a vossa palavra algo de útil para a vida
eterna. Não temos, por enquanto, outra mensagem. Quando terminardes as sessões de
maledicência, estaremos prontos a iniciar convosco a sessão de Espiritismo construtivo e de
Evangelho redentor.
Daí a momentos, a reunião estava finda e, naquela noite, todos se retiraram do recinto, em
silêncio.
44 - OPINIÕES ALHEIAS
As dificuldades de Dona Josefina Murta eram, indiscutivelmente, bem grandes. Entretanto,
se a pobre senhora não encontrava disposição segura para atender às obrigações
mediúnicas, é que vivia sempre sob impressões desagradáveis da sensibilidade enfermiça.
Logo que se lhe manifestaram os fenômenos de incorporação, procurou aderir, de boavontade,
à tarefa, mas não possuía bastante força para resistir às apreciações desfavoráveis.
- Josefina – disse-lhe, certa feita, o marido -, necessita você de melhor educação
mediúnica. Deve compreender que o médium sensato pode melhorar o próprio ambiente, em
qualquer reunião.
A esposa ouvia, contrafeita, e retrucava:
- Não sei como fazer, Aparício. Nem tudo depende de nós.
- Isto não – tornava o companheiro, conselheiral -, a educação corrige qualquer defeito. As
manifestações turbulentas, por seu intermédio, constituem verdadeiro desastre.
Josefina levava o lenço aos olhos para enxugar o pranto de nervosismo. E, abespinhada,
entrava em rigoroso silencio.
Depois desse dia, quando voltou novamente à sessão semanal, o presidente da
agremiação observou-lhe, em tom confidencial:
- Minha irmã: no instante da recepção de nossos amigos desencarnados, peço-lhe muita
atenção. Não se entregue, de maneira absoluta, ao desequilíbrio de nossos irmãos
sofredores e perturbados. Controle-se, quanto lhe for possível. Como sabemos, o médium
não deve permanecer em extrema passividade. Ainda mesmo nos casos de sonambulismo
puro, é imprescindível que o trabalhador sincero esteja vigilante. O tumulto nas sessões
desorganiza o serviço espiritual. Espero me releve estas observações. È que me compete o
dever de avisa-la em particular.
Dona Josefina, muito corada pela advertência ouvida, agradeceu em palavras
entrecortadas de pranto.
Sentou-se, como de costume, à mesa da oração, sentindo-se envergonhada e ferida.
No momento das atividades mediúnicas, porém, absteve-se.
O demônio do medo iniciara a ofensiva. A medianeira das entidades espirituais mobilizou a
resistência de que dispunha e permaneceu invulnerável. Terminada a reunião, respondeu às
perguntas de Aparício, alegando que, naquela noite, não sentira a menor influenciaçao.
Longe, no entanto, de estudar os deveres legítimos que lhe cabiam à alma e sem qualquer
propósito de desenvolver os valores da cultura e do sentimento, Josefina Murta deixava-se
conduzir pela sensibilidade atormentada.
Guardava consigo muitas noções singulares de amor-próprio e cercava-se, na intimidade,
de vigorosos preconceitos. Acima de tudo, agastavam-na profundamente qualquer
observação que partissem dos outros.
Em razão do ocorrido, não mais se confiou ao trabalho de esclarecimento e consolação
das entidades sofredoras.
Continuando, porém, a freqüentar o núcleo espiritista – não só porque o esposo ali recebia
valiosa contribuição á saúde, como também por que os seus orientadores invisíveis insistiam
pela sua adaptação à tarefa -, certa noite, depois de proveitosa reunião, chamou-a o direto
da casa, sentenciando:
- Dona Josefina, creio que a senhora está reagindo mais do que deve. Lembre sua missão
na mediunidade. Em tal serviço, o instrumento não pode entregar-se, de todo, aos Espíritos
imperfeitos que nos visitam, mas também não deve negar-se ao trabalho, mantendo-se em
extrema atitude de reação. Dê curso à sua tarefa. Não se descuide. Recorde, sobretudo, que
o nosso tempo é muito curto na Terra.
A interpelada agradeceu e, na reunião imediata, retomou os afazeres medianímicos.
Procurou desenvolver sobre si própria o controle possível.Comunicou-se, através dela, na
primeira noite de retorno ao esforço psíquico, uma entidade bem-intencionada, mas em
grande perturbação, conversando longamente.
Encerrados os serviços, o Sr. Carvalho Serra esclareceu, irrefletidamente, dirigindo-se à
esposa de Aparício:
-Desculpe-me, Dona Josefina, mas na condição de amigo sincero de suas faculdades,
cabe-me dizer-lhe que o comunicante desta noite é um grande mistificador. Notei que o patife
soube fingir como ninguém. Gesticulou estudadamente e exprimiu-se com indisfarçado
fingimento.
A médium registrou um choque doloroso. Ferida no fundo dalma, começou a chorar,
convulsivamente.
Dominada pelas impressões alheias, abandonou a mediunidade falante e tentou a
psicografia.
A principio, movimentava-se-lhe a mão direita, sem rumo exato, traçando sinais ilegíveis.
O orientador do núcleo, na décima noite de experimentação, endereçou-lhe a palavra
amiga:
- Dona Josefina, admito que a senhora deve fazer o possível para auxiliar as entidades
que nos visitam. Repare que há dez semanas, precisamente, a senhora apenas recebe
garatujas. Suponho que se utilize a intuição, mostrando-se mais receptiva, tudo andaria pelo
lado melhor.
A esposa de Aparício orou, pediu o socorro de Jesus e, auxiliada por generosos amigos da
espiritualidade, psicografou extensa mensagem na sessão seguinte.
Exultava de contentamento e elevava ardentes agradecimentos a Jesus, quando o diretor
da casa tomou as paginas para a leitura em alta voz.
Tratava-se de peça edificante, moldada em princípios evangélicos, exortando os
companheiros ao serviço do bem, com humildade e fé. Assinava a pequena epistola
devotado mensageiro invisível, da equipe de assistência ao grupo.
Ninguém, todavia, percebeu a essência educativa e consoladora da mensagem. Todos
anotavam, antes de tudo, a forma verbalista e o mentor do núcleo se detinha, a cada trecho,
para analisar a letra, a ortografia e a construção fraseológica. Finda a leitura, comentou,
impiedoso, em tom grave:
- Infelizmente, estas páginas não podem ser do emissário que supostamente as
subscreve. O português apresenta numerosas falhas. Aliás, é preciso observar que a nossa
irmã Josefina permanece ainda em treinamento mediúnico e semelhantes mistificações são
naturais e necessárias.
A pobre dama prorrompeu em soluços, novamente desalentada.
Acalmou-a carinhosamente o esposo:
- Não há razão para tantas lagrimas – disse -, resigne-se querida! Continuemos devotados
ao serviço de nossa fé. Dentro de algum tempo, estará você convenientemente preparada e
feliz. Não chore assim. Ergamos nossa coragem.
Dona Josefina, no entanto, não conseguiu sofrear o enorme desânimo. Em sua
sensibilidade ferida, julgava-se ao desamparo, sem apoio, sem incentivo. Devia, a seu ver,
afastar-se dos labores doutrinários para sempre; tantos espinhos a defrontavam na estrada e
tantas advertências ouvia, que deliberou interromper o desenvolvimento de ordem psíquica.
Prosseguiu freqüentando invariavelmente o núcleo, em companhia do esposo, mas tornouse
intencionalmente impassível. Sentia a presença dos desencarnados, ouvia-lhes os apelos;
contudo, negava-se agora a qualquer colaboração nas atividades de intercambio. A sua
mãezinha, que desde muito lhe antecedera os passos ao além-túmulo, implorava-lhe atenção
para com os deveres assumidos, destacando a necessidade de paciência e buscando curarlhe
as chagas da sensibilidade doentia. Josefina, porém, fizera-se igualmente surda aos
apelos maternos. Afirmava-se cansada de fracassos e desilusões. E, longe de refletir na
extensão dos bens que poderia espalhar, intoxicava-se com as migalhas de ignorância que o
mundo lhe atirava ao campo de serviço redentor. Declarando-se extremamente ofendida,
resistiu a todas as solicitações do esposo e dos mais sinceros amigos.
Trinta anos correram céleres sobre a sua atitude de retraimento e negação, até que a
morte lhe requisitou, de novo, o corpo físico.
Num misto de aflição e esperança, entregou-se ao grande transe. Com inexprimível
assombro, porém, verificou, à ultima hora, que sua abnegada mãe se mantinha, em pranto,
junto ao leito mortuário...
Preocupada e receosa, desligou-se do veiculo carnal com dificuldade inexprimível e,
exausta, abraçou-se à genitora, exclamando, por fim:
- Minha mãe, minha mãe, por que choras? Não é a morte a vida eterna? Não estaremos
juntas para sempre?
- Ah! Minha filha – redargüiu a benfeitora, lacrimosa -, venho acariciar-te no limiar da nova
vida; entretanto, não te retiraras ainda do mundo!... Não cumpriste a tarefa, junto à família
espiritual que o Senhor te confiou...
- Que dizes? – perguntou Josefina, aterrada.
- Reporto-me ao teu grupo doutrinário, querida filha! O Mestre não nos reúne uns ao
outros casualmente. Em cada situação da vida, há um dever mais alto que é necessário
cumprir. E agora terás duplicada luta pela ausência do corpo terrestre!...
- Mas, minha mãe – tornou a desencarnada -, não cumpri os meus deveres de esposa,
não me dediquei ao marido até ao fim?
A prestimosa mensageira fixou um gesto triste e acentuou:
- Em semelhante setor do aperfeiçoamento, és a obreira plenamente aprovada. No
entanto, esqueceste as tuas obrigações de irmã, porque, em verdade, não vieste ao mundo
para te embaraçares nas opiniões alheias, e, sim, para realizar a vontade do Senhor, em ti
mesma, no serviço aos semelhantes.
45 - A PROIBIÇÃO DE MOISÉS
Conta-se que, no deserto, ao tempo de Moisés, grandes sábios da espiritualidade
estudaram os recursos de fornecer ao mundo novo roteiro de revelações. Com semelhante
empreendimento, os homens poderiam excursionar aos domínios da morte, aprendendo,
pouco, a se aprimorarem, de acordo com a lei divina. Concretizado o projeto, cujas
particularidades eram privativas das autoridades superiores, intercambio natural se faria
entre os vivos do planeta e os vivos do Além, religando-se a terra, gradativamente, ao
paraíso perdido, pelo reajustamento espiritual de seus filhos.
Informado quanto à iniciativa, o grande legislador dos hebreus passou a colaborar com os
instrutores desencarnados, na execução da experiência.
Organizaram-se os primórdios do serviço.
Necessitavam, para começar, de um organismo feminino, suficientemente passivo, que
atendesse na qualidade de medianeiro, entre os dois mundos. Ouviria ela os Espíritos
desencarnados e encarnados, com a serenidade precisa, colocada num campo de vibrações
delicadas entre ambas as esferas, iniciando-se dessa forma, o arrojado experimento.
O assunto era novo e interessaria a milhões de seres. Em razão disso, a mulher
instrumento exibiria trajes despistadores para não provocar obsessões afetivas. Não se lhe
identificaria a condição pelas vestes. Envergaria túnica de homem e não seria conhecida
nem pela feminilidade interior, nem pela masculinidade aparente. Seria o oráculo, destinado
a abrir novos caminhos à mente do povo escolhido.
Os hebreus teriam direito de indagar com nobreza e valer-se do serviço em necessidades
importantes, numa cota de vinte por cento das atividades, reservando-se os demais oitenta
por cento de possibilidades da tarefa ao plano espiritual, a beneficio coletivo. Quanto ao
oráculo, manter-se-ia em posição de serviço desinteressado a todos, sem grandes laços no
coração para não comprometer a obra e cultivando o trabalho comum do pão de cada dia
pelo suor digno, de modo a não parecer orquídea dos mortos ou sanguessuga dos vivos.
Encontrada a pitonisa, que se submeteu às condições estabelecidas, encetou-se o trabalho.
Moisés rejubilava-se. Quem sabe? Talvez a iniciativa viesse melhorar o espírito geral. O
povo necessitava iluminação pelos dons celestes. Tentava explicar diariamente as
obrigações da alma para com o Deus Único; entretanto, encontrava somente dureza e
ingratidão. A intervenção pública da Esfera Maior provavelmente lançaria imensa luz sobre o
Decálogo. Os mandamentos divinos, certo, seriam interpretados com a beleza sublime de
que se revestiam. E o Testamento do Céu seria glorificado.
Inaugurou-se o serviço com grandes esperanças.
As primeiras semanas foram de ação ambientadora, que se consumou, aliás, com a
rapidez do relâmpago.
Quando o povo reconheceu que os mortos se comunicavam efetivamente e que aquela
organização se constituía de balsamo e verdade, o ministério assumiu características
inquietantes.
Judeus de todas as tribos afluíram de todos os lados. Do deserto em que se achavam,
partiram mensageiros para as regiões circunvizinhas, espalhando a noticia. Descendentes de
Abraão em Mara e Socoth, Horma e Hesebon foram cientificados. Remanescentes de Israel,
no Egito e na Caldeia, receberam informes. E, em breve, rodeava-se o oráculo de impulsiva
multidão.
Moisés, que se alegrara a principio, tremeu de receio.
A pitonisa, que se dedicara ao experimento com sincero otimismo, viu-se, de um instante
para outro, qual frágil barquinho no dorso de vagas enfurecidas. Sustentada por um fio do
plano espiritual que, a custo, lhe evitava completa imersão nos estranhos recôncavos do
abismo, resistiu, corajosa, nos primeiros tempos, e a missão prosseguiu, se bem que
anormalmente.
O povo, ao qual se destinavam as benções do intercambio com a esfera superior, não
compreendeu o serviço instituído. Ninguém desejava elucidações referentes aos
mandamentos divinos. Não desejava informar-se quanto à natureza da luz que visitava o
Sinai e muito menos aceitava diretrizes edificantes para que, mais tarde, atingisse mais altos
círculos da vida. Queria gozar a hora presente, assenhorear-se de patrimônios dos vizinhos,
ganhar guerras com o estrangeiro, armazenar trigo e vinho, pilhar terrenos devolutos,
conquistar rebanhos indefesos, construir carros de triunfos sanguinolentos. Para isso, o
oráculo, ao invés de ouvir a Espiritualidade Superior que o sustentava na difícil empresa,
passou a receber milhares de consultas sobre os mais rasteiros interesses da vida material.
Cruelmente enganados pelas próprias ilusões, homens e mulheres de Israel cobriam-no de
glorias exteriores; transportavam-no, de um lugar a outro, sob manifestações festivas e
impunham-lhe destaque singular nos galarins da fama.
E a tarefa prosseguiu.
Abnegados orientadores da vida mais alta acompanhavam a missão sempre dispostos a
beneficiar; todavia, nunca chegaram a dez por cento das realizações elevadas que lhes
competiam.
O povo apenas procurava fugir à execução dos Desígnios do Pai Supremo. Não pretendia
ouvir as vozes do Alto e sim fazer vozerio e tumulto embaixo. De modo algum, desejava
elevar a Terra à luz do Reino Celeste e sim converter o Reino Divino em escuro subúrbio das
paixões terrestres. Em face dos benfeitores que vinham atende-lo, solicitamente, intentava
somente alijar dificuldades benéficas, resolver questões profundamente inferiores do drama
evolutivo, com plena obtenção de favores baratos e elixires da juventude. Ninguém
procurava trabalhar, iluminação, elevação, conhecimento, aperfeiçoamento ou melhoria
própria. Em vista disso, o oráculo era muito mais pomo de discórdia terrestre que elemento
de construtividade espiritual. Vivia como um terreno litigioso, provocando malquerenças e
desentendimentos sem-fim.
Tantas lutas estéreis foram acessas, que os Missionários de Cima deliberaram interromper
a experimentação. A turba era demasiado infantil para receber a revelação que não chegava
nem mesmo a vislumbrar. No auge da tempestade que se fazia cada vez mais intensa para a
opinião israelita, cortaram o fio de ligação e o oráculo desapareceu no torvelinho.
Acirrou-se a tormenta. Azedaram-se os debates. Surgiram deploráveis semeaduras de
ódio, desanimo e desesperação.
O grande legislador, apavorado com as atitudes de sua gente, escreveu então as celebres
palavras do capitulo XVIII, do Deuteronômio, situando a consulta aos mortos entre os
assuntos abomináveis.
E a proibição perdurou, oficialmente, no mundo, por mais de mil anos, até que o Cristo, em
pessoa, a abolisse, no cume do Tabor, conversando com o Espírito do próprio Moisés,
perante os discípulos espantados.
46 - NO PORTAL DE LUZ
À frente do anjo amigo, que mantinha amorosa vigilância no Portal de Luz, entre a Terra e o Céu, o
crente recém-vindo da luta humana rogou passagem, pronunciando formosas palavras em nome de
Deus...
O representante da Divindade, porém, depois de fitar-lhe os braços com demorada atenção,
inquiriu:
- Que traz?
O candidato ao ingresso no Paraíso comentou, espantadiço:
- Sempre respeitei o Senhor e adorei-o nas casas que o mundo consagra à Majestade Divina;
reconheci a grandeza do Evangelho, aceitando-o por sublime código de salvação da Humanidade,
interpretando os grandes filósofos e pensadores do passado por embaixadores dele em favor do
aperfeiçoamento gradual de nossa inteligência; guardei a fé em todos os acontecimentos da vida;
nunca me esqueci da reverencia que os mortais devem ao Céu; ouvi com acatamento as elucidações
de todos os pregadores da verdade, arquivando-lhes o bom conselho; jamais perdi a esperança na
Justiça Perfeita que rege o Universo; cada manha, tanto quanto cada noite, cultivei a prece sentida e
pura, pedindo a assistência do Alto; prestei culto aos livros sacros, meditando-lhes os textos
iluminativos; fugi, quanto pude, à presença dos ingratos e dos maus; abominei a companhia dos
pecadores; censurei os criminosos, por espírito de defesa leal do bem; não combati as religiões, por
reconhecer a feição sublime de cada uma; procurei guardar uma consciência sem mancha; evitava o
contacto com qualquer lugar onde subsistisse; temi os desvairamentos da carne e afastei-me de
todas as pessoas que poderiam induzir-me à tentação para a vida impura; acreditei que a retidão
deve orientar todos os negócios; sabendo que a paciência é tesouro sagrado, nunca me abeirei de
problemas intrincados, para não perde-la; convencido de que a paz é um dom celeste, colocava-me a
distancia de todas as pessoas irritadiças ou encolerizáveis, de modo a manter-me em segurança
espiritual e, ao fim dos meus dias terrestres, fiz de meu aposento e de meu lar o remanso
confortador, em deliberada fuga dos homens e dos problemas, a fim de aguardar a morte com a
pureza possível...
E fixando no funcionário celeste os olhos suplicantes, acentuou:
- Tudo fiz para não ofender o Senhor...
O anjo sorriu, complacente, e objetou, com expressão fraterna:
- Meu amigo, suas afirmativas demonstram-lhe o fino trato espiritual. A cultura, a crença e a
vigilância proporcionam brilho invulgar à sua individualidade subjetiva; entretanto, suas mãos
permanecem apagadas. A passagem aqui, porém, está condicionada à irradiação da luz que cada
Espírito possui, em maior ou menor grau, dentro de si mesmo.
E afagando o inteligente aspirante, concluiu, bondoso:
- Com tanta luz interior no cérebro, que fez em sua passagem no mundo?
Foi então que o crente, tão loquaz na exposição dos próprios méritos, baixou a cabeça, entrou em
silencio e começou a pensar.
47 - O TEMPO URGE
Quando o Senhor determinou que algumas das Virtudes Celestes viessem ao mundo,
trazendo Felicidade para as criaturas, a Fé acercou-se do Homem, antes das demais, e
disse-lhe compassiva:
- O Poder Superior governa-nos o destino. Confia na Providencia do Pai Misericordioso e
aprende a contemplar mais longe...
O Homem sorriu e replicou:
- O tempo urge. Viverei seguro na maquina de ganhar e guardar facilmente. Não aceito
outras deliberações que não sejam minhas.
Veio a Humildade e pediu:
- Meu filho, não te vanglories do que possuis, porque Deus concede os recursos no
momento preciso e retoma-os, quando julga oportuno. Sê simples para contentar a ti mesmo.
- O tempo urge – exclamou o Homem, sarcástico -, e se o minuto é meu, que me importa a
eternidade? Gozarei o dia, segundo meus desejos. Não tenho necessidade de submeter-me
para ser feliz.
Chegou a Bondade e suplicou:
- Ajuda no caminho para que outros te beneficiem. Nem todos os instantes pertencem à
primavera. Sê compreensivo e generoso! O rico pede cooperação fraternal, a fim de que o
fortuna o não encegueça; e o pobre reclama concurso, para que a escassez não o conduza
ao desespero.
- O tempo urge – gritou o Homem – e não posso deter-me em ninharias. Quem dá,
espalha; quem nega, concentra. Minha defesa aparece em primeiro lugar.
Surgiu a Paz e implorou:
- Amigo, esquece o mal e glorifica o bem. Não entronizes a discórdia. Cede em favor dos
necessitados. Não te detenhas no egoísmo voraz.
- O tempo urge – respondeu o Homem -, e se eu renunciar em beneficio alheio, que será
de mim? Cedendo, perderei. Não guardo vocação para a derrota.
Em seguida, compareceu a Paciência e aconselhou:
- Age com calma. Não exijas serviçais em toda parte, porque a tarefa de outros é
igualmente respeitável. Socorre os semelhantes, conscientes das próprias necessidades
espirituais. Não esmagues as esperanças dos pequeninos e atende à justiça onde estiveres.
- O tempo urge – repetiu o homem irônico – e as horas correm excessivamente
apressadas para que me entregue a problemas de tolerância. Fixando direitos alheios, não
perceberei os que me dizem respeito.
Logo após, abeirou-se dele a Compaixão, implorando:
- Irmão, apieda-te dos fracos!...
O interpelado não lhe permitiu continuar.
O tempo urge – bradou – e a questão dos pusilânimes não me atinge. Sou forte e nada
possuo de comum com os inúteis e inábeis.
A Caridade apareceu e apelou:
- Meu amigo, perdoa e ajuda para que a tranqüilidade more contigo. Tudo passa na carne.
A eternidade reside em teu coração. Por que não te amoldares à lei do amor, a beneficio da
própria iluminação?
O Homem, porém, redargüiu, entediado:
- O tempo urge! Deixem-me! Conheço o caminho e venerei por mim. Quem perdoa, opera
contra a dignidade pessoal e quem muito ampara desampara-se.
Então, reconhecendo o Senhor que o Homem estragava o tempo e consumia a vida,
inutilmente, sem qualquer consideração para com as Virtudes salvadoras, enviou-lhe alguns
dos seus poderes, de modo a chamá-lo a juízo.
Aproximou-se inicialmente a Dor.
Não lhe deu conselho algum.
Privou-o do equilíbrio orgânico e acamou-o.
O homem modificou gesto e linguagem, suplicando:
- O tempo urge.
Logo após, veio a verdade e apodrece-lhe o corpo.
O homem rogou:
- Piedade! Piedade! Salvem-me!...
A verdade, contudo, limitou-se a dizer:
- O tempo urge.
Em seguida, veio a Morte.
O homem reconheceu-a, apavorado, e pôs-se a gritar:
- Livrem-me do fim! Não posso partir!... não estou preparado!... Socorro!... socorro!...
A morte, no entanto, repetiu:
- O tempo urge.
E arrebatou-lhe a alma.
48 - ORAÇÃO DO DOIS DE NOVEMBRO
Senhor, deste-nos a verdade. Criamos a mentira.
Acendeste a luz. Disseminamos a treva.
Ensinaste o bem. Praticamos o mal.
Concedeste-nos o dom da vida. Semeamos o vírus da morte.
Proclamaste a liberdade pela obediência aos eternos desígnios. Instituímos o cativeiro
através das paixões inferiores.
Aconselhaste que nos amemos fielmente uns aos outros. Fizemos a separação e o
sectarismo.
Cultivaste flores de amor. Alimentamos espinhos de ódio.
Exaltaste a fraternidade. Intensificamos a sombra homicida.
Traçaste campos de serviço promissor. Enfileiramos cemitérios e ruínas.
Facilitaste-nos enxadas e charruas. Convertemo-las em projeteis e baionetas.
Mandaste-nos o enxofre que cura, o salitre que aduba e o carvão que aquece.
Transformamo-los na pólvora que mata.
Afirmaste que teus discípulos chegariam de todas as partes do Planeta. Amaldiçoamos
aqueles que não comungam conosco.
Organizaste caminhos de aproximação entre os homens. Construímos trincheiras.
Criaste a chuva benéfica. Realizamos bombardeios.
Plantaste árvores benfeitoras. Fabricamos espadas mortíferas.
Aceitaste a cruz da redenção. Levantamos a cruz do crime.
Exemplificaste o sacrifício supremo. Disputamos o campeonato do egoísmo.
Escalaste o monte da humildade. Descemos ao abismo do orgulho.
Deste-nos todo o bem, renunciando. Menosprezamos tuas bênçãos e dádivas, exigindo
sempre.
Por isso mesmo, Senhor, porque envenenamos as fontes de tua misericórdia, vemos a
civilização amargando angustia agonia.
Face ao passado delituoso, encarnados e desencarnados, somos de nossas próprias
fraquezas.
Hoje, pois, que os mortos da carne e os mortos que não vivem muito distantes do sepulcro
se reunirão, ao pé dos túmulos, e permutarão saudades e preces, no santuário do espírito,
ajuda-nos a compreender as verdades da vida eterna.
Atende Senhor, à nossa rogativa! Faze que teus verdadeiros emissários esclareçam o
nosso entendimento, para que sintamos a extensão de nossos débitos.
Abre-nos os olhos espirituais, para que vejamos o caminho. Enquanto a poeira da carne
confunde os nossos irmãos no mundo, grandes multidões, nos planos inferiores, estão
perturbadas pela poeira da sepultura.
Confessamos a nossa falência espiritual e reconhecemos as nossas dividas. Sabemos,
porém, Senhor, que somos portadores da consciência divina. Somos, contigo, herdeiros do
eterno Pai e não ignoramos que algo esperas de nós, como esperamos de ti.
Atende-nos, pois, Mestre Amado, para que resistamos às trevas e trabalhamos por nossa
iluminação, à espera do milênio futuro!
Peregrinos esperançosos reunimo-nos hoje, na estrada da vida, suplicando a bênção do
teu olhar. Comprimem-se turbas aflitas por ver-te. As viúvas de Naim, os Jairos vacilantes, os
centuriões atormentados, os discípulos medrosos, os aleijados e os cegos, os coxos e os
leprosos, as filhas angustiadas de Jerusalém aguardam, de novo, a tua passagem!... Há
também Lázaros sepultados, desde mais de quatro dias, em túmulos caiados, esperando
tuas palavras de ressurreição para se levantarem!... Suplicam maternas aliam-se ao choro
das criancinhas...
Auxilia-nos, Senhor, a quebrar nossas velhas algemas!
Vidente Divino ensina-nos a ver! Sol de esperança ilumina os que se confundem na
sombra!...
Dois de Novembro, dia de finados!...
Ò Estrela Gloriosa da Vida mostra-te no cume da montanha, clareando o caminho dos que
vagueiam, sem rumo, nos extensos vales da morte!
49 - NA GLÓRIA DO NATAL
Senhor – rei divino projetado às sombras da manjedoura -, diante do teu berço de palha
recordo-me de todos os conquistadores que te antecederam na terra.
Em rápida digressão, vejo Sesóstris, em nome do Egito sábio, e Cambises, o rei dos
persas, ocupando o vale do Nilo, antes poderoso e dominador. Recordo as lutas
sanguinolentas dos assírios, disputando a hegemonia do seu império dividido e infeliz.
Nabopolassar e Nabucodonosor reaparecem à minha frente, arrasando Ninive e atacando
Jerusalém, cercados de súditos a se banquetearem sobre presas misérrimas para
desaparecerem, depois, num sudário de cinza.
Não observo, contudo, apenas o gentio, na pilhagem e na discórdia, expandindo a própria
ambição; o povo escolhido, apesar dos desígnios celestes que lhes fulguram na Lei, entregase,
de quando em quando, á sementeira de miséria e ruína; revoluções e conflitos ceifam as
doze tribos e o orgulho desvairado compele irmãos ao extermínio de irmãos.
Revejo os medos, açoitados pelos cimerianos e citas.
Dario surge, ao meu olhar assombrado, envolvido nos esplendores de Persépolis para
mergulhar-se em seguida, nos labirintos do túmulo.
Esparta e Atenas, entre códigos e espadas, se estraçalham mutuamente, no impulso de
predomínio; numerosos tiranos, dentro de seus muros, manobram o cetro da governaça,
fomentando a humilhação e o luto.
Alexandre, à maneira de privilegiado, passa esmagando cidades e multidões, deixando um
cortejo de lagrimas, atrás da fanfarra guerreira que lhe abre caminho à morte, em plena
mocidade.
E os romanos, Senhor? Desde as alucinações dos descendentes de Príamo ao último dos
imperadores, deposto por Odoacro, jamais esconderam a vocação do poder, arrojando povos
livres ao despenhadeiro da destruição...
Todos os conquistadores vieram e dominaram, surgindo na condição de pirilampos
barulhentos, confundidos, à pressa, num turbilhão de desencanto e poeira. Tu, porém,
Soberano Senhor, Te contentou com o berço da estrebaria!
Ministros e sábios não te contemplaram, na hora primeira, mas humildes pastores se
ajoelharam sorridentes, diante de Ti, buscando a luz de teus olhos angelicais...
Hinos de guerra não se fizeram ouvir à tua chegada libertadora; todavia, em sinal de
reconhecimento, cânticos abençoados de louvor subiram ao Céu, dos corações singelos que
te exaltavam a Estrela Gloriosa, a resplandecer nos constelados caminhos.
Os outros, Senhor, conquistaram à custa de punhal e veneno, perseguição e força, usando
exércitos e prisões, assassínio e tortura, traição e vingança, aviltamento e escravidão, títulos
fantasiosos e araçás de ouro...
Tu, entretanto, perdoando e amando, levantando e curando, modificaste a obra de todos
os déspotas e legisladores que procediam do Egito e da Assíria, da Judéia e da Fenícia, da
Grécia e de Roma, renovando o mundo inteiro.
Não mobilizaste soldados, mas ensinaste a um punhado de homens valorosos a luminosa
ciência do sacrifício e do amor. Não argumentaste com os reis e com os filósofos; no entanto,
conversaste fraternalmente com algumas crianças e mulheres humildes, semeando a
compreensão superior da vida no coração popular...
E por fim, Mestre, longe de escolheres um trono de púrpura a fim de administrares o Reino
Divino de que te fizeste embaixador e ordenador, preferiste o sólido da cruz, de cujos braços
duros e tristes ainda nos envias compassivo olhar, convidando-nos à caridade e à harmonia,
ao entendimento e ao perdão...
Conquistador das almas e governador do mundo, agora que os teus tutelados afiam as
armas para novos duelos sangrentos, neste século de esplendores e trevas, de renovação e
morticínio, de esperanças e desilusões, ajuda-nos a dobrar a cerviz orgulhosa, diante do teu
singelo berço de palha!...
Mestre da Verdade e do Bem, da Humildade e do Amor, permite que o astro sublime de
teu Natal brilhe, ainda, na noite de nossas almas e estende-nos caridosas mãos para que
nos livremos de velhas feridas, marchando ao teu encontro na verdadeira senda de
redenção.
50 - ANO NOVO
Quando o desvelado orientador chegou ao Planeta, encaminhando o aprendiz à
experiência nova, o lar estava em festa, na celebração do Ano Novo.
Musicas alegre embalavam a casa, flores festivas enfeitavam a mesa lauta. Riam-se os
jovens e as crianças, enquanto os velhos bebiam vinhos de júbilo.
O devotado amigo abraçou o tutelado e falou:
- Nova existência, meu filho, é qual Ano Novo. Enche-se o coração das esperanças mais
belas. Troca-se o passado pelo presente. Rejubila-se a alma na oportunidade bendita.
Promessas divinas florescem no coração.
O tempo é o tesouro infinito que o Criador concede às criaturas. Não esqueças, todavia,
que a concessão de um tesouro é titulo de confiança e toda confiança traduz
responsabilidade. Tanto prejudica a obra de Deus o avarento que restringe a circulação dos
valores, como o perdulário que os dissipa, olvidando obrigações sagradas.
O tempo, desse modo, é benfeitor carinhoso e credor imparcial simultaneamente. Na terra
a maioria dos homens não chegou ainda a compreendê-lo.
Os ignorantes perdem-no.
Os loucos matam-no.
Os maus envenenam-no.
Os indiferentes zombam dele.
Os vaidosos confundem-no.
Os velhacos enganam-no.
Os criminosos perturbam-no.
Riem-se dele os pândegos.
Os mentirosos ridicularizam-no.
Os tolos esquecem-no.
Os ociosos combatem-no.
Os tiranos abusam dele.
Os irônicos menosprezam-no.
Os arbitrários dominam-no.
Os revoltados acusam-no.
Aproveitam-no os trabalhadores fiéis.
O tempo, contudo, meu filho, pertence ao Senhor e ninguém pode subverter a ordem de
Deus.
È por isso que, ao fim da existência, cada um recebe conforme usou o divino patrimônio.
Vale-te, pois, da oportunidade nova, sem olvidares o dever, convicto de que ninguém
falará ou agirá no mundo, em vão.
O homem precipita-se. O tempo espera. O primeiro experimenta. O segundo determina.
Se atingires a alegria de recomeçar, alcançarás, igualmente, o dia de acertar.
Lembra-te de que o tempo ensinará aos ignorantes.
Anulará os loucos.
Envenenará os maus.
Zombará dos indiferentes.
Confundirá os vaidosos.
Esclarecerá os velhacos.
Perturbará os criminosos.
Surpreenderá os pândegos.
Ridiculizará os mentirosos.
Corrigirá os tolos.
Combaterá os ociosos.
Ferirá os tiranos.
Menosprezará os irônicos.
Prenderá os arbitrários.
Acusará os revoltados.
Compensará os trabalhadores fieis.
Calou-se o venerável ancião.
Havia risos à mesa domestica expectativa no candidato à reencarnação, sorrisos paternais
no velhinho experiente.
O sábio abraçou novamente o discípulo e despediu-se rematando:
- Não te esqueças de que o tempo é generoso nas concessões e justo nas contas. Vai,
porém, meu filho, e não temas.
Nesse instante, à maneira do homem, cheio de esperanças, que penetra o Ano Novo, o
aprendiz reingressou na onda do nascimento.